Migalhas de Peso

A regra do jeitinho brasileiro na prisão preventiva e nos prazos

Mais de 20 anos depois, cada réu em processo criminal continua tendo de sobreviver no inferno. Mas, infelizmente, os racionais parecem não existir mais.

15/10/2020

Gosto sempre de dizer aos advogados mais novos: uma das melhores formas de entender a criminologia, os graves problemas de nosso sistema carcerário e as profundas contradições de nossa sociedade racista e desigual é ouvindo rap dos anos 1990 e 2000. Costumo recomendar, especificamente, o álbum Sobrevivendo no Inferno, dos Racionais MCs. Um álbum que estreou em 1997, quando o PCC ainda rastejava nas fissuras de nossas masmorras medievais, antes de se tornar um dos maiores impérios do nosso país. Lamentavelmente.

Passados 23 anos, quando a banda (e as pessoas) Racionais são lembradas como ecos do passado, novamente, nos vemos compelidos a aprender sobre o direito penal, sobre o processo penal, com o rap. Dessa vez, com o famigerado caso do André do Rap.

O caso gera diversas reflexões jurídicas e políticas. Um perigoso líder de facção criminosa é colocado em liberdade por uma decisão liminar monocrática do ministro Marco Aurélio de Mello. O ministro proferiu sua decisão obedecendo, estritamente, a um mandamento legal do Código de Processo Penal, que determina que as prisões preventivas devem ser revistas a cada 90 dias. Após a decisão, o caso se torna rumoroso e, atendendo a um pedido da PGR, o presidente da Corte Suprema, Luiz Fux, cassa a decisão de seu par, revogando a liminar.

Nesse breve artigo, não discutirei a problemática e urgente questão das decisões monocráticas das cortes Superiores. Uma “monocracia” perigosa, cujo poder, contudo, nenhum Ministro parece querer abrir mão. Menos ainda discutirei a possibilidade do presidente da Corte revogar a decisão de um Ministro. Essencialmente quando se trata de uma decisão de habeas corpus. Também não usarei o caso para discutir se André do Rap deveria ser mantido preso ou não, sob o enfoque de seu perigo à ordem pública e a conveniência da instrução penal. Segundo a imprensa, o paciente é líder de organização criminosa e passou anos foragido. A questão parece evidente.

Interessa-nos usar a questão para discutir o alcance da regra do art. 316, parágrafo primeiro, do Código de Processo Penal. Mais do que isso, interessa-nos a reflexão sobre as consequências da infração da regra ali impressa.

Pois bem, vamos à norma.

Segundo o dispositivo, “decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal”.

É um sinal dos nossos tempos, as vozes que se insurgem contra a norma. Ora, parece evidente que não há gravame qualquer na exigência de que a prisão preventiva, uma medida absolutamente excepcional, seja revista, de maneira fundamentada, de quando em quando. O prazo de nonagesimal é bastante razoável e tem como objetivo evitar os casos absurdos de prisões de cautelares que se protraiam por cinco, dez anos, sem condenação definitiva. Sem contar os inúmeros e lamentáveis casos de duração de prisões preventivas que ultrapassavam o tempo final de pena imposto.

Entrementes, o mais importante para nossa análise, para além da pertinência e conveniência da norma (que parece evidente para quem se debruça ao estudo do processo penal), é a estrutura dessa nova norma, inserida no ordenamento jurídico brasileiro em janeiro de 2020, por ocasião da aprovação do famigerado “pacote anticrime”.

O art. 316, parágrafo primeiro, inclui no ordenamento jurídico processual um prazo. Simples assim. Um prazo longo de 90 dias. Ao cabo do prazo, é necessária que seja proferida uma nova decisão, sobre “a necessidade de sua manutenção”.

Quem deve proferir a mencionada decisão? O próprio texto legal responde à pergunta. O órgão emissor da prisão preventiva. Sendo assim, se a decisão foi proferida em primeiro grau de jurisdição, ainda que já tenha sido proferida a decisão de mérito, é esse juízo de piso quem deve proferir nova decisão, fundamentando as razões pelas quais a prisão deve ser mantida. Simples assim.

