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De olhos fechados pra te ver melhor: a responsabilidade das empresas no combate ao racismo

“Suavemente prá poder rasgar, Olho fechado prá te ver melhor, Com alegria prá poder chorar, Desesperado prá ter paciência, Carinhoso prá poder ferir, Lentamente prá não atrasar” - Trecho da música Tô, de Tom Zé

19/10/2020

Nos últimos dias assistimos, estarrecidos, o desenrolar de mais um capítulo em relação à discriminação estrutural e institucional racial em nosso país, agudizada em momentos de crise, como o atual.

O conceito de discriminação estrutural tem sido adotado pelo sistema interamericano de direitos humanos e utilizado pela Corte Interamericana para condenação dos Estados, inclusive do Brasil (caso Trabalhadores Fazenda Brasil Verde, 2016). Em diálogo com o sistema ONU1, a discriminação estrutural é aquela inerente a` ordem social, às suas estruturas e mecanismos jurídicos, institucionalizada em todos os âmbitos da sociedade e resulta em práticas discriminatórias.2 Uma das vertentes importantes dessa discriminação é o racismo estrutural.

O palco para apresentação do racismo estrutural, em sua forma mais crua, foi montado depois que uma conhecida empresa nacional publicou a chamada para seu programa de trainees, com desenho para atender somente candidatos negros e candidatas negras.

A chamada da iniciativa para contratação exclusiva de pessoas negras não explicou as razões para esse recorte por raça, mas em um país com tamanha desigualdade marcada pelo elemento racial, já que quase 80% das pessoas mais pobres são negras, não é difícil imaginar que o programa de trainees tenha sido criado porque a empresa entende que tem um direito legítimo de perseguir uma maior diversidade em seus quadros. No mais, numa visão jurídica, é possível entender que, ao invés de violar normas, a iniciativa é um exercício do dever empresarial de proteção e promoção dos direitos humanos, dever este alicerçado na Constituição e nos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.

O cenário do palco em que o racismo estrutural realizava sua performance ganhou ares de institucionalidade, com a propositura, por um defensor público federal, de uma ação civil pública visando anular a iniciativa da empresa. Entre tantas premissas veiculadas na peça judicial, as duas centrais são: a diferença de capacidade por questão racial; e a de que o programa foi criado com esse fundamento. Consta na ação: “Até mesmo os cidadãos negros podem se sentir ofendidos e diminuídos, porquanto entre eles há os que pensam que a medida da ré pressupõe certa incapacidade, obviamente inexistente no mundo dos fatos.” Assim, a argumentação da ação civil pública está alicerçada na ideia de que existiria o chamado racismo inverso, algo muito bem combatido por Djamila Ribeiro, que pontuou que falar em racismo reverso é acreditar em unicórnios!

Em 13 de outubro, foi noticiado que o defensor público signatário da ação pediu afastamento do trabalho e proteção policial. Alguns dias antes, a Defensoria Pública da União havia esclarecido que a posição do autor da ACP contra a empresa encontrava respaldo no princípio da independência funcional, e que sua atuação não traduzia a visão da instituição, defensora dos direitos humanos e de cotas para pessoas negras. No entanto, é inegável a perplexidade causada pela iniciativa, tanto porque é emanada de um ator estatal; como porque visa questionar judicialmente uma empresa que assume e reconhece sua responsabilidade em relação aos direitos humanos, pela implementação de programa que visa reduzir a desigualdade entre pessoas brancas e negras.

O Estado, por todos os seus Poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário - tem a obrigação assentada em direito internacional de proteção dos direitos humanos em face de atos de terceiro. Assim, nesse contexto que discute as relações das empresas com direitos humanos, a obrigação do Estado é tomar todas as medidas legislativas, administrativas, de políticas públicas e judiciais que assegurem que um terceiro – a empresa - não violará um direito humano.

A relação de empresas com direitos humanos é discutida há muitos anos na seara internacional. Em um primeiro momento, a questão ganhou força quando se reconhece que as empresas, ao lado de serem um veículo de desenvolvimento, também podem adotar condutas que impactem negativamente os direitos humanos. Esta constatação levou a discussões no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU) para que se buscasse regulamentar tais atividades econômicas, e apesar da pressão para que essa regulamentação ocorresse de modo vinculante, até hoje, as únicas iniciativas que lograram aprovação foram voluntárias. O tema alcançou momentum em 2011, quando o Conselho de Direitos Humanos aprovou os Princípios Orientadores para Empresas e Direitos Humanos.

Até agora, a discussão no cenário local indicava que um dos grandes desafios na concretização da responsabilidade das empresas na proteção e promoção de direitos humanos era encontrar mecanismos que conciliassem a liberdade econômica, a livre iniciativa e a função social da propriedade com a adesão à pauta dos direitos humanos. Os estudiosos buscavam encontrar um caminho entre cumprimento voluntário pelas corporações e a possibilidade de judicialização, para os casos que se enquadrassem numa violação por omissão ou por inércia.

No relatório produzido pela Comissão Internacional de Juristas em colaboração com a Conectas Direitos Humanos, intitulado Acesso à Justiça: violações de Direitos Humanos por Empresas/Brasil, dentre as barreiras ao acesso à justiça para responsabilização de empresas são: custo, morosidade da justiça, desconhecimento de direitos, ausência de escritórios de advocacia que defendam este tipo de causa, falta de cultura de precedentes e descumprimento de Termos de Ajustamento de Condutas.

A empresa que gerou toda a celeuma está, em verdade, dando um passo além da filantropia que tantas outras usam como ferramenta de marketing e adotando uma ação concreta que vai ao encontro do marco internacional atual sobre o tema, atuando para combater o racismo estrutural. Também aqui não há purismo: empresas com mais diversidade tem se destacado no mercado consumidor mais exigente.

A reação de uma parcela da sociedade, ao se manifestar contrariamente a esta iniciativa, inclusive com a judicialização, põe às claras o quanto ainda precisamos evoluir na compreensão de como as estruturas atuais de discriminação foram estabelecidas. Como cantaria Tom Zé: “Eu tô de explicando pra te confudir; estou te confundindo pra te esclarecer”

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1 COMITÊ CEDAW. Recomendação Geral 19 (1992): Violência Contra Mulheres. Doc. HRI/GEN/ Rev.7, § 10; COMITÊ CESCR. Observações Conclusivas sobre a Guatemala. Doc. ONU: E/C.12/1/ Add.3, § 33.

2 CIDH. Caso Simone André Diniz vs. Brasil, petição 12.001. Aprovado pelo Relatório 66/06, em 21/11/06.

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*Melina Girardi Fachin é doutora em Direito Constitucional PUC/SP. Mestre em Direito pela PUC/SP. Sócia fundadora do escritório Fachin Advogados Associados.





*Inês Virgínia Prado Soares é desembargadora Federal no TRF da 3ª Região - SP. Mestre e doutora em Direito pela PUC/SP. Pós-doutora no Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo. Especialista em Direito Sanitário pela UnB.




*Danielle Anne Pamplona é professora titular do Programa de Pós-graduação em Direito da PUC/PR. Doutora em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Vice-Diretora do braço latino americano da Global Business and Human Rights Scholars Association.

 

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