Migalhas de Peso

O fim do binarismo no sistema jurídico brasileiro

A decisão da 1ª Vara de Família da Ilha do Governador/RJ segue uma tendência internacional e pode auxiliar no debate sobre gênero no Brasil.

30/10/2020

A categorização do ser humano em masculino e feminino é algo tido como natural em nossa rotina. Quando amigos dizem que estão prestes a ter um filho, a primeira pergunta é sempre a mesma: é um menino ou uma menina? Quando se conhece alguém pela primeira vez nós automaticamente atribuímos à pessoa uma das duas categorias do binarismo de gênero.1 Essa atribuição é realizada antes mesmo de ter conversado ou descoberto o seu nome.  A existência de apenas duas categorias de gênero tem sido aceita como verdade dogmática reproduzida por quase todas as pessoas.2 Nesse contexto de binarismo é que a decisão da 1ª Vara de Família da Ilha do Governador/RJ ganhou grande repercussão na mídia. A sentença autorizou que na certidão de nascimento da demandante constasse a seguinte informação: “sexo não especificado”. A decisão da Justiça carioca pode causar surpresa para o leigo, mas não para quem acompanha o Direito Internacional dos Direitos Humanos, pois ela segue uma tendência mundial.

Em 2013, ocorreu uma reforma na lei do registro civil da Alemanha (Personestandgesetz). A nova lei permitiu a ausência do sexo na certidão de nascimento da criança conforme o parágrafo 3º do artigo 22 da lei de registro civil. O dispositivo apresenta o seguinte texto: “quando não for possível atribuir nem o sexo masculino ou feminino para a criança, o registro de nascimento não deve constar essa informação”.3 Nesse caso, a informação do sexo da pessoa no passaporte seria preenchida com um X. No ano seguinte, o Tribunal Superior da Austrália decidiu que o registro civil de New South Wales tem o poder de registrar o sexo como “não especificado”. Em 2017, a Alemanha avançou no debate sobre gênero. Em outubro, o Tribunal Constitucional alemão decidiu que, ao lado das opções masculino e feminino, as pessoas teriam direito ao preenchimento positivo de um sexo no registro civil, afirmando que não se deveria impor, no registro civil, o sexo “masculino” ou “feminino”, pelo direito humano ao livre desenvolvimento da personalidade garantir um direito à autodeterminação do gênero pela pessoa, de sorte que se deve esperar que o bebê cresça e diga com qual gênero se identifica, quando tiver condições de exercer sua autonomia da vontade. Até lá, o sexo do bebê deve constar como “indefinido” ou “diverso”. O Tribunal estipulou um prazo de um ano para que o governo federal regulamentasse o tema. Posteriormente, a lei de alteração da manifestação do registro de nascimento (Gesetzes zur Änderung der in das Geburtenregister einzutragenden Angaben) foi aprovada pelo Parlamento. A norma alterou o parágrafo 3.º do artigo 20 da lei do registro civil (Personenstandsgesetz), possibilitando o registro do sexo “diverso” na certidão de nascimento.  

Em 2018, um caso na Holanda autorizou a informação de sexo não determinado na certidão de nascimento.4 O caso é de uma pessoa que foi registrada como uma criança de sexo masculino. Posteriormente, ela alterou a informação para feminino considerando que não se sentia como um homem. Após alguns anos, ela ingressou com uma ação requerendo a exclusão da figura feminina e a alteração para sexo não determinado. Recentemente, a ministra de Cultura, Educação e Ciência do país europeu, informou ao Parlamento que o documento de identidade não terá mais a informação de sexo.5 A mudança deve entrar em vigor nos próximos cincos anos. Ressalta-se que os documentos de identidade da Alemanha não apresentam a informação do sexo do cidadão.

