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A nova lei de abuso de autoridade contra a exploração midiática do crime

Lei 13.869/19, em seu art. 13, tipifica a conduta de expor detento à curiosidade pública, que engloba os programas televisivos sensacionalistas sobre crimes.

14/10/2020

O primeiro mês de 2020 ficou marcado pela entrada em vigor da lei 13.869/19, conhecida como a nova Lei de Abuso de Autoridade, cuja vigência substituiu a predecessora lei 4.898/65, que produziu efeitos por 55 anos no país.

A promulgação desse novo diploma a respeito de matéria já positivada no ordenamento jurídico brasileiro teve como justificativa a necessidade da adoção de tipos penais mais taxativos para os delitos de abuso de autoridade, a fim de evitar a insegurança jurídica anteriormente observada, dada a descrição normativa aberta. Nos termos do trecho da justificação, observe-se1:

(...) registre-se que evitou a técnica da elaboração de tipos penais abertos, verdadeiros coringas hermenêuticos, de conteúdo vago e impreciso, que poderia encontrar preenchimento naquilo que o interessado quisesse, o que causaria enorme insegurança jurídica e faria com que as autoridades brasileiras temessem aplicar a lei, sobretudo contra poderosos.

Dentre as reformulações trazidas pela recente legislação, destaca-se o artigo 13, cuja redação remete ao crime outrora tipificado na alínea b do artigo 4º da lei 4.898/65, como pode ser constatado pela contraposição dos dispositivos em evidência:

Art. 13. Constranger o preso ou o detento, mediante violência, grave ameaça ou redução de sua capacidade de resistência, a:

I - exibir-se ou ter seu corpo ou parte dele exibido à curiosidade pública;

II - submeter-se a situação vexatória ou a constrangimento não autorizado em lei;

III - produzir prova contra si mesmo ou contra terceiro:

Pena - detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa, sem prejuízo da pena cominada à violência.

Art. 4º Constitui também abuso de autoridade:

(...)

b) submeter pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei;

Observa-se que a lei 13.869/19 adicionou o constrangimento do preso ou detento pela autoridade pública em exibir-se ou ter seu corpo ou parte dele exibido à curiosidade pública e a produzir prova contra si mesmo ou contra terceiro à já prevista hipótese na norma anterior de submeter-se a situação vexatória ou a constrangimento não autorizado em lei. É notória, assim, a maior taxatividade introduzida pela nova Lei de Abuso de Autoridade no tocante ao delito do art. 13, antes representado pela alínea b do art. 4º da lei 4.898/65.

Por outro lado, o novo diploma passou a exigir especial fim de agir na conduta das autoridades públicas para se enquadrarem nos delitos da nova norma, verbis:

Art. 1º. § 1º. As condutas descritas nesta Lei constituem crime de abuso de autoridade quando praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal.

Além disso, acrescentou as elementares mediante violência, grave ameaça ou redução de sua capacidade de resistência para configuração dos delitos. O propósito do artigo é examinar cada um desses requisitos para a aplicação do art. 13 da lei 13.869/19.

Pode-se argumentar que a adição de novas elementares mediante violência, grave ameaça ou redução de sua capacidade de resistência dificultaria a aplicação do dispositivo na prática, ainda mais por ser a lei direcionada à persecução penal de autoridades públicas, como é a posição defendida por Guilherme de Souza Nucci2:

Esse art. 13 da Lei Nova é o correspondente ao art. 4º, “b”, da Lei anterior. Mas ele tem muitos entraves para ser aplicado. O tipo penal do art. 4º, “b”, da Lei 4.898/65 era muito mais fácil de ser utilizado – e quase nunca foi. O tipo penal do art. 13 da Lei 13.869/2019 prevê que a autoridade condutora do preso aja com violência, grave ameaça ou outro recurso a reduzir a capacidade de resistência do preso (uso de drogas, por exemplo).

(...)

Seria muito interessante que alguém conseguisse, comparando os artigos da Lei 4.898/65 com os da Lei 13.869/2019, apontar inconstitucionalidades desta última. A verdade é a seguinte: a) a Lei 4.898/65 tem sido inoperante há muitos anos; b) a Lei 13.869/2019 surgiu para blindar, ainda mais, o agente público. O que era inútil, pois a Lei 4.898/65 não era utilizada, passa a ser inútil e, mais, produtora de uma blindagem jamais vista em qualquer outra lei penal aos agentes da autoridade.

A despeito de nobres pensamentos como o esposado acima, a nova lei de abuso de autoridade configura importante instrumento de repressão, mesmo que simbólico, contra atos dos agentes públicos que desbordem da legalidade em um momento de fortalecimento de discursos de tolerância zero3 com a criminalidade.

O espraiamento dos discursos de fortalecimento do sistema penal tem como uma de suas causas e consequências, num círculo vicioso, a influência da mídia como propagadora destes ideais, que tem como exemplo, no Brasil, programas sensacionalistas transmitidos pela TV aberta, que contam com acompanhamento ao vivo de flagrantes, perseguições policiais, entrevistas a presos, agregando níveis de audiência colossais. Assim, “os meios de comunicação de massa promovem um falseamento dos dados da realidade social, gerando enorme alarde ao vender o “crime” como um rentável produto4

Nessa perspectiva, o novo estatuto legal, ao prever especificamente como crime o constrangimento sobre o preso para que exiba ou tenha seu corpo ou parte dele exibido à curiosidade pública, abarca diretamente a conduta de autoridades públicas que permitem ou até mesmo instigam a atividade dos veículos de comunicação de massa em divulgar a imagem e emitir juízo de valor sobre presos e detentos em rede nacional.

