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“Zona Livre para Ofensas” e as Redes Sociais

O foco deste artigo é contribuir para os debates relativos aos limites da liberdade de expressão nas Redes Sociais.

16/10/2020

EMENTA

1. Em todas as relações interpessoais, há uma “zona livre para ofensas”, que pode ser maior ou menor a depender do grau de intimidade, do nível de formalidade e da existência de expressa recusa de um dos seus membros a participar desse ambiente de liberdade de manifestação.

2. Nas Redes Sociais, essa “zona livre” tende a ser mais ampla, especialmente quando o usuário abre o seu perfil para acesso irrestrito a terceiros. Farpas trocadas dentro dessa “zona livre para ofensas” são, em regra, irrelevantes ao Direito, salvo situações excepcionais de abuso.

1. Introdução

Há muitos fatos novos causados pelas redes sociais a gerarem debates sobre a responsabilidade civil. Temos, porém, que grande parte desses fatos são variações de problemas antigos, que podem ser resolvidos com base na civilística tradicional, ainda que com adaptações.

Já tivemos a oportunidade de discorrer sobre a responsabilidade civil dos provedores de aplicação (ex.: Facebook, Instagram etc.) sob a ótica da Lei do Marco Civil da Internet (lei 12.965/14)1. Não reiteraremos aqui esse aspecto subjetivo da responsabilidade civil.

O foco deste artigo é contribuir para os debates relativos aos limites da liberdade de expressão nas Redes Sociais, especificamente para definir quando haverá responsabilidade civil por ofensa à honra nessas “praças cibernéticas”. E, para tanto, valer-no-emos do conceito de “zona livre para ofensa”.

E, nesse ponto, é crucial recordar que o ordenamento jurídico possui indisfarçável prestígio à liberdade de expressão, deixando, em regra, para controle a posteriori casos de abusos, ainda mais no âmbito da Internet. Disso dá conta o art. 19 da Lei do Marco Civil da Internet, que desobriga os provedores de aplicações de internet (como os sites) a retirarem conteúdos postados sem uma ordem judicial específica, com exceção dos casos de nudez (art. 22 da referida lei). O STF acena nesse sentido ao proibir a censura prévia a biografias, conforme o julgamento da ADIn 4815.

2. “Zona Livre de Ofensas” e o plano da existência dos negócios jurídicos

Em regra, só se pode falar em responsabilidade civil (ou seja, em dever de indenizar) quando há um ato ilícito, que pode definido nos arts. 186 e 187 do CC. A exceção corre à conta de hipóteses previstas expressamente em lei2. Sem ilicitude, não há dever de indenizar3. Nesse sentido, reportamo-nos às lições dos professores Flávio Tartuce4 e dos professores Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho5. Para aprofundamento, recomendamos energicamente a leitura da aprofundada obra intitulada “Responsabilidade Civil”, do Professor Flávio Tartuce, especialmente no seu segundo capítulo, que trata do dano injusto.

Há fatos que, embora sejam recriminados pela Moral, não o são pelo Direito. Esses fatos não são jurídicos, mas meramente “fatos materiais”, à luz da teoria dos fatos jurídicos6. O Direito não colore todos os fatos da vida.

E, realmente, não convém que o direito se intrometa em todos os fatos da vida, pois a estrutura coercitiva que o caracteriza pode gerar efeitos práticos indesejados no convívio social. O jurista precisa ser extremamente cauteloso para não escorregar. na plasticidade dos princípios jurídicos e das cláusulas abertas e, assim, invadir terreno reservado exclusivamente para a moral.

Nesse contexto, indaga-se: todas as ofensas desferidas a outrem caracterizam um ilícito civil e, portanto, dão ensejo à reparação civil?

A resposta é não. Nem todas as ofensas são fatos jurídicos. Nem todas ofensas passam pelo plano da existência dos fatos jurídicos. Há algumas que ficam apenas no campo da moral e convém que assim continue. Algumas ofensas são enquadradas na jurisprudência como “meros aborrecimentos”.

Em poucas palavras, nem toda “falta de educação” é um ilícito civil, embora possa ser um “ilícito moral” (o qual é irrelevante para o Direito).

A dura tarefa do jurista é delimitar a linha divisória que separa ofensas juridicamente relevantes daquelas que só têm efeito no campo da moral. Não há respostas cartesianas para tal questão.