O caso julgado pela Corte Superior australiana traz semelhanças com o da Comarca da Ilha do Governador. São pessoas que não se identificam com os gêneros masculino e feminino. Elas dependem da intervenção judicial para que o Estado respeite as suas liberdades sexuais. A demanda julgada na Comarca da Ilha do Governador é importante ao trazer a questão do binarismo para o debate. Será que o modelo atual do Brasil de obrigatoriedade da informação do sexo na certidão de nascimento não está ultrapassado? Ademais, o julgado se mostra importante na concessão de um direito e consequentemente na inclusão na sociedade de pessoas que   não se encaixam no modelo dominante das normas sociais. Todas as conquistas recentes das pessoas vulneráveis no Brasil foram realizadas por meio de uma luta intensa no Judiciário. A conquista da Comarca do Estado do de Rio de Janeiro pode contribuir para um debate sobre o binarismo e auxiliar demais pessoas na busca pela sua dignidade perante o Judiciário brasileiro. 

Ressalte-se que é equivocado o senso comum das pessoas sobre a suposta naturalidade da divisão da humanidade em dois “sexos”, porque antes do Iluminismo (século XVIII), prevalecia o entendimento científico de que a humanidade seria formada por apenas um único “sexo biológico”, que seria o masculino. A mulher era entendida, biologicamente, como um “homem invertido”: era o paradigma do isomorfismo (único sexo biológico), em contraposição ao dimorfismo (dois sexos biológicos).6 Não à toa, uma terminologia vetusta, anacrônica e horrível do Direito das Famílias identifica(va) o homem como “cônjuge varão” e a mulher como “cônjuge virago”, em óbvia referência aos órgãos sexuais de cada pessoa, a mulher como “varão invertido”, por assim dizer.

Essa, aliás, a razão de Simone de Beauvoir, em sua famosa máxima de que ninguém nasce mulher, torna-se mulher, afirmar que “Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma como a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado, que qualificam de feminino”.7 Veja-se que Beuvoir se refere à fêmea humana como um produto intermediário entre o macho e o castrado, o que comprova o paradigma anterior do isomorfismo, anterior a seu pensamento, mas para ela ainda muito evidente. Isso após explicar que, embora não se negue a importância da biologia na vida humana, a biologia, em si, não gera um destino imutável à mulher e, ampliando seu raciocínio, a quem quer que seja. É também nesse sentido que precisa ser entendida a famosa máxima de Judith Butler, no sentido de que não só o gênero, mas também o sexo é fruto de uma construção cultural. Evidentemente, nenhuma das autoras nem ninguém nega que as pessoas nasçam com determinado genital ou determinada biologia em sentido amplo. O que se nega é que a biologia, por si, traria um destino imutável às pessoas, como sempre se quis atribuir às mulheres (cisgênero). Daí a doutrina de Butler, para quem “o gênero não está para a cultura como o sexo para a natureza; ele [o gênero] também é o meio discursivo/cultural pelo qual a ‘natureza sexuada’ ou um ‘sexo natural’ é produzido e estabelecido como ‘pré-discursivo’, anterior à cultura, uma superfície politicamente neutra sobra a qual age a cultura”8. Isso porque, embora a autora obviamente não negue a chamada “materialidade dos corpos”, afirma que ela é sempre definida e significada a partir dos sentidos culturais e linguísticos socialmente dominantes9.

Por exemplo, aponta a autora que “está claro que a dualidade do sexo num domínio pré-discursivo é uma das maneiras pelas quais a estabilidade interna e a estrutura binária do sexo são eficazmente asseguradas. Essa produção do sexo como pré-discursivo deve ser compreendida como efeito do aparato de construção cultural que designamos por gênero”. Daí defender que a noção de gênero deve ser reformulada, para abranger as relações de poder que produzem o efeito de um [suposto] “sexo pré-discursivo” e ocultam, desse modo, a própria operação da produção discursiva10. Tudo isso porque “não se pode dizer que os corpos tenham uma existência significável anterior à marca do seu gênero”, donde “o corpo não [é] mais um meio ou instrumento passivo à espera da capacidade vivificadora de uma vontade caracteristicamente imaterial”11.

