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Cessão de créditos originados de contratos administrativos: Enfim, uma possibilidade segura e incentivada pelo Poder Público

Ninguém duvida da importância das contratações públicas para a economia de qualquer sociedade.

16/10/2020

Questão da mais alta importância para os particulares que empreendem no universo das contratações públicas, independente da conjuntura econômica, é saber se o crédito que se originou de um ajuste negocial firmado com o Poder Público e dotado de exigibilidade futura pode ou não ser transmitido a terceiros mediante cessão. 

Ou, no jargão do mercado, se esse recebível pode ser antecipado por meio de uma operação financeira, seja ela de empréstimo atrelada ao crédito dado como garantia (cessão fiduciária), seja de venda propriamente desse crédito.

Ninguém duvida da importância das contratações públicas para a economia de qualquer sociedade. Segundo a Controladoria-Geral da União (PORTAL DA TRANSPARÊNCIA, s./d.), a União Federal contratou no exercício financeiro de 2019, sozinha, exatos R$ 32.405.411.742,10, havendo analistas que afirmam, à luz dessa mesma base de dados, que o volume de dinheiro movimentado pelos contratos celebrados pela Administração direta do ente político central, sem contar autarquias e empresas estatais, supera a casa de R$ 1 trilhão (LOUREIRO, 2020).

Contabilizadas as contratações das demais 27 unidades federadas e dos mais de 5.500 municípios, essa volumosa massa de ativos financeiros chega a se perder de vista.

Quando esses milhares de particulares contratados cumprem a rigor com suas obrigações para com o Poder Público, que inclusive certifica o adimplemento através do "atesto" (liquidação da despesa), nasce-lhes o correspondente direito de receber o preço acordado (crédito).

Ocorre que, ao contrário da dinâmica dos negócios privados, o pagamento desses haveres contratuais é, por lei, burocrático (no sentido weberiano da palavra) e, sobretudo na perspectiva do credor, moroso. Quando não incertos ou até improváveis. Não à toa a União, também sozinha, acumula um estoque de Restos a Pagar (dívidas não quitadas de outros anos) de R$ 180,7 bilhões (TESOURO NACIONAL, s./d.). 

Surge, então, para esses credores que querem (ou mesmo precisam) se capitalizar de imediato à custa desse ativo futuro a seguinte dúvida: posso ceder meu direito de crédito a outras pessoas que não participaram do contrato administrativo? E se sim, preciso da anuência do Poder Público que me contratou?

Essa sempre foi uma questão recorrente e até pouco tempos atrás tormentosa, que gerava muita insegurança jurídica e insatisfação nos titulares desses créditos, que se viam duplamente penalizados: a um, pela demora em receber; a dois, pela impossibilidade (ou alto risco) de negociar esse recebível na praça e, ainda assim, à razão de um elevado deságio.

Com muito acerto a União, assentando-se em premissas jurídicas e econômicas, pacificou de vez essa matéria em ordem a tutelar os credores e, em certa medida, a si própria. Isso porque é sabido que os riscos são embutidos nos custos de transação e, portanto, quanto mais segura a contratação é para o particular, mais vantajoso para a Administração o preço será.

Há, não muito tempo, o Presidente da República Jair Bolsonaro aprovou por despacho (2020, s./p.) manifestações opinativas da Advocacia-Geral da União (AGU) (2019 e 2020, s./p.) que dão o suporte jurídico que faltava para o pagamento a pessoas que, embora não tenham contratado com a Administração Federal, adquiriram, por cessão, créditos de pessoas que contrataram com ela e adimpliram seus encargos.

Despachos presidenciais assim conferem, por lei1, uma força vinculante aos pareceres jurídicos da AGU e obrigam toda a Administração Pública Federal, direta (órgãos) e indireta (autarquias e fundações), à semelhança de uma norma. 

Por isso hoje é induvidoso afirmar que, salvo se houver vedação expressa no instrumento convocatório da licitação (edital) ou em cláusula contratual, aquele que adquiriu um legítimo crédito originado de um contrato administrativo firmado na esfera federal, pagando pelo correspondente deságio, terá a certeza de que a União (Ministérios, Superintendências, Diretorias e repartições em geral) e suas entidades (Autarquias e Fundações) não lhe poderão recusar o pagamento pura e simplesmente em razão do descabimento da cessão de crédito em contratos administrativos.

Afinal, conforme corretamente firmado pelo órgão de consultoria jurídica da União no despacho 00679/2019/DECOR/CGU/AGU, que por sua vez aprovou o parecer 31/2019/DECOR/CGU/AGU:

a cessão de crédito nos contratos administrativos não enseja alteração da contratada, à [sic] qual continuará responsável pela execução do contrato administrativo, nem tampouco compromete a liquidação do valor devido a partir da fiscalização da execução ou inexecução contratual, ou seja, a apuração do pagamento devido à cessionária será precisamente àquele [sic] que seria devido à empresa contratada (cedente).