Há, porém, uma metáfora cunhada Tribunal de Justiça de Frankfurt (Oberlandesgericht Frankfurt) que será bem útil para guiar o jurista na identificação dessa linha divisória a partir da análise do caso concreto. Trata-se do conceito de “zona livre para ofensas”, conforme noticiado pela genial jurista Karina Fritz na sua coluna “German Report”7.

A Professora Karina, comentando o referido julgado alemão e advertindo para o cuidado de não banalizar a ideia, alertou para o fato de que há uma zona livre de ofensa no seio familiar, de maneira que nem sempre insultos e deselegâncias entre familiares configuram fatos jurídicos e, portanto, não necessariamente gerarão dever de indenizar. Por esse motivo, a Corte alemã negou o pedido de indenização por dano moral formulado pelo genro contra a sogra, acusada de ter desferido ofensas contra ele no grupo de WhatsApp da família.

Na verdade, a “zona livre para ofensas” existe em todos os círculos de pessoas.

Soa estranho dizer que as pessoas podem ofender as demais a depender do ambiente, mas isso é uma realidade que o Direito não pode ignorar. O juiz deverá ser extremamente cauteloso nessa análise, pois evidentemente não se pode tolerar casos abusivos, como os de violência contra pessoas vulneráveis.

Para delimitar o espaço dessa zona livre, entendemos que deve ser feito um juízo de “bom senso” (o que inevitavelmente gerará um certo grau de indeterminação) que leve em conta os seguintes parâmetros: (1) o grau de intimidade entre os membros do grupo; (2) o nível de formalidade adotado entre eles; e (3) a existência ou não de recusa externa de um dos membros a participar dessa “zona livre de ofensa”.

Quanto maior o grau de intimidade entre os membros desse grupo e quanto maior a informalidade nesse ambiente, essa zona livre será maior.

Cabe ao juiz a difícil tarefa de mapear o ambiente interpessoal para, no caso concreto, averiguar a extensão da “zona livre para ofensas”. Um mesmo “palavrão” ou um “xingamento” pode ser um ilícito civil em um ambiente muito formal e não ser ilícito algum em um ambiente extremamente informal.

E é preciso dizer que, no momento em que alguém ofende outrem dentro dessa “zona livre de ofensas”, ela abre espaço para revides, que poderão ser de maior intensidade e poderão ocasionar uma escalada de ofensas. Como diz o ditado popular, “quem fala o que quer, ouve o que não quer”. Em princípio, essa escalada de ofensas está dentro da “zona livre de ofensas” e, portanto, não deve ser tutelada pelo Direito, salvo se realmente extrapolar os limites da Moral (como no caso de haver um espancamento).

Quem não quiser se submeter a essa “zona livre” terá de externar, com clareza, a sua recusa a qualquer tipo de abordagem ofensiva, caso em que provavelmente essa pessoa será “excluída” do grupo. A rigor, quem não quiser participar de nenhuma “zona livre para ofensa” deve viver isolado de todos. Se, por exemplo, em uma roda de amigos acostumados a se tratarem reciprocamente com palavrões e irreverência, algum desses amigos não gosta dessas “brincadeiras”, ele deve externar isso com seriedade, caso em que provavelmente ele será excluído dessa roda de amizade. Caberá a esse membro “mais sensível” buscar alguma outra roda composta por membros mais afetos a um modelo de tratamento próprio de um cavalheirismo formal britânico.

Com efeito, nós temos de escolher as “zonas livres para ofensas” em que queremos transitar ou, eventualmente, podemos usar ferramentas da Moral para constranger o outro a reduzir a zona livre de manifestações. O que não se pode é querer usar a força coercitiva do Direito dentro dessa zona livre.

Em outras palavras, a partir do momento em que uma pessoa tem uma relação interpessoal com outra, haverá inevitavelmente aí uma “zona livre de ofensa”, ainda que essa possa ser pequena a depender dos níveis de intimidade e de formalidade do local. Essa “zona livre” é regulada pela Moral, e não pelo Direito.

Em um ambiente familiar, a “zona livre de ofensa” costuma ser maior.