Dessa forma, criam-se concepções normativas sobre como os corpos devem ser compreendidos, por intermédio de concepções normativas [puramente ideológicas], que visam atrelar genitália, sexo/gênero e desejo sexual, visando impor uma heterossexualidade e cisgeneridade compulsórias (heterocisnormatividade). Mas, tanto isso configura uma arbitrária, frágil e insana pretensão normativa em prol da ideologia de gênero heterocissexista, que demanda um processo incessante de vigilância e punição das pessoas que não se enquadram nessa ideológica expectativa normativa heterocissexista, gerando desde pequenas correções cotidianas, como em frases como “haja como homem”, até agressões físicas e assassinatos daqueles(as) que ousam subverter os papéis de gênero impostos pela ideologia normativa dominante na sociedade.12 Circunstância esta reconhecida no histórico voto do Min. Celso de Mello na ADO 26 e no MI 4733, contra a ideologia de gênero heternormativa e cisnormativa que assola a sociedade.

Portanto, merece celebração a decisão brasileira que reconheceu o direito à diferença de pessoas não-binárias, em linha que consideramos análoga às decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos e do Tribunal Constitucional Alemão, relativamente ao direito ao livre desenvolvimento da personalidade em termos de autodeterminação de gênero de pessoas transgênero (travestis, transexuais e intersexo, enquanto pessoas que não se identificam com o gênero e/ou o sexo que lhes foi atribuído ao nascer, por médicos e/ou família).

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1 HELMS, Tobias. The 2013 German Law: analysis and criticism. In: DUTTA, Anatol; HELMS, Tobias SCHERPE, Jens. (Eds.). The legal status of intersex persons. Cambridge: Intersentia, 2018.p. 369-382.. 

2 PEREIRA, Rodrigo da Cunha.  Para além do binarismo: transexualidades, homoafetividades e intersexualidades. In:DIAS, Maria Berenice;  CARVALHO, Fernanda Leão Barreto. Intersexualidade.  São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018. p. 29-48.

3 Redação original do artigo 22, §3 da lei do registro civil alemão:  Kann das Kind weder dem weiblichen noch dem männlichen Geschlecht zugeordnet werden, so ist der Personenstandsfall ohne eine solche Angabe in das Geburtenregister einzutragen.

4 Disponível em: clique aqui. Acesso em 28/09/2020

5 Disponível em: clique aqui. Acesso em 28/09/2020

6 BENTO, Berenice. O que é Transexualidade, São Paulo: Ed. Brasiliense, 2008, pp. 19-26.

7 BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. Vol. 2: A experiência vivida. Tradução: Sérgio Milliet, 5ª Ed., São Paulo: Ed. Nova Fronteira, 2019, p. 11.

8 BUTLER, Judith. Problemas de Gênero. Feminismo e Subversão da Identidade. Tradução de Renato Aguiar, 12ª Ed., São Paulo: Ed.Civilização Brasileira, 2016, 27.

9 Esse é todo o sentido de BUTLER, Judith. Bodies that Matter. On the Discurive Limites of ‘Sex’, New York-London: Rouledge – Taylor & Francis Group, 1993, pp. 01-27.

10 BUTLER, Judith. Problemas de Gênero. Feminismo e Subversão da Identidade. Tradução de Renato Aguiar, 12ª Ed., São Paulo: Ed.Civilização Brasileira, 2016, pp. 27-28.

11 BUTLER, Op. Cit., p. 30. Citando outras perspectivas sobre o tema, cita a autora que: “Embora os cientistas sociais se refiram ao gênero como um ‘fator’ ou ‘dimensão’ da análise, ele também é aplicado a pessoas reais como uma ‘marca’ de diferença biológica, linguística e/ou cultural. Nestes últimos casos, o gênero pode ser compreendido como um significado assumido por um corpo (já) diferenciado sexualmente; contudo, mesmo assim esse significado só existe em relação a outro significado oposto. Algumas teóricas feministas afirmam ser o gênero ‘uma relação’, aliás um conjunto de relações, e não um atributo individual. Outras, na senda de Beauvoir, argumentam que somente o gênero feminino é marcado, que a pessoa universal e o gênero masculino se fundem em um só gênero, definindo com isso as mulheres nos termos do sexo deles e enaltecendo os homens como portadores de uma pessoalidade universal que transcende o corpo. [...] Como ponto de partida de uma teoria social do gênero, entretanto, a concepção universal da pessoa é deslocada pelas posições históricas ou antropológicas que compreendem o gênero como uma relação entre sujeitos socialmente constituídos, em contextos especificáveis. Este o ponto de vista relacional ou contextual sugere que o que a pessoa ‘é’ – e a rigor, o que o gênero ‘é’ – refere-se sempre às relações construídas em que ela é determinada. Como fenômeno inconstante e contextual, o gênero não denota um ser substantivo, mas um ponto relativo de convergência entre conjuntos específicos de relações, cultural e historicamente convergentes. [...] Essas discordâncias tão agudas sobre o significado de gênero (se gênero é de fato o termo a ser discutido, ou se a construção discursiva do sexo é mais fundamental, ou talvez a noção de mulheres ou mulher e/ou de homens ou homem) estabelecem a necessidade de repensar radicalmente as categorias da identidade no contexto das relações de uma assimetria radical do gênero”. BUTLER, Op. Cit., pp. 31-34.

12 BUTLER, Op. Cit., p. 30. Citando outras perspectivas sobre o tema, cita a autora que: “Embora os cientistas sociais se refiram ao gênero como um ‘fator’ ou ‘dimensão’ da análise, ele também é aplicado a pessoas reais como uma ‘marca’ de diferença biológica, linguística e/ou cultural. Nestes últimos casos, o gênero pode ser compreendido como um significado assumido por um corpo (já) diferenciado sexualmente; contudo, mesmo assim esse significado só existe em relação a outro significado oposto. Algumas teóricas feministas afirmam ser o gênero ‘uma relação’, aliás um conjunto de relações, e não um atributo individual. Outras, na senda de Beauvoir, argumentam que somente o gênero feminino é marcado, que a pessoa universal e o gênero masculino se fundem em um só gênero, definindo com isso as mulheres nos termos do sexo deles e enaltecendo os homens como portadores de uma pessoalidade universal que transcende o corpo. [...] Como ponto de partida de uma teoria social do gênero, entretanto, a concepção universal da pessoa é deslocada pelas posições históricas ou antropológicas que compreendem o gênero como uma relação entre sujeitos socialmente constituídos, em contextos especificáveis. Este o ponto de vista relacional ou contextual sugere que o que a pessoa ‘é’ – e a rigor, o que o gênero ‘é’ – refere-se sempre às relações construídas em que ela é determinada. Como fenômeno inconstante e contextual, o gênero não denota um ser substantivo, mas um ponto relativo de convergência entre conjuntos específicos de relações, cultural e historicamente convergentes. [...] Essas discordâncias tão agudas sobre o significado de gênero (se gênero é de fato o termo a ser discutido, ou se a construção discursiva do sexo é mais fundamental, ou talvez a noção de mulheres ou mulher e/ou de homens ou homem) estabelecem a necessidade de repensar radicalmente as categorias da identidade no contexto das relações de uma assimetria radical do gênero”. BUTLER, Op. Cit., pp. 31-34.

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*Allan de Oliveira Kuwer é mestre em Direito do Centro de Estudos de Direito Europeu e Alemão (UFRGS). Advogado.






*Paulo Iotti é doutor e mestre em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino. Especialista em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Advogado e professor Universitário.

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