Ademais, é preciso atentar para a premissa básica de que o sujeito passivo dos tipos penais veiculados no art. 13 é expressamente definido como o preso ou o detento, pessoa que se encontra sob custódia de autoridades públicas, isto é, que tem sua liberdade de locomoção limitada pelo aparelho estatal.

Dessa forma, é evidente que a exposição do indivíduo segregado aos meios de comunicação, mesmo que não tenha sido perpetrada pela autoridade coatora mediante grave ameaça ou violência, estará acompanhada de mediante redução de sua capacidade de resistência. Isso porque é parece ser muito difícil desassociar a custódia do sujeito pelas forças estatais, detentoras do monopólio da violência, da inexorável diminuição do seu poder de resistir. Afinal, a redução da capacidade de resistência não necessariamente vem combinada com a utilização de violência ou grave ameaça, visto que “o sucesso do poder disciplinar se deve sem dúvida ao uso de instrumentos simples: o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e sua combinação num procedimento que lhe é específico, o exame5, razão pela qual a referida norma não deve implicar óbice à persecução dos abusos constatados em eventual caso concreto.

Em relação ao elemento subjetivo específico dos delitos, previsto no § 1º do art. 1º da citada lei, deve ser verificado o especial fim de agir na conduta do agente público – prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal –, cuja necessidade de se provarem uma ou mais dessas condições pode levar sim à dificuldade prática do enquadramento das autoridades públicas nos três incisos do art. 13. No entanto, com base nos casos de cobertura dos meios de comunicação de presos e detentos sob custódia das autoridades públicas, tem-se que a finalidade específica de agir prejudicar outrem pode ser facilmente provada pelas mídias audiovisuais e fotográficas veiculadas nos programas televisivos e em matérias jornalísticas de massa. Como exemplo, podem ser citados programas nacionais e regionais que realizam a cobertura da apresentação de detidos em delegacias de polícia, os quais são enfileirados algemados em frente a um painel, acompanhados das autoridades policiais, e são por estas obrigados a conceder entrevistas que, na maioria dos casos, consistem na exposição dos custodiados ao ridículo.

Isso revela o importante papel que os meios de comunicação exercem sobre a opinião pública e sobre o próprio funcionamento do sistema penal, vez que as reportagens jornalísticas quase sempre vêm acompanhadas de juízos de valor por parte de quem veicula a informação, nesse sentido “a acusação vem servida com seus ingredientes já demarcados por um olhar moralizante e maniqueísta; o campo do mal destacado do campo do bem, anjos e demônios em sua primeira aparição inconfundíveis6.

Assim, tanto os meios de comunicação de massa como as autoridades públicas, pelo simples ato de divulgar e conceder acesso, respectivamente, à imagem dos presos ou detentos, pertencentes, quase sempre, às classes sociais mais baixas, contribuem para o emprego da etiqueta de culpado nos sujeitos expostos à curiosidade pública, antes mesmo do início da ação penal em inúmeros casos, fortalecendo o processo de desumanização dessas pessoas, que “tornam-se supérfluas e passam a representar um verdadeiro fardo para o resto da sociedade”.7

A edição da lei 13.869/19, portanto, ao criminalizar de forma mais taxativa as autoridades públicas, de que é exemplo o artigo 13, caminha na direção de uma política criminal alternativa radical de reduzir as desigualdades de classes no processo de criminalização.

Cabe, no atual momento, observar e fiscalizar como se dará a aplicação da nova Lei de Abuso de Autoridade, se será utilizada efetivamente como controle dos abusos perpetrados pelos agentes públicos ou se será deixada ao relento como sua predecessora.

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1 Projeto de Lei 7.596/17. Acesso em 26/2/20. Clique aqui 

2 NUCCI, Guilherme de Souza. Lei de abuso de autoridade blinda ainda mais o agente público. Disponível clicando aqui. Acesso em: 14/4/20.

3 “Esta política significa efetuar uma ‘limpeza de classe’ do espaço público, empurrando os pobres ameaçadores (ou percebidos como tais) para fora das ruas, parques, trens, etc. Para aplicá-la, o Chefe de Polícia de Nova Iorque transforma sua administração em uma verdadeira ‘empresa de segurança’, com objetivos quantificados de baixa mensal da criminalidade a ser atingida custe o que custar [...]”. Em WACQUANT, Loïs. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 151

4 CALLEGARI, André; WERMUTH, Maiquel Ângelo Dezordi. “Deu no Jornal”: Notas sobre a Contribuição da Mídia para a (Ir) Racionalidade da Produção Legislativa no Bojo do Processo de Expansão do Direito Penal. André Luis. Revista Liberdades. nº 2. set./dez. 2009.

5 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 195.

6 BATISTA, Nilo. Mídia e Sistema Penal no Capitalismo Tardio. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: IBCCrim/RT, n. 42, p. 242-263, jan./mar., 2003, p. 249.

7 KROHLING. Aloísio. BOLDT. Raphael. Entre Cidadãos e Inimigos: o discurso criminalizante da mídia e a expansão do direito penal como instrumentos de consolidação da subcidadania. Revista Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba: UniBrasil - Faculdades Integradas do Brasil, 2008, Vol. 4, p. 16.

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*Luiza Braga Cordeiro de Miranda é advogada criminalista do escritório Carneiros Advogados. Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB).

 
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