Lembramos aí do caso alemão. A sogra maledicente que, no meio do grupo familiar, fala mal do genro, ainda que com uma acidez venenosa, não comete ilícito civil, pois está dentro da “zona livre para ofensa”. Sua conduta é regulada pela Moral, e não pelo Direito. O genro, portanto, poderá valer-se de meios de repressão disponíveis pela própria Moral, como deixar de convidar essa sogra venenosa para festas familiares e isolá-la do seu convívio pessoal. Eventualmente o genro poderá, em ato de revide, maldizer a sogra no grupo de família, caso em que, em princípio, essa escalada de indelicadezas ainda estará dentro da “zona livre para ofensa”. O que não é viável é que esse genro traga ao Judiciário um pleito de indenização por desgostos ocorridos dentro da “zona livre para ofensas”.

Em um ambiente profissional, a “zona livre para ofensas” tende a ser menor. Depende do nível de informalidade desse ambiente. Há locais de trabalho que, por costume, são extremamente formais.

Se um membro desse local de trabalho extremamente formal vier a tratar outro com palavrões ou com “brincadeiras de mal gosto”, esse seu ato poderá, a depender do caso concreto, ser considerado um ilícito civil, hábil a autorizar uma condenação ao pagamento de indenização por dano moral, além de poder caracterizar-se um ilícito de outra natureza (como um ilícito trabalhista, idôneo a ensejar uma demissão por justa causa).

Em um ambiente de amigos íntimos, a “zona livre para ofensas” tende a ser maior. Alguém que ingresse nessa zona livre e se sinta ofendido ao ser alvo de uma “brincadeira de mal gosto” não deve querer resolver no Judiciário uma questão que diz respeito à Moral. Se não quiser adotar o modus irreverente de tratamento interpessoal desse grupo, sobra-lhe sair desse círculo de amigos ou externar que não aceita esse tipo de “brincadeiras” (caso em que provavelmente esse indivíduo mais sensível acabará sendo escanteado pelos demais).

Em poucas palavras, electa una altera non datur8 ou, em palavras mais coloquiais, “desceu no play, vai ter de brincar”. Quem ingressa em um ambiente interpessoal mais irreverente não pode exigir de seus membros uma polidez refinada de um legítimo fidalgo do Século XIX.

2. Rede Social: Um ambiente com uma “zona livre para ofensas” mais alargada

As Redes Sociais, em geral, são ambientes que tendem a ter uma “zona livre para ofensas” mais alargada.

Rede Social pode ser comparada a uma grande praça pertencente a uma empresa (como o Facebook) que convida qualquer interessado a se inter-relacionar com os demais, externando suas intimidades e opiniões com uma ampla publicidade a todos os presentes nessa praça.

Quem cria um perfil em uma Rede Social e autoriza que seu perfil seja visualizado por pessoas de forma indeterminada está voluntariamente se expondo a uma “zona livre para ofensas” mais ampla.

É claro que há Redes Sociais que, por natureza, são mais formais, a exemplo do Linkedin. A zona livre para ofensas aí é mais atrofiada diante do alto grau de formalidade.

Outras redes, porém, como o Twitter, o Facebook ou o Instagram, tendem a ser mais informais, especialmente quando o usuário abre suas publicações para acesso irrestrito a qualquer pessoa. Nessas hipóteses, o usuário tem de estar ciente de que está em uma “zona livre para ofensas” mais vasta.

Um usuário que, por exemplo, posta uma foto esperando receber elogios para a sua aparência ou para o seu novo look não pode, posteriormente, querer valer-se da força coercitiva e repressiva do Direito se recebe um comentário crítico e indesejado, como o de alguém que chama de “feio” o ostentado traje.

O usuário ofendido pode valer-se de ferramentas disponíveis pela própria Moral em reação, como bloquear o acesso das suas postagens a esse mordaz indivíduo ou eventualmente contra-atacar o comentário com outra ofensa às vestimentas desse desafeto. Essa troca de indelicadezas (“esse barraco”), por mais triste que possa ser, não é um fato jurídico e, portanto, não pode atrair a força coercitiva ou repressiva do Direito. Estamos aí diante de movimentações dentro “zona livre para ofensa”.

Quando se trata de pessoas públicas, esse espaço da “zona livre para ofensas” tende a ser bem maior, ainda mais quando lidam com assuntos polvorosos, como os relacionados a política ou a questões sensíveis e polêmicas na sociedade.

A jurisprudência acena nessa direção, reconhecendo a existência de uma “zona livre para ofensas” nas relações interpessoais, ainda mais no âmbito das Redes Sociais. Por vezes, os Tribunais referem-se a “conflitos naturais da vida em sociedade” para se referir a essa “zona livre para ofensas”.

