Migalhas de Peso

Ativismo judicial: Que falta nos faz um Scalia

O ativismo não é mais do que uma nova acomodação das camadas internas e profundas da organização do poder, agora com o protagonismo do Judiciário, para que ele possa se perpetuar intacto.

28/10/2020

(Imagem: Arte Migalhas)

(...) Ours is a government of laws, not of men. The common-law-judge-for-all-occasions is not compatible with that principle (...) The judge as legislator has also not been good for democracy. When the vocation of a judge is reduced to simply selecting the best rule, remarkable power is placed in the hands of a few persons who are barely accountable for their decisions (...)” - Antonin Scalia1

Ativismo é um eufemismo. Un joli mot para dourar uma usurpação, a de o Judiciário reunir todos os anéis do Poder, e, onipotente, moldar o mundo da vida. Para além da lei, e para muito além da função jurisdicional, o magistrado arvora-se em Filósofo-rei (a-judge-maker-law), ora administrador, ao implementar políticas públicas, ora legislador, ao criar novas normas de conduta.

Um fenômeno que, como qualquer outro, não foge à lei da causalidade. E suas causas são, como soem ser, de carne e osso. A vida humana, nos calabouços da sua psicologia, revela duas verdades inapeláveis, especialmente válidas para o âmbito político: a primeira é a de que “la vertu même a besoin de limites” (Montesquieu, Espirit des Lois, XI, 4); e a segunda, a de que “man by his nature is unfit to be trusted with unlimited power” (Hamilton e Madison, Federalist, 51). Por isso é que se erguem repúblicas, e se promulgam constituições, e se erigem Estados de Direito, para que o governo seja limitado, para que o poder controle o poder, e para que reinem as leis, não os homens.

Nosso ativismo venceu pelo cansaço. É muito difícil resistir a sete vezes setenta vezes uma tentação, tanto mais a do poder, por natureza expansiva e invasora. A Constituição de 1988 entregou tudo à Justiça: tudo é jurídico, e tudo que é jurídico é constitucional, e tudo que é constitucional é público – contrato, propriedade, família, cultura; o individual deve ceder ao coletivo, porque o poder é coletivo (“O indivíduo só consegue ter poder na medida em que deixa de ser um indivíduo ... Sozinho – livre – o ser humano sempre será derrotado ...”) (Orwell, “1984”, III, 3).

Não se trata apenas de difundir cartilhas obsoletas, que já nasceram, entre nós, decadentes (“a felicidade está no público”). Trata-se, antes, e muito mais grave, de legitimar ao Estado, por meio de autoridades públicas, que exerça controle total e totalizante sobre todos os domínios da vida. E a doutrina decantou essa democracia judiciária. O próprio Poder Público, com o desgaste do Legislativo e do Executivo – os séculos XVIII e XIX foram daquele, enquanto o século XX foi deste –, direcionaram a autoridade para o Poder Judiciário. As leis são vazadas de modo aberto – como se o legislador não dispusesse, hoje, em relação ao passado, de um aparato técnico muito mais acurado e desenvolvido, e de melhores informações, para elaborar leis mais precisas.

Era inevitável, então, que a judicialização, promovendo e renovando a tentação do poder, levasse ao (nosso) ativismo crônico, que já ganhou foros de naturalidade. Mas aquela não absolve a este, nem justifica, nem autoriza tal disfunção republicana. Há questões não judicializáveis; há controvérsias que um juiz não pode resolver; há temas que não cabe ao magistrado solucionar.

Há que situar o Poder Judiciário no tempo e no espaço. Seu tempo é o passado, que se arrima em fatos que precisam ser provados. Questões de legalidade e prova se imbricam reciprocamente. Essa é a estrutura da operação mental de julgar (ofício já por demais complexo). Não se julga o futuro. Esse tempo não pertence ao Judiciário. Acerca do futuro, delibera-se. E a sede para deliberações, numa República, é o Poder Legislativo; sua casa, o Congresso Nacional – not the bench.