Porém, a fim de coibir a prática de fraudes (sobretudo contra o próprio Poder Público, terceiros credores e trabalhadores vinculados ao contrato) e possibilitar o controle administrativo dessas operações jurídicas, foram estabelecidas outras condicionantes além da ausência de vedação no edital ou no contrato administrativo, a saber:

a) formalização de termo aditivo ao contrato administrativo, a ser firmado entre a Administração e a contratada, publicado seu extrato na imprensa oficial;

b) atendimento da obrigação contratual de cumprimento de todas as condições de habilitação da licitação por parte da contratada (cedente) e a comprovação de regularidade fiscal e trabalhista da cessionária; e

c) certificação de que a cessionária não foi sancionada com determinadas penalidades administrativas que a impedem de se relacionar contratualmente com o Poder Público2.

Ademais, se é certo que a União, por mais morosa que seja, não traz ao cessionário o perigo da insolvência3, é bom advertir que a cessão desse tipo de crédito não está imune a outros riscos ínsitos ao negócio, como as exceções pessoais que o devedor (Poder Público) poderia opor contra o credor originário (cedente)4. Isto é, o valor do pagamento devido à parte cessionária será precisamente aquele que seria devido à contratada (cedente), incluindo a possibilidade de desconto de multas, glosas, prejuízos causados à Administração, sendo preservada a sistemática da conta-depósito vinculada e do pagamento direto de que cuida o art. 18, § 1º, da instrução normativa SEGES/MP 5 de 2017.

Tampouco essa cessão exime as partes, em especial aquela que adquire o crédito (cessionário), do ônus de notificar5 a Administração devedora, tal como também ocorre para a transmissão de outras espécies de créditos, como os inscritos em precatórios6. Vale enfatizar que essa notificação possui caráter informativo e unilateral, ou seja, não depende a princípio da anuência ou concordância do Poder Público, que só poderá se opor à cessão se possuir justificativas fundadas.

A novidade foi tão bem recebida pela equipe econômica do Governo Federal que pouco tempo depois, em 8 de julho de 2020, a Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do Ministério da Economia foi além e editou a instrução normativa 53, regulamentando os procedimentos para operação de crédito garantida por cessão fiduciária dos direitos de créditos decorrentes de contratos administrativos.

E em data mais recente, no último dia 25 de setembro, aquele órgão federal deu mais um importante passo no avanço dessa pauta ao publicar a portaria 21.332, que dispôs sobre o modo pelo qual as instituições financeiras poderão aderir ao Portal de Crédito Digital do Governo Federal, plataforma que integra essas instituições, a Administração, seus fornecedores e que, no fim das contas, viabilizará as operações de crédito.

Em termos práticos, os credores da Administração Pública Federal direta, autárquica ou fundacional poderão contrair empréstimos e darem em garantia real à instituição financeira os recebíveis que possuem lastreados em contratos administrativos.  

A normatização da cessão fiduciária desses créditos, mesmo que em nível infralegal, sinaliza o amadurecimento das instituições estatais diante de uma antiga demanda latente do mercado que, desde sempre, era passível ser suprida do ponto de vista jurídico, inclusive pela via da interpretação, sem a necessidade de movimentação da paquidérmica máquina legislativa; bastava, é certo, uma postura mais arrojada e, por que não, inovadora dos atores públicos.

Esses regramentos também municiam as partes envolvidas de instrumentos técnicos e operacionais mitigadores de riscos e fraudes, que resultam na minoração do próprio deságio das transações. Traduzindo, o titular do crédito poderá aliená-lo por um preço melhor.

Além disso, terminam por aquecer o pujante mercado de tecnologia da informação, ao possibilitarem que a oneração real desses direitos creditórios seja operada de forma integralmente digital.

Enfim, essa elogiável medida de fomento possibilitará a injeção e a circulação de grande volume de recursos na economia com a segurança que se espera em negociações dessa natureza.

Contudo, a implementação dessas antecipações de recebíveis garantidas por cessões fiduciárias depende da abertura de chamamento público para o credenciamento das instituições financeiras e das instituições gerenciadoras das plataformas digitais que intermediarão as operações via adesão ao Portal de Crédito Digital, o que se espera ocorrer em breve.

Portanto, em boa hora a União assumiu uma postura mais liberalizante7 no papel constitucional que lhe cabe de incentivar a atividade econômica8, sem para isso descurar-se de fundamentos jurídicos sólidos e consentâneos com Direito Administrativo contemporâneo, que, sob os influxos da escola da Análise Econômica do Direito (Law and Economics), dialoga cada vez mais com institutos econômicos e preocupa-se com as consequências práticas de suas decisões e interpretações jurídicas9.

Em suma, deparam-se diante de uma promissora janela de oportunidades tanto o Poder Público, que com esse incentivo tenderá a obter preços mais vantajosos em suas contratações, quanto os players do mercado que contratam com a Administração, além das empresas de tecnologia e inovação (desenvolvimento e gerenciamento de plataformas digitais) e as instituições financeiras (notadamente as fintechs).