O TJ/SP, por exemplo, ao verificar que havia animosidade recíproca entre as partes - que tiveram comportamento impróprio e excessivo uma contra a outra -, negou o pedido de indenização formulado por um dos contendores por conta de ofensas sofridas em rede social. No caso concreto, uma das partes, além de ser noiva do ex-companheiro da outra parte, é concorrente comercial desta última no ramo da Beleza, o que levou as partes a trocarem ofensas nas redes sociais. Ao negar o pleito indenizatório, a desembargadora Clara Maria Araújo Xavier, destacando que há conflitos naturais na sociedade (referindo-se indiretamente ao que chamamos aqui de “zona livre para ofensas”), sublinhou o seguinte no seu voto condutor:

“Mais a mais, ainda que a intensão da ré fosse abalar psicologicamente à parte autora, restou incontroverso, pela vasta documentação probatória juntada nos autos, a animosidade recíproca entre as partes, que se utilizaram da rede social para relatar, dentre outros participantes do canal de entretenimento, as desavenças e os fatos ocorridos no hostil ambiente empresarial, consumerista e pessoal.

O que se constata dos autos é que, independentemente dos problemas pessoais anteriores existentes entre as partes, ambas se exaltaram além do razoável. Por isso, entendo incabível condenar a ré ao pagamento de indenização por danos morais, diante do comportamento impróprio de ambas as partes que deram causa a lamentável ocorrência.

(...)

Assim, a situação de beligerância entre as partes não deve ser incentivada pelo Judiciário ao ponto de gerar indenização pecuniária, uma vez que é indubitável que existe um problema entre as partes, o que revela conflitos naturais da vida em sociedade, de modo que o bom senso e as regras sociais de conveniência devem ser observadas para se poder viver em tranquilidade, cada qual em respeito ao direito do outro, sem que haja interferência judicial, salvo flagrante excesso e abuso de direitos. Na verdade, pedidos sem propósitos devem ser resolvidos no âmbito particular, evitando-se indústrias indenizatórias e sobrecargas desnecessárias no Poder Judiciário, cada vez mais abarrotado de casos de extrema urgência que envolvem pessoas em situação de vulnerabilidade, necessitadas da proteção do Estado-Juiz.”

(Voto da Relatora neste julgado: TJ/SP, AC 10308926020178260071/SP 1030892-60.2017.8.26.0071, 8ª câmara de Direito Privado, relatora desembargadora Clara Maria Araújo Xavier, DJe 12/9/19)

Igualmente, a 1º turma Recursal dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais do DF, também alertando para a existência de conflitos naturais da vida em sociedade, negou pleito de indenização formulada por uma parte que, mantendo uma relação de animosidade recíproca com a outra parte, trocaram ofensas no Facebook. Confira-se a ementa deste julgado:

JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS. RESPONSABILIDADE CIVIL. OFENSA PROFERIDA EM REDE SOCIAL. VIOLAÇÃO A ATRIBUTO DA PERSONALIDADE. DANO MORAL NÃO CONFIGURADO. RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO.

1. Relata a parte autora que foi vítima de ofensa moral por meio da rede social (facebook) em que a requerida lhe acusara de roubo, propagando a ofensa a outros colegas de trabalho. a requerida em contestação afirma que foi a autora quem afirmou isso, com relaçao a sua pessoa e que somente narrou o ocorrido.

2. Restou incontroverso, pelas provas produzidas, a animosidade recíproca entre as partes, que se utilizaram da rede social para relatar, dentre os participantes do grupo, as desavenças e fatos ocorridos no hostil ambiente em que trabalhavam.

3. Como bem argumentado na sentença atacada, não resta dúvida que existe um problema entre as partes, mas que, do conjunto probatório carreado aos autos, não enseja uma condenação por danos morais.

4. A situação fática trazida aos autos, nada mais revela que conflitos naturais da vida em sociedade, de modo que o bom senso e as regras sociais de convivência devem ser observados para se poder viver em tranquilidade, cada qual em respeito ao direito do outro.

5. No caso dos autos, como bem asseverado pela d. juízo do primeiro grau, não há que se falar em condenação por danos morais, razão pela qual a sentença de improcedência merece ser confirmada.

