Há um número crescente de ações na justiça em desfavor de hospitais por erros médicos ou falhas na prestação do serviço hospitalar. Dados colhidos entre 2008 e 2017 pelo CNJ, revelam que o número de demandas judiciais relativas à saúde registrou um aumento de 130%. O estudo mostrou ainda que, no mesmo período, o número total de processos judiciais cresceu 50%.
Diante dos dados alarmantes, cresce a importância de se entender a responsabilidade civil dos hospitais e dos médicos e quais seus requisitos legais.
A responsabilidade do hospital não é um assunto muito simples, como parece ser. Ao contrário do que muitos pensam, não se pode presumir a culpa do Hospital, ou aplicar a teoria do risco empresarial, diante das peculiaridades que envolvem a natureza do serviço prestado.
A doutrina costuma diferenciar a responsabilidade contratual e responsabilidade extracontratual (a decorrente da prática de ato ilícito causador de prejuízo).
Quando uma pessoa vai ao Hospital espera-se que este preste os serviços necessários ao internamento, cabendo ao mesmo fornecer toda a sua estrutura para o cuidado do paciente. Aqui podemos falar na responsabilidade contratual.
Existe ainda a responsabilidade extracontratual (aquiliana), que é quando não existe contrato entre as partes. Uma das partes pratica um ato ilícito que é contrário ao ordenamento jurídico e se verificado o dano, haverá a obrigação de indenizar, desde que presentes os requisitos da responsabilidade civil (culpa e nexo causal).
A doutrina costuma dizer que a responsabilidade do hospital é objetiva, independente de culpa, com base nos dispositivos do Código de Defesa do Consumidor. Porém, a mesma merece ser analisada corretamente, afim de evitar a injustiça no caso concreto.
O Hospital não responde por todo e qualquer evento ocorrido em suas dependências.
Quando provada a culpa médica, o Hospital responderá objetivamente, sem que haja necessidade de o paciente demonstrar a culpa do Hospital, que responderá solidariamente com esse pelos danos causados, independente de o Hospital, enquanto pessoa jurídica, tiver praticado atos culposos, conforme o artigo 14, §4º, do Código de Defesa do Consumidor.
A contrário sensu, se não for provada a culpa médica, não deverá o hospital responder objetivamente pelo erro médico, por exemplo, visto que foge do seu âmbito de proteção o evento danoso. A exceção é para os caso de atos extramédicos, preponderantemente ligados à hotelaria hospitalar particular, como mau funcionamento de equipamentos, segurança do paciente e etc, visto que, o hospital desenvolve uma atividade negocial com o intuito de lucro, devendo responder o estabelecimento de forma objetiva, independente de culpa, nos moldes do art. 3º e 14 do CDC. Da mesma forma devemos tratar os atos paramédicos, em geral praticados pela enfermagem e outros profissionais da saúde.
Confira a jurisprudência sobre o tema.
(...) 4. A responsabilidade objetiva para o prestador de serviço, prevista no art. 14 do CDC, na hipótese de tratar-se de hospital, limita-se aos serviços relacionados ao estabelecimento empresarial, tais como estadia do paciente (internação e alimentação), instalações, equipamentos e serviços auxiliares (enfermagem, exames, radiologia). (...)Em contrapartida, a responsabilidade dos hospitais, no que tange à atuação dos médicos contratados que neles laboram, é subjetiva, dependendo da demonstração de culpa do preposto, não se podendo, portanto, excluir a culpa do médico e responsabilizar objetivamente o hospital. STJ - RECURSO ESPECIAL Nº 1.704.511 - RS (2017/0146301-1). RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI.
A responsabilidade do médico deve ser analisada com cautela. O médico, ao atender o paciente, se compromete a usar todas as técnicas medicinais conhecidas para o tratamento do mesmo. Já no século XIX, a doutrina francesa trouxe a importante contribuição da distinção entre obrigações de meios e obrigações de resultado, esclarecendo que o contrato de prestação de serviços médicos gera a obrigação de empreender os melhores esforços no sentido da cura do paciente, mas não de efetivamente alcançá-la. O contrato de tratamento médico é, portanto, uma obrigação de meio.