E o espaço do Poder Judiciário, como consectário da temporalidade, é o domínio das leis postas. Ali não é lugar para políticas públicas. Isso cabe ao Poder Executivo (e aqui estamos no presente). Por isso existem eleições, para que, eleito, o Administrador com melhores propostas possa direcionar recursos para a obtenção de objetivos parciais e específicos, dentro do orçamento e das balizas da lei. Não cabe, então, ao Poder Judiciário fazer justiça distributiva ad hoc, por espírito de equidade; antes, é o Poder pior aparelhado para tal, pois não faz gestão nem locação de custos, não detém informação adequada para avaliar as consequências do seu ato e, sobretudo, não lhe foi conferido legitimidade para querer por terceiros: sua formação é técnica, não política. Não se trata, aqui, claro está, de juízo de non liquet, mas, simplesmente, de limitar o poder, e de se colocar as coisas nos seus lugares. E se for non liquet, o problema, então, entre nós, não é non liquet de mais, mas, sim, non liquet de menos: o Poder Judiciário precisa fazer regime.

Quando se admite a ideia, hoje diuturnamente confirmada pela prática, de que o Judiciário é o baluarte de tudo, e para tudo, então o governo que se tem é o governo dos juízes. Algo que, embora ostensivo, não se instala explicitamente, nem se arma numa tomada abrupta. Antes, é algo lento, paulatino, crescente, que vem com pés de pombo, e vai fincando raízes e ganhando corpo gradativamente, decisão por decisão, invasão por invasão. Tudo isso amparado por uma sofisticada engrenagem de formação da opinião pública, estruturada num refinado aparato ideológico.

A academia – e isso não é só daqui; nós apenas tropicalizamos o fenômeno, ao modo nosso macunaímico de improvisar puxadinhos ora aqui, ora ali, ora acolá – sustenta esse governo; ela é que lhe fornece a munição teórica; a academia, enfim, é o manancial do ativismo. É que o ativismo está calcado no principismo, uma espécie de catapora jurídica, num surto (mundial, diga-se) que já perdura por uns 50 anos. E a academia é o laboratório, pródigo e engenhoso, dessa patologia infantil.

Heidegger viu o ser, o que ninguém tinha visto, antes dele, em 25 séculos de civilização ocidental ... Se há, então, o ser, e se o ente, o que aparece e se revela, é diferente dele, cabe ao intérprete, isto é, a qualquer um, desvelar a verdade, em meio a essa “abertura do ser”. Não poderia haver filosofia mais encantatória e sedutora para a intelligentsia, em especial para a nossa academia tupiniquim. E o enredo para qualquer carnaval já estava montado: se existe, enfim, o ser, dizem os scholars, inebriados desse germanismo prolixo, é preciso, então, jogar os dados hermenêuticos.

O problema, antes de mais nada, é que cada intérprete tem o seu. O ser, afinal, disse o próprio guru da Floresta Negra, é o meu ser (“Ser e Tempo”). Na prática, então, em meio a tanta vacuidade e misticismo – de alguma forma, o homem sempre acaba por ceder e retornar à ideia do absoluto –, o principismo confere poderes quase que ilimitados, ou de difícil controle, ao intérprete. A pretexto de interpretar, em meio a uma profusão de caminhos, tudo, então, é racionalmente possível (o racional, aqui, efetivamente, tornou-se real, e o real é racional).

O problema, depois, é que – e aqui já se adentra mais especificamente a seara jurisdicional –, se ninguém escapa ao círculo hermenêutico, e se viver, em ultima ratio, é interpretar, e interpretar, por sua vez, é criar, no sentido de atribuir sentido à vida, o fato é que, seja como for, o magistrado exerce poder, e todo poder é limitado. A vida, afinal, é real, mais real do que a poesia. A vida criativa, então, vale para a sua vida privada. Ali, enquanto pessoa, dotada de dignidade para ser livre, ele tem autonomia para conferir, perseguir e implementar o melhor significado que possa atribuir à existência. Mas não como julgador, e não para os outros. A Constituição não lhe uma tal procuração com poderes indeterminados. O “ser hermenêutico” não pode ser um cheque em branco teórico, nem muito menos uma página aberta para ele desenhar, nela, a sentença que bem entender, com as cores que lhe parecerem mais belas. Sob o prisma filosófico, diz-se constitutiva a sentença (e, nessa medida, criativa) pelo simples motivo de que, antes dela, não havia um veredito, e depois dela, sim. Mas ela não é constitutiva, nem criativa, no sentido de que o magistrado possa criar o que lhe parecer bom.

