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A forma antecedente das tutelas de urgência

Este trabalho examina alguns reflexos da compreensão da forma antecedente das tutelas de urgência como medida de facilitação do acesso à jurisdição

9/10/2020

A tutela antecedente foi uma das novidades – positivas – trazidas pelo Livro V da Parte Geral do Código de Processo Civil (Tutela Provisória). Ainda pouco explorada, é possível que siga mal compreendida. É o que será analisado neste ensaio.

Os arts. 303 e 305, CPC podem ser compreendidos como formas antecedentes de tutelas de urgência, leia-se, requerimentos avulsos de tutela satisfativa (antecipada)1 e de tutela cautelar, respectivamente. Antes da forma antecedente ser instituída pelo código, a parte interessada poderia requerer a tutela provisória no bojo da petição inicial ou em qualquer outro momento de um procedimento judicial em curso.2 Sem embargo, o código revogado não disciplinava a postulação da tