Migalhas de Peso

Os conceitos matemáticos de direito e dever

A demonstração desses significados é possível a partir de certa sistematização matemática dos conceitos de conduta e relação jurídica e seus tipos.

30/10/2020

(Imagem: Arte Migalhas)

A sociedade é ávida por direitos! Por que essa palavra encanta tanto? A resposta reside no seu triplo significado: liberdade, poder e faculdade. Direito é liberdade para o sujeito escolher entre condutas opostas; poder para impor a sua vontade ao outro; e faculdade para decidir se algo que lhe é devido interessa ou não. No plano oposto, dever não é apenas a conduta obrigacional de entregar ou receber algo, mas também a submissão ao poder e à faculdade alheia.

A demonstração desses significados é possível a partir de certa sistematização matemática dos conceitos de conduta e relação jurídica e seus tipos.

Dever é conduta jurídica uniforme. Direito é conduta jurídica não-uniforme. O conteúdo da frase “Todos devem pagar o imposto de renda” exemplifica o significado de conduta uniforme. Quando você entra na loja “pode comprar ou não comprar certa roupa”. Essa liberdade exemplifica bem o significado da conduta não uniforme. Esse é o ponto de partida para se obter definições precisas dos significados das palavras dever e direito.

A conduta jurídica do sujeito pode ser uniforme (deve não matar) ou não-uniforme (pode contratar ou não contratar). Isso significa reconhecer que o sujeito é titular de dever quando só pode praticar uma conduta e titular de direito quando pode praticar duas condutas opostas.

A noção de dever e direito reflete as duas únicas possibilidades lógicas que existem no comportamento humano: a conduta dual e oposta (por exemplo, contratar ou não contratar) ou a conduta uniforme (por exemplo, não matar). A conduta única é obrigatória, o que equivale a dever; e a conduta dual é livre, o que equivale a direito.

Em síntese, na perspectiva individual, o sujeito pode agir no plano jurídico a partir da liberdade (conduta não uniforme) ou impulsionado por norma que lhe impõe a conduta obrigatória (uniforme).

Quando os sujeitos (S1 e S2) são colocados um perante o outro em ordem padrão (S1?S2), tais condutas são combinadas entre si, o que resulta em tipos lógicos de relações jurídicas.

Esses tipos lógicos são quatro: relações jurídicas livres, potestativas, de obrigação unilateral e de obrigação bilateral. Em cada tipo, os conceitos de dever e direitos adquirem especificidades em virtude da conduta e posição dos sujeitos (S1 e S2) na ordem da relação jurídica.

A Figura 1 sistematiza essas condutas e suas posições na relação jurídica, o que permite compreender as denominações especificas que o direito (liberdade, poder e faculdade) e o dever (obrigação e submissão) podem adquirir a partir da combinação das ditas condutas uniformes ou não-uniformes.

Figura 1. Tipos de relações jurídicas

O direito pode ser definido como liberdade na relação jurídica livre porque nenhum dos sujeitos (S1 e S2) estão obrigados a entregar ou receber conduta uniforme. Nesse tipo de relação jurídica não existe dever, apenas direito. Corresponde ao estado natural da vida em Sociedade.

O direito pode ser definido como poder na relação jurídica potestativa porque o seu titular (S1) pode impor a outra parte (S2) a submissão à sua conduta. O Governo pode desapropriar ou não certo imóvel. Em caso positivo ou negativo, restará à S2 a submissão à vontade de S1. Por esta razão, o dever pode ser definido como submissão. Essa relação é a melhor expressão da soberania.

Apenas para melhor compreensão, convém revisar o significado da palavra poder: capacidade de A modificar o comportamento de B. Poder é substantivo que exprime relação entre pessoas onde uma impõe a sua conduta sobre a outra.

O direito pode ser definido como faculdade na relação jurídica de obrigação unilateral porque o seu titular (S2) pode receber ou não obrigação prestada pela a outra parte (S1). A opção de compra é obrigação unilateral assumida por S1 que assegura o exercício de faculdade por S2. Nesse caso, a relação jurídica começa na conduta uniforme e unilateral e termina no exercício da faculdade. Por esta razão, o dever nessa hipótese lógica pode ser definido como obrigação unilateral.

Por fim, na quarta relação jurídica não há direito. Apenas, dever bilateral. A obrigação tributária é um bom exemplo. O contribuinte deve pagar o imposto e o governo deve receber o imposto. Por esta razão, o dever pode ser definido nessa hipótese lógica como obrigação bilateral ou mútua.

A seguinte conclusão é possível: existe relação jurídica sem posição de direito (relação obrigacional bilateral), bem como relação jurídica sem dever (relação jurídica livre). Essa constatação quebra os paradigmas usuais de raciocínio, mas é constatação lógica derivada da combinação entre condutas uniformes e não-uniforme.

Em razão dessa sistematização lógica, o direito pode ser definido como a conduta não uniforme que pode se manifestar como liberdade, poder ou faculdade, conforme a posição do sujeito na relação jurídica.

Por igual razão, o dever pode ser definido como a conduta uniforme que pode se manifestar como submissão ao poder alheio, obrigação unilateral ou bilateral, conforme a posição do sujeito na relação jurídica.

Essa estrutura lógica e conceitual tem a virtude de desnudar os conceitos de direito e dever tão presentes no cotidiano.

Na vida em Sociedade, o direito como liberdade corresponde a relação natural das pessoas entre si. Cada um faz o que lhe interessa e no curso da vida vai ajustando a cooperação ou a competição entre si.

A partir da liberdade, surge o poder como força individual ou coletiva apta a submeter o outro à sua vontade ou interesse. Essa face do direito como poder não é simples e neutra porque pode decorrer da pura e simples ação ou por efeito da norma. Em qualquer hipótese, poder é sempre força capaz de gerar submissão, algo que vai além da pura e simples obrigação.

O conceito de dever, admite dois sentidos diferentes: obrigação e submissão.

Obrigação corresponde à noção estoica de ação dirigida em favor do outro, por força da razão natural.

Submissão é diferente porque impõe a pura e simples obediência ao poder alheio. Essa diferença foi racionalizada como muita propriedade por Rousseau, no Contrato Social: “Ceder à força constitui ato de necessidade, não de vontade, quando muito ato de prudência. Em que sentido poderá representar um dever?”. Lúcida interrogação.

Rousseau escreveu no Contrato Social: “O mais forte nunca é suficientemente forte para ser sempre senhor, senão transformando sua força em direito e a obediência (submissão) em dever”. Essa célebre frase é sempre atual, afinal, adquirir direitos por lei é quase sempre submeter o outro à cega obediência. Isso exige muito equilíbrio e ponderação porque significa transformar a liberdade natural (que é um direito) em poder do outro sobre você (que também é direito).

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*Luiz Walter Coelho Filho é sócio-fundador do escritório Menezes, Magalhães, Coelho e Zarif Sociedade de Advogados.

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