O problema, por fim (num final provisório, é claro, porque a enumeração não poderia seguir aqui em reticências), é que, aliada a toda essa obscura ideologia hermenêutica da “abertura do ser”, e de todo protagonismo platônico conferido por ela ao intérprete-sacerdote, tem-se a pós-moderna profusão de normas, de todos os escalões (constitucionais, infraconstitucionais, infralegais, regulatórias etc.), em todos os setores – numa artilharia frenética absolutamente impossível de ser acompanhada, quanto mais digerida. Tudo somado, com um tal pacote, assim tão vasto, e com instrumentos tão abertos, não é difícil direcionar o resultado do “labor hermenêutico” para onde se quiser, ao sabor dos ventos políticos, ou de idiossincrasias pessoais, ou de visões de mundo.

Já se tem, então, o resultado (que se quer); o que ainda não se sabe, de antemão, é como obtê-lo - mas isso são detalhes, e o aparato principiológico está aí, prêt-a-porter, para provê-los. Então não há propriamente julgamento, mas atos de poder, que são atos de vontade. Então a Justiça se politiza, e se politiza cada vez mais, e vira espaço para desfile de ideologias. Então o poder de dizer tudo, no exercício de dizê-lo, absorve e esvazia, na prática, todo e qualquer outro poder, e torna-se o poder supremo. Nada é seguro antes do Poder Judiciário. Aliás, nada é seguro, nem confiável, nem antes, nem depois do Judiciário. Mudam-se as composições, mudam-se os magistrados, mudam-se os governos, e com isso mudam-se os humores, mudam-se as ideias, e mudam-se as interpretações, às vezes no espaço de meses. Depois, ainda, quando menos se espera, relativiza-se a coisa julgada, vem a rescisória, e tudo volta à estaca zero: a partida só acaba quando o Poder Público ganha.

Nesse contexto, se o poder quer sempre mais poder, porque o ser quer sempre ser mais, tem-se aí, nesse fundamento conectado com o infinito, a justificativa para qualquer excesso. Todos, então, podem tudo, porque há princípios para tudo, e para qualquer lado, basta, então, invocá-los, com ares de circunspecção – o tom inusitado a que se assiste hoje é de magistrados que falam como se fizessem comícios. E se o Supremo Tribunal Federal, no topo desse governo, pode julgar “o que” quiser, “como” quiser, “quanto” quiser, e até mesmo – basta ver o inquérito das Fake News – “quando” quiser (o ativismo se desenvolve nessas direções), então o Superior Tribunal de Justiça também pode, e os demais tribunais de igual modo, assim como todo e qualquer juiz singular. A carta branca para livre e criativamente agir, sem accountability, vem de cima.

Em si mesmo, portanto, na sua face concreta, o ativismo não é acadêmico, ele é real: ele interfere na vida das pessoas. Um fenômeno de poder que deve ser examinado e compreendido, não nos laudatórios e abstratos livros e artigos acadêmicos, mas no dia a dia da realidade forense. No seu discurso de posse na presidência do STF, o ministro Luiz Fux disse não existir, entre nós, um governo dos juízes. A fala, no entanto, é sintomática. O simples fato de o presidente da mais alta Corte ter de vir a público para tentar negar o óbvio só revela e reforça, na prática, a realidade contrária, percebida e padecida pela sociedade. Do STF, aliás, é escusado falar em ativismo. Difícil, ao revés, é dizer quando, nos últimos longos anos, houve, ali, julgamento efetivo, e não criacionismo (quando há, aliás, grassa aceso e generalizado dissenso social, vide o caso “André do Rap”). E o STJ, também não de ontem, segue seu encalço. Dois exemplos, de hoje, bem ilustram isso:

I) O primeiro é de linhagem soft-theoretical, de ativismo como justiça distributiva, materializada em julgamento por equidade, a partir de uma intepretação essencialista, que visa alcançar a “verdade do ser”. Tratava-se ali de julgar quais coberturas estavam previstas em apólices de seguro, firmadas na década de 70, com quitação conferida antes de 1991, isto é, antes do CDC (e algumas poucas antes de 2003, isto é, antes do CC/02). Postulavam os autores, em demanda proposta em 2011, que a cobertura securitária abrangesse também vícios de construção do imóvel. O tribunal local, estribado nos fatos e provas da lide, notadamente nos instrumentos do contrato de seguro, assentou que tal risco não só não estava coberto, como, antes, estava expressamente excluído. O caso chegou então ao STJ, em 2020, e foi afetado à Segunda Seção (REsp nº 1.804.965/SP). E o STJ, ao julgá-lo, numa interpretação criacionista, invocando a essência platônica do contrato de seguro (algo como a cavalidade do cavalo, aqui seria a seguridade do seguro), julgou não o que fora estabelecido, de acordo com a liberdade de contratar, e assentado pelo tribunal local, mas o que, ex hyphotesi, deveria ter sido contratado, desde o início. Com isso, o STJ definiu, preencheu e coloriu, sponte sua, com base nos princípios da função social do contrato e da boa-fé objetiva (nenhum deles aplicáveis à hipótese, porque os contratos são anteriores ao CDC e ao CC/02), o conteúdo das apólices, para criar, a pretexto de interpretar, uma obrigação nova, até então inexistente. O quadro, portanto, é de alta delicadeza constitucional e republicana: depois de 45 anos, o STJ decretou, por acórdão, como se fora um edito, o que deveria ter sido num contrato. Cerceou, assim: (I) a liberdade de contratar (CF, arts. 5º, II, e 170, caput e II); e, com isso, (II) solapou a segurança jurídica (CF, art. 5º, caput); além disso, (III) agiu, é claro, como legislador, um legislador equânime, que define o espírito da lei, em violação à separação de poderes (CF, art. 2º); e acima de tudo, (IV) violou a garantia da irretroatividade da lei, que protege o ato jurídico perfeito contra leis ou interpretações pretéritas de lei (CF, art. 5º, XXXVI); em suma, (V) alterou-se a natureza do seguro contratado em nome da boa-fé objetiva e da função social do contrato, de acordo com a visão de mundo do intérprete, num contexto em que a própria base principiológica sob a qual se assentavam os contratos era substancialmente outra. Trata-se, pois, aqui, de genuíno exemplo de ativismo no “como” e no “quanto”: julga-se contra os fatos, mas por princípios, que servem de instrumento para fixação de direito novo, com eficácia pretérita, ao ponto de aniquilar a liberdade de contratar e a segurança de que o que se contratou será respeitado. Tudo, enfim, é possível, e se a realidade revela outra coisa, às favas com ela, e vida longa à teoria;