6. Recurso conhecido e improvido. sentença mantida por seus próprios fundamentos. a súmula de julgamento servirá de acórdão, conforme regra do art. 46 da lei nº 9.099/95. condenado o recorrente no pagamento das custas processuais, que resta suspenso em razão da gratuidade de justiça que lhe socorre. sem honorários, em razão da inexistência de contrarrazões.

(TJ-DF, ACJ: 20120111880786 DF 0188078-86.2012.8.07.0001, 1ª turma Recursal dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais do DF, rel. juiz Alvaro Luiz Chan Jorge, DJe 3/10/13)

Outrossim, o TJ/RS negou pedido de indenização por dano moral formulado por uma parte que, mantendo um relacionamento de altíssima beligerância com a parte ré, especialmente após ter tido um filho com esta, alegava ter sofrido várias ofensas por meio do Faceboook. A Corte gaúcha, apesar de lamentar essa animosidade entre as partes, reconheceu que os conflitos entre elas não ingressavam no mundo do Direito, ainda mais por envolver emoções irracionais entre pessoas que mantiveram relacionamento amoroso com o nascimento de um filho. É oportuno transcrever este excerto do voto do Desembargador Niwton Carpes do referido julgado:

Trata-se, consoante sumário relatório, de ação de reparação por dano moral decorrente de suposta ofensa praticada pela demandada em desfavor do autor na rede social (Facebook), julgada improcedente na origem.

(...)

Examinando o caso específico, tenho como não configurado o dever de indenizar, uma vez que os elementos constantes nos autos não evidenciam a ocorrência de qualquer ato ilícito, mas apenas dissabores decorrentes de relações interpessoais.

(...)

Por conta disso, destarte, valho-me dos argumentos lançados na douta sentença singular, da lavra da Dra. Paula Yoshino Valério, os quais reproduzo e passam a fazer parte integrante do voto, ipsis verbis:

(...)

Dá análise dos autos, observa-se que existiu relação bastante conturba entre o autor e a ré, especialmente em razão do nascimento do filho comum.

Ainda, observa-se conduta bastante intransigente da ré, que de forma incessante e rotineira enviava diversas mensagens para o autor de conteúdos extramente grosseiros e imorais.

As relações interpessoais, ainda mais quando envolvem uma criança, são de difícil trato e solução jurídica na esfera cível, pois decorrem de desequilíbrios emocionais e psicológicos dos envolvidos.

A situação narrada efetivamente revela que a ré importunava incessantemente o autor, mostrando-se bastante intransigente para qualquer diálogo racional em relação ao filho, demonstrando mais a intenção de incomodar o requerente do que uma preocupação efetiva com a criança.

Na esfera civil, lastreada quase que exclusivamente na proteção dos direitos patrimonias e obrigações de ordem privada, é difícil encontrar alguma solução efetiva para obstar que determinada pessoa deixe de praticar determinado ato ou fato, em especial quando a motivação decorre da intenção de importunar determinada pessoa.

(...)

No caso dos autos, tem que se levar em consideração que é quase impossível que as partes deixem de manter qualquer tipo de comunicação em razão da existência de filho comum, de forma que a situação deve ser ponderada com bom senso e urbanidade.

De qualquer forma, compreendo que os fatos relatos nos autos não comportam proteção no direito civil, já que não evidenciado ato ilícito capaz de gerar o dever de indenizar, em que pese concorde que a situação é bastante incômoda ao autor.

(...)

É patente o clima de beligerância que orbita em torno do relacionamento havido entre as partes. Porém, conforme bem analisado pela magistrada a quo, as relações interpessoais, ainda mais quando envolvem uma criança, são de difícil trato e solução jurídica na esfera cível, pois decorrem de desequilíbrios emocionais e psicológicos dos envolvidos, de modo que, em análise ao conteúdo das mensagens postadas pela requerida (fls. 26/121), os dissabores experimentados pelo autor não tem o condão de caracterizar lesão psíquica ou grave e vexatória, capaz de ensejar o dever de indenização.”

(TJ/RS, AC: 70079885398 RS, 6ª câmara Cível, relator desembargador Niwton Carpes da Silva, DJe 10/4/19)

É claro que, em determinados casos, a jurisprudência reconhece a existência de ilícito apto a gerar o dever de indenizar por ofensas ocorridas em Redes Sociais, pois é evidente que essa grande praça cibernética não é um faroeste, apesar da maior amplitude da sua “zona livre para ofensas”. Por exemplo, a exposição não consentida de imagens de nudez de uma pessoa ou a realização de xingamentos diretos dificilmente estarão enquadrados dentro de uma “zona livre para ofensas” em uma rede social.