Pois bem. E se extrapolado esse prazo não é proferida nenhuma decisão? O texto legal também é claro: a prisão se torna ilegal.

Não há dificuldade nisso.

A norma traz uma obrigação (justificativa para manutenção), um prazo (90 dias) e uma consequência pela infração (ilegalidade da prisão). Simples assim. Não há o que se interpretar a mais.

A norma simplesmente cria um prazo periódico de revisão das decisões. Um prazo como outros vários inseridos do Código de Processo Penal. Como os prazos para apresentação de defesa preliminar, de resposta à acusação, de recursos, de apresentação de testemunhas, quesitos entre outros. Mas o que é um prazo? Um prazo é um lapso temporal, dentro do qual algo deve ser feito, sob pena de uma consequência. Sem lapso temporal e sem consequência, um prazo simplesmente perde sua razão de ser.

Vamos tomar, por exemplo, um prazo de apelação. Se no prazo de 5 dias não for interposto o recurso de apelação, perde-se o direito postulado. Ocorre o trânsito em julgado para a parte. o direito que poderia ser exercido, preclui. Pois bem. Imaginemos que após o prazo de 5 dias, ao invés de se perder o direito, a consequência do transcurso de prazo fosse apenas o de que se lembrasse a parte de sua obrigação de apresentar a apelação. Os prazos seriam cumpridos?

O que se procura ora fazer é flexibilizar as consequências de uma perda de prazo. Novamente, simples assim. A interpretação que se quer dar, infelizmente, inclusive por parte do Supremo Tribunal Federal, é que, findo o prazo de 90 sem decisão, seja “lembrado” ao juízo que emitiu a ordem originária, que ele deve cumprir a obrigação de fundamentação da manutenção.

Em outras palavras, é um prazo cuja consequência por descumprimento é igual a obrigação original. O que, portanto, deixa de ser um prazo.

A discussão pode se perder em veredas jurídicas, mas, na prática, vê-se novamente o funcionamento da regra fundamental brasileira, que se eleva, ao que parece, até mesmo acima da Constituição Federal. A regra do jeitinho brasileiro.

Aquela regra que exime de sanção qualquer combinado e qualquer atraso. Que permite que eu pague minhas dívidas vencidas no dia 20, apenas no dia 30. Que permite que se chegue no compromisso às 15h, embora se tenha marcado às 13h. Sem qualquer sanção, se não um eventual amofinamento por aquele que se viu esperando o pagamento ou o encontro.

É claro que a regra do jeitinho brasileiro, incrustrada em nossa cultura colonial, vale sempre para o lado mais forte da balança. O entrevistador pode chegar atrasado a uma entrevista: o entrevistado, não. O banco pode demorar na liberação de um investimento. O mutuário não pode atrasar suas parcelas. E o judiciário e o Ministério Público podem passar por cima de quaisquer prazos – ou simplesmente ignorá-los – ao passo que a defesa, o jurisdicionado, ao vacilar um só dia, tem todas suas pretensões esvaídas, por firmes e inequívocas certidões cartorárias.

Em síntese, as consequências de perda de prazos existem para os particulares que dão com as caras nas aras da justiça, mas surtem pouco efeito aos próprios artífices do judiciário. Mas prazos sem consequências, não são prazos. E sem prazos, obviamente, as coisas não andam com velocidade, o que qualquer brasileiro sabe muito bem.

O mais curioso disso tudo é que ainda se tenta colocar a culpa da morosidade do Judiciário no mito dos muitos recursos à disposição da defesa. Todos esses com prazos de no máximo 15 dias.

Outra vez mais, vemos o jeitinho brasileiro virando a mesa, para que o brasileiro mais forte impute toda culpa dos problemas que criou ao brasileiro mais fraco.

Mais de 20 anos depois, cada réu em processo criminal continua tendo de sobreviver no inferno. Mas, infelizmente, os racionais parecem não existir mais.

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*Bruno Salles Pereira Ribeiro é advogado criminalista, mestre em Direito pela USP e sócio do Cavalcanti, Sion e Salles Advogados.

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