II) O segundo é de linhagem hard-old fashioned, de ativismo velha guarda, como sinônimo de um fiat arbitrário, martelado de cima para baixo, e que invoca, como supedâneo teórico, ainda hoje vezeiro em nossa tradição, tanto pretoriana quanto doutrinária, os arrimos subterrâneos, e não escritos, do nosso velho regime, que resiste, intacto, há mais de século, invencível a todas as alterações constitucionais, e que bem dá o tom da nossa convivência, isto é, os princípios da suposta supremacia do poder público, da sua suposta indisponibilidade, e da sua suposta presunção de legalidade. Essa, com efeito, é a senha para, de longa data e ainda hoje, por mais obsoleto que seja, a implementação de atos de desvio e abuso de poder. No caso, tem-se que um Prefeito está, há anos, pessoal, aberta e declaradamente empenhado – como promessa demagoga de campanha à reeleição, difundida por ele por meio de massivas e falaciosas propagandas, já várias vezes julgadas ilícitas por órgãos administrativos (ECAD) – em aniquilar, de modo autoritário, sem o devido processo legal, a concessão de um pedágio localizado em rodovia municipal, que, por óbvio, se assenta num contrato, celebrado com o próprio Poder Público há mais de 20 anos. Tudo somado (vias administrativa e judicial), 21 decisões (de magistrados locais, do tribunal local, do STJ, e do STF) já foram proferidas contra todas as medidas autoritárias e unilaterais de assédio de poder implementadas pelo Prefeito, nas suas mais diversas ondas de ataque – e foram três: cancelamento unilateral da concessão, destruição manu militari da praça de pedágio e, por fim, encampação inconstitucional (aqui, inclusive, o STF e o STJ, em sede de suspensão de liminar, já haviam afastado a pretensão do Prefeito, negando seguimento, por ser manifestamente improcedente o pedido). Mas ele tenta fazer da Justiça um jogo de azar, de tentativa e erro. E a água mole, aqui, acabou por furar a pedra dura. Na quarta tentativa perante o STJ ele obteve a tão perseguida liminar, após recente alteração da presidência ali, em genuína hipótese de assédio processual, novamente em sede de Suspensão de Liminar (SL nº 2.792/RJ), a quarta naquela altura, cujo objeto versa sobre 3 decisões proferidas há mais de 9 meses (uma delas, inclusive, em sede de controle concentrado de constitucionalidade), e que impediam a arbitrariedade de se encampar uma concessão de pedágio sem devido processo legal e sem indenização prévia e justa, em dinheiro, ou de dar por cancelado, antecipada e unilateralmente, o referido contrato de concessão. De fato, a nova presidência do STJ, às vésperas das eleições, acolheu, monocraticamente, essa pretensão (a nova moda agora dos tribunais de cúpula). Mudou o Presidente, mudou o entendimento. Com isso, admitiu-se, de cima para baixo, prima facie, em sede de suspensão de liminar, a encampação de um serviço cuja regularidade do contrato no qual se assenta é objeto de amplo contencioso judicial, com mais de 21 decisões já proferidas, por todos os órgãos e instâncias do Poder Judiciário nacional. Ou seja, determina-se, por um fiat arbitrário, que a encampação se dê à míngua do devido processo legal (já posta, já instaurado, e já em curso, perante as instâncias ordinárias), a partir de uma decisão judicial imposta de cima para baixo, e não amadurecida, como deve ser, de baixo para cima. O Estado de Direito, com arrimo na garantia de um processo justo, foi aniquilado ali. E a segurança jurídica, nesse cenário, também evidentemente é zero, não só à luz do caso concreto, como notadamente da mensagem passada pela decisão: o contrato, no Brasil, vale muito pouco, ou quase nada, mesmo que sobre ele haja dezenas de decisões anteriores sobre a retidão das obrigações nele firmadas. Nessa linha, a segurança econômica é substancialmente negativa, na medida em que, na vida real, além de já haver inúmeras repercussões concretas (como é até mesmo intuitivo), quem tem dinheiro (nacional ou estrangeiro) não o aplicará num ambiente tão agreste, com práticas obscurantistas tão recuadas em relação ao avanço civilizatório. Aqui, portanto, tem-se um exemplo de ativismo no “que” e no “quando”: o magistrado entendeu que não só poderia, monocraticamente, em sede de suspensão de liminar, adentrar e resolver, simplesmente, e de uma vez, uma matéria complexa, que demanda ampla produção probatória, inclusive com perícia, mas, sobretudo, que poderia fazê-lo desde já, ali e agora, na sede estreita, e absolutamente controvertida, de suspensão de liminar, que nem é recurso, nem ação, nem nada mais do que uma linha direta do Poder Público à cúpula do Poder Judiciário.

Houve um tempo em que se dizia do juiz “a boca que pronuncia a palavra da lei”. Aludir a isso, hoje, é ser execrado intelectualmente pelos scholars, ao menos in terrae brasilis. Nos E.U.A., no entanto, a recém empossada juíza Amy Vivian Coney Barrett, ao citar Antonin Scalia, reafirmou que “a filosofia judicial dele também é a minha: um juiz deve aplicar a lei como está escrita. Os juízes não são formuladores de políticas.”2 É um pensamento simples e basilar que deriva diretamente da própria ideia de Constituição, e de uma Constituição Republicana, calcada num Estado de Direito, cujo governo “is a government of laws, not of men.”3 Há, nessa filosofia judiciária, uma sabedoria e uma prudência implicadas. Muitas vezes, quando duas partes litigam, e uma diz, oportunamente, ao final da relação, que o que foi, não foi bem o que foi, mas outra coisa, é preciso que haja um terceiro neutro que simplesmente diga que o que foi, foi justamente aquilo mesmo que foi, e nada diferente daquilo que foi. Ou, no limite, que o que foi, não foi validamente constituído. Mas hoje uma demanda é posta, entre nós, e não se sabe que rumo ele tomará, nem que fim terá. Em breve, é certo, chegaremos ao nível do ridículo. Por ora, nos refastelamos no da banalidade. É que o Direito não é mais uma infraestrutura que garante o curso da vida. O Direito convolou-se numa superestrutura quase que sagrada, de foros sacerdotais, a dominar a vida, com super poderes de ligar e desligar todas as coisas debaixo do sol. A burocracia é que diz o que é a vida. É o Iluminismo Público que nos coube, a nós, que nunca tivemos um. A nossa indigência começa aí.