Ainda que as considerações aqui tecidas sejam em sua maioria aplicáveis à esfera de governo federal, a tendência é que muito logo sejam replicadas, com a mesma institucionalidade e segurança, às demais 27 unidades federadas e mais de 5.500 municípios.

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1 LC 73/93:
"Art. 40. Os pareceres do Advogado-Geral da União são por este submetidos à aprovação do Presidente da República.
§ 1º O parecer aprovado e publicado juntamente com o despacho presidencial vincula a Administração Federal, cujos órgãos e entidades ficam obrigados a lhe dar fiel cumprimento."
2 "[...] 'suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração', de que trata o art. 87, inciso III, da lei 8.666, de 1993; 'declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração Pública', de que trata o art. 87, inciso IV, da lei 8.666, de 1993; impedimento de licitar e contratar com a Administração, de que cuida art. 7º da lei 10.520, de 2002, e art. 49 do decreto 10.024, de 2019; e da penalidade de proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, de que cuida o art. 12 da lei 8.429, de 1992 [...]" (despacho 00679/2019/DECOR/CGU/AGU). 
3 Código Civil:
"Art. 296. Salvo estipulação em contrário, o cedente não responde pela solvência do devedor."
4 Código Civil:
"Art. 294. O devedor pode opor ao cessionário as exceções que lhe competirem, bem como as que, no momento em que veio a ter conhecimento da cessão, tinha contra o cedente."
5 Código Civil:
"Art. 290. A cessão do crédito não tem eficácia em relação ao devedor, senão quando a este notificada; mas por notificado se tem o devedor que, em escrito público ou particular, se declarou ciente da cessão feita."
6  Constituição Federal:
"Art. 100. § 14. A cessão de precatórios somente produzirá efeitos após comunicação, por meio de petição protocolizada, ao tribunal de origem e à entidade devedora. (Incluído pela EC 62, de 2009)."

7 Postura essa pautada na lei Federal 13.874, de 20 de Setembro de 2019, que ficou mais conhecida como Lei da Liberdade Econômica.
8 Constituição Federal:
"Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado."
9 Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB):
"Art. 20.  Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.  
[...]
Art. 21.  A decisão que, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas. 
[...]
Art. 22.  Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados."

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BRASIL. Advocacia-Geral da União. Despacho 00679/2019/DECOR/CGU/AGU. Acesso em: 29 set. 2020.
BRASIL. Advocacia-Geral da União. Parecer 31/2019/DECOR/CGU/AGU. Acesso em: 29 set. 2020.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de out. de 1988. Acesso em: 25 set. 2020.
BRASIL. Controladoria Geral da União. Valor de contratos firmados no ano de 2019. Portal da Transparência, Brasília. Acesso em 29 set. 2020.
BRASIL. Decreto-lei 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro. Acesso em: 7 out. 2020.
BRASIL. LC 73, de 10 de fevereiro de 1993. Institui a Lei Orgânica da Advocacia-Geral da União e dá outras providências. Acesso em: 29 set. 2020.
BRASIL. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2003. Institui o Código Civil. Acesso em: 29 set. 2020.
BRASIL. Lei Federal 13.874, de 20 de Setembro de 2019. Institui a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica; estabelece garantias de livre mercado e dá outras providências. Acesso em: 7 out. 2020.
BRASIL. Ministério da Economia. Instrução Normativa 53, de 8 de julho de 2020. Dispõe sobre as regras e os procedimentos para operação de crédito garantida por cessão fiduciária dos direitos de créditos decorrentes de contratos administrativos, realizadas entre o fornecedor e instituição financeira, por meio do Portal de Crédito digital, no âmbito da Administração Pública federal direta, autárquica e fundacional.
BRASIL. Ministério da Economia. Instrução Normativa SEGES/MP 5, de 26 de maio de 2017. Dispõe sobre as regras e diretrizes do procedimento de contratação de serviços sob o regime de execução indireta no âmbito da Administração Pública federal direta, autárquica e fundacional. 
BRASIL. Ministério da Economia. Portaria 21.332, de 25 de setembro de 2020. Dispõe sobre o Termo de Adesão para acesso ao Portal de Crédito Digital pelas instituições gestoras das plataformas e as instituições financeiras tipo I de que trata a Instrução Normativa nº 53, de 8 de julho de 2020. Acesso em: 7 out. 2020.
BRASIL. Ministério da Economia. Tesouro Nacional. Estoque de restos a pagar (RAP) inscrito para 2020 cai 4,7%, para R$ 180,7 bilhões. Acesso em: 29 set. 2020.
BRASIL. Secretaria-Geral da Presidência da República. Despacho do Presidente da República, de 27 de maio de 2020. Acesso em: 29 set. 2020.
LOUREIRO, Caio de Souza. Novas regras viabilizam mercado de crédito em contratos administrativos. Acesso em: 7 out. 2020.

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*Daniel Garcia de Oliveira é advogado sócio da Jacó Coelho Advogados. Graduado em Direito pela UFMT e especialista em Direito Processual pela FMP. 

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