Para que se evidencie o erro médico, é necessário que o paciente prove que o mesmo agiu com culpa(negligência, imperícia ou imprudência), a existência do ato ilícito, do dano e do nexo de causalidade(que o dano foi provocado pelo ato ilícito).
A prova da culpa é elemento essencial para a caracterização do erro médico, visto que esta responsabilidade é subjetiva e personalíssima. Confira a doutrina de Maria Helena Diniz abaixo colacionada.
Segundo Maria Helena Diniz (2006, pág. 46), a culpa é definida como: "A culpa em sentido amplo, como violação de um dever jurídico, imputável a alguém, em decorrência de fato intencional ou de omissão de diligência ou cautela, compreende: o dolo, que á a violação intencional do dever jurídico, e a culpa em sentido estrito [01], caracterizada pela imperícia, imprudência ou negligência, sem qualquer deliberação de violar o dever. A imperícia é a falta de habilidade ou inaptidão para praticar certo ato; a negligência é a inobservância de normas que nos ordenam agir com atenção, capacidade, solicitude e discernimento; e a imperícia é precipitação ou o ato de proceder sem cautela."
Dito isso, podemos considerar a perícia médica judicial como a mais importante prova a ser utilizada pelo pacientes nas ações judiciais, afim de instruir os autos e provas os danos suportados em razão do ato ilícito praticado pelo médico.
A referida prova é realizada por um médico indicado pelo juízo, que apresentará laudo, informando, segundo seu entendimento, se o procedimento do médico-réu foi correto, bem como se há no autor alguma sequela e sua gravidade.
Vale lembrar que o STJ já decidiu, em diversos casos, que o órgão julgador não está adstrito ao laudo pericial, podendo formar a sua convicção com base em outros elementos de prova(prova testemunhal e documentação, por exemplo), desde que o faça de forma fundamentada, conforme se observa no AgInt nos EDcl no AREsp 785.545/SP, de Relatoria do Ministro Benedito Gonçalves.
Pode ser que o dano experimentado pela vítima não seja oriundo da conduta do médico e portanto, este não terá obrigação de indenizá-lo.
Confira os casos de excludentes de responsabilidade civil médica.
Iatrogenia. Segundo Lacaz (1980, p. 4) “Iatrogenia é o mal que vem da tentativa de salvação”. Assim, caso haja dano ao paciente e o mesmo se deu em função das tentativas do médico em curar o mesmo, usando da literatura médica disponível, estaremos diante da iatrogenia.
Assim, muitas vezes não caberá a responsabilidade médica no caso de iatrogenia stricto sensu, visto que o dano, neste caso, pode ser previsível, sendo que o médico utiliza todos os meios que estavam a seu alcance para tentar salvar o paciente, não incidindo em erro médico, conforme já decidiu o STJ no AREsp: 536927 - SC 2014/0142287-1.
Reação orgânica. Pode ser que o médico tenha atentado a todas as diligências necessárias para a cura do paciente e, mesmo assim, o dano venha a ocorrer diante de uma reação do organismo.
Alguns pacientes podem ter variações anatômicas imprevisíveis em relação a normalidade, que são impossíveis de prever, uma vez que as reações orgânicas dos pacientes ao tratamento variam de pessoa para pessoa.
Assim, essas variações constituem uma excludente de responsabilidade do médico, visto que o mesmo não tem como controlá-la, conforme já decidiu o TJ/SP na Apelação de 202734220068260405.
Farmacocinética. Conforme pesquisa no Wikipedia, a Farmacocinética é o "caminho" que o medicamento segue no organismo de seres vivos como humanos. Se trata das etapas que a droga sofre desde a administração, introdução do fármaco no organismo como tomar um comprimido, até a excreção, processo pela qual o fármaco deixa o organismo definitivamente, que são: administração, absorção, biotransformação, biodisponibilidade e excreção.
Assim, se o dano foi provocado pela má absorção do remédio prescrito, por exemplo, não há que se falar em responsabilidade civil do médico, visto que o mesmo não contribuiu para o evento danoso, indicando apenas a dosagem da medicação conforme o fabricante.
Culpa exclusiva do paciente. A culpa exclusiva da vítima é a ação ou omissão voluntária do paciente que causa o evento danoso, desrespeitando a recomendação médica ou deixando de fazer aquilo que a mesma determina. Um caso elucidativo é no caso do médico que receita que determinado paciente tome a medicação por uma semana e o mesmo toma durante dois meses, falecendo logo em seguida diante dos efeitos adversos.
Fato de terceiro. O fato de terceiro é a ação ou omissão de terceiro estranho na relação médico-paciente, que contribui para o evento danoso. Podemos citar como exemplo o filho que, desrespeitando a recomendação médica, retira o pai do hospital para ficar com a família e este acaba falecendo.
Caso fortuito ou força maior. Rogério Tadeu Romano, citando Caio Mario, diz que “No ensinamento de Caio Mário da Silva Pereira (Instituições de direito civil, volume II, 1976, pág. 299), costuma-se dizer que o caso fortuito é o acontecimento natural, ou o evento derivado da força na natureza, ou o fato das coisas, como o raio do céu, a inundação, o terremoto. Por sua vez, conceitua-se a força maior como o damnu fatale originado do fato de outrem, como a invasão de território, a guerra ou a revolução, o ato emanado da autoridade, chamado de factum principis, a desapropriação, o furto etc.
Um médico não pode ser responsabilidade se, por exemplo, o hospital sofre uma inundação durante um procedimento ou se o Governo corta a luz indevidamente durante a realização de uma cirurgia emergencial, apesar de o hospital poder ser responsabilizado, conforme o caso concreto.
Resultado Incontrolável. É aquele decorrente de um resultado danoso proveniente da evolução maligna do quadro médico, para o qual as condições atuais da ciência e a capacidade profissional ainda não oferecem solução. Não poderá o médico ser responsabilizado neste caso.
Assim, tanto no caso da responsabilidade hospitalar quanto na responsabilidade médica, deve-se observar requisitos para a sua caracterização, afim de evitar a injustiça no caso concreto, visto que não basta que o dano exista, é preciso que este dano seja ocasionado pela conduta do nosocômio ou do médico, evitando, assim, a judicialização indevida da saúde.
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Demandas judiciais relativas à saúde crescem 130% em dez anos Acesso em 07/10/2020 à 09:3007/10/2020 à 09:50
A relação médico-paciente caracteriza relação de consumo?. Acesso em 07/10/2020 à 09:3007/10/2020 à 09:40
Breves considerações sobre a responsabilidade civil dos hospitais. Acesso em 07/10/2020 à 09:3007/10/2020 à 09:00.
MITIDIERO, Daniel. ARENHART, Sérgio Cruz. MARINONI, Luiz Guilherme. Novo Código de Processo Civil Comentado - Ed. RT, 2017. Versão e-book, Art. 371.
AgInt nos EDcl no AREsp 785.545/SP, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, julgado em 20/02/2018, DJe 06/03/2018
O erro médico e a responsabilidade civil. Humberto Theodoro Júnior. Disponível aqui. acesso em 07/10/2020 à 09:30)
1 DEMOGUE, René. Traité des obligations en général. Paris: Arthur Rousseau, 1923. passim. R. Dir. sanit., São Paulo, v. 14, n. 2, p. 137-151, jul./out. 2013. Fato da técnica e responsabilidade civil do médico.
ROMANO, Rogério Tadeu. Disponível aqui.
KFOURI NETO, Miguel. Culpa Médica e Ônus da Prova. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. P. 365
TJ-SP – APL: 202734220068260405 SP 0020273-42.2006.8.26.0405, Relator: Rui Cascaldi, Data de Julgamento: 07/08/2012, 1 Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 09/08/2012.
Farmacocinética. Acesso em 07/10/2020 à 09:3007/10/2020 à 10:00.
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, Vol. 7 – Responsabilidade Civil, Ed. Saraiva, 18ª ed., pág. 46.
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*Lucas Andrade Araripe é formado em direito pela Universidade Católica do Salvador, Pós-Graduado em Direito Privado e ex-Procurador Municipal.