3. Conclusão

Em todas as relações interpessoais, há uma “zona livre para ofensas”, que pode ser maior ou menor a depender do grau de intimidade, do nível de formalidade e da existência de expressa recusa de um dos seus membros a participar desse ambiente de liberdade de manifestação. Nas Redes Sociais, essa “zona livre” tende a ser mais ampla, especialmente quando o usuário abre o seu perfil para acesso irrestrito a terceiros. Farpas trocadas dentro dessa “zona livre para ofensas” são, em regra, irrelevantes ao Direito, salvo situações excepcionais de abuso.

Cabe uma advertência apodítica ao encerrar as cortinas deste artigo: é evidente que o conceito de “zona livre para ofensas” não é um sinal verde a selvagerias ou a violência. Trata-se, apenas, de uma metáfora útil para que os juízes, com equidade, consigam distinguir fatos que realmente saltam do campo da Moral e adentram o Mundo do Direito, ativando os instrumentos repressivos e coercitivos que lhe são peculiares.

Enfim, abusos têm de ser reprimidos. Ninguém tem salvo-conduto para violar direitos da personalidade de outrem. E não se pode ignorar que as Redes Sociais têm um poder devastador, capaz de assassinar a reputação de uma pessoa em poucos segundos ou de instigar massas irracionais a realizarem linchamentos virtuais ou até físicos com base em fake news. O juiz precisa ter essa sensibilidade para, em cada caso concreto, delimitar as difíceis fronteiras da “zona livre para ofensas”, separando o joio do trigo.

_________

1 OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Aspectos Principais da Lei nº 12.965, de 2014, o Marco Civil da Internet: subsídios à comunidade jurídica. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/ Senado, abr./2014 (Texto para Discussão nº 148). Disponível clicando aqui . Acesso em 29 de abril de 2014.

 

2 É o caso, por exemplo, de responsabilidade objetiva (que, por dispensar a culpa, torna dispensável a existência de ato ilícito nos termos do art. 186 do CC), de dever de indenizar a vítima que não causou a situação de legítima defesa ou de estado de necessidade (arts. 929 e 930 do CC).

3 Nesse sentido, defendemos que a dúvida jurídica razoável, por afastar a própria ilicitude, pode afastar ou, ao menos, atenuar a responsabilidade civil (OLIVEIRA, Carlos E. Elias de Oliveira. A Dúvida Jurídica Razoável e a Cindibilidade dos Efeitos Jurídicos. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, Março/2018. Disponível clicando aqui. Acesso em 5 de março de 2018).

4 “O ato ilícito que interessa para os fins da responsabilidade civil, denominado por Pontes de Miranda como ilícito indenizante, é o ato praticado em desacordo com a ordem jurídica violando direitos e causando prejuízos a outrem. Diante da sua ocorrência, a. norma jurídica cria o dever de reparar o dano, o que justifica o fato de ser o ato ilícito fonte do direito obrigacional.” (TARTUCE, Flávio. Direito Civil: direito das obrigações e responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Forense, 2020, pp. 356-357).

5 “(...) a noção jurídica de responsabilidade pressupõe a atividade danosa de alguém que, atuando a priori ilicitamente, viola uma norma jurídica preexistente (legal ou contratual), subordinando-se, dessa forma, às consequências do seu ato (obrigação de reparar)” (GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil, v. 3: responsabilidade civil. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 39).

6 Tivemos a oportunidade de aprofundar o tema neste artigo: OLIVEIRA, Carlos E. Elias de Oliveira. Consideração sobre os planos dos fatos jurídicos e a “substituição do fundamento do ato de vontade”. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, Fev/2020. Disponível clicando aqui. Acesso em 5 de março de 2020.

7 FRITZ, Karina. Dentro do círculo familiar há uma “zona livre” para ofensas. Disponível clicando aqui. Acesso em: 25 jun. 2019.

8 A expressão latina mais completa é “electa una via non datur regressus ad alteram” e pode ser traduzida como: “escolhido um caminho, não é possível voltar atrás e escolher outro”.

_________

*Carlos Eduardo Elias de Oliveira é Consultor Legislativo do Senado Federal, Advogado, Professor e Doutorando, mestre e bacharel em Direito na UnB.

 

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Dentro do círculo familiar há uma "zona livre" para ofensas

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