Então, de um lado, no desfile principista, para os aplausos da academia, atualizam-se as juvenis pautas de “Malhação”; de outro, reforça-se, como nunca – basta consultar as estatísticas oficiais –, o ambiente fazendário, talvez o mais ferrenho, como jamais terá havido antes, em que o Poder Público, para proteger sua arca, quer dizer, para se proteger, só perde quando perder não é muito; e do outro lado ainda (o mosaico é múltiplo), mira-se na iniciativa privada, cerceia-se a liberdade de contratar, hipostasia-se o CDC e normas quejandas, para se desviar a mira das omissões do Poder Público, diluem-se as garantias individuais, e corta-se o incentivo à liberdade de fazer (o importante é “ser”), com a propagação, numa sequência atávica, agônica e talvez incurável, de todos esses prejuízos medievais de que a burokracia se serve e sempre se serviu para manter esse estado total e dominante que temos instalado entre nós desde a origem da nossa República, calcado no princípio da autoridade, e que ainda hoje granjeiam expressivo eco na sociedade e na mídia.

Enquanto isso, impostos (o preço da liberdade, dizem), na prática, são doações – não há nenhum retorno para a sociedade, que deve lutar para subsistir, ao mesmo tempo em que sustenta as regalias do Poder Público; a r(R)eceita é muito bem desenhada: não tem cheiro para embolsar – pecunia non olet – e sem vinculação para degustar; enquanto isso, e por isso mesmo, as carreiras públicas são as mais rentáveis – num direcionamento existencial das novas gerações para perpetuarem esse ciclo vicioso do atraso; enquanto isso, 13,5 milhões de desempregados4 – o que revela a falência do nosso modelo de produção, sufocado pelo gigantismo do Velho Regime; enquanto isso, e o mais cruel, cerca de 40% das cidades brasileiras não tem esgoto5 e aproximadamente 16% da população brasileira não tem água6 (cerca de 35 milhões de brasileiros, mais de 3 vezes a população de Portugal) – não há, portanto, nível mínimo, quer dizer, não há mesmo perspectivas mínimas de cidadania para parcela significativa da população brasileira. A hipocrisia é o pecado capital da política, para o qual realmente não há perdão, porque eles sabem muito bom o que fazem. O nosso Velho Regime, como é próprio dele, assenta-se na difusão e promoção da pobreza e da ignorância; estas o sustentam, nutrem e engordam. Sem elas, afinal, não há promessa de salvação pública. Esse é o saldo, depois de mais 30 anos, da Constituição de 88, a Constituição dos abnegados, a Constituição cidadã ...

A felicidade, definitivamente, não está no público – Hannah Arendt estava errada. Mas a “felicidade-está-no-público” fez, entre nós, a felicidade do Poder Público. O ativismo, portanto, não tem nada de novo. Ele é tão velho quanto à “Constituição 1984” de 1988, que nasceu obsoleta, e tão velho quanto a nossa tradição autoritária, com a qual a “Constituição 1984” de 88 não rompeu, mas aperfeiçoou. O ativismo não é mais do que uma nova acomodação das camadas internas e profundas da organização do poder, agora com o protagonismo do Judiciário, para que ele possa se perpetuar intacto. O ativismo se explica pelo nosso gosto pelo absoluto e pelo nosso pendor pelo servilismo.,

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1 SCALIA, Antonin, Natural law, in The vocation of a judge, New York, Crown Forum, 2017, p. 178.

3 Scalia, Antonin, Natural law, in The vocation of a judge, New York, Crown Forum, 2017, p. 178.

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*Bruno Di Marino é advogado do Basilio Advogados.






*Álvaro Ferraz é advogado do Basilio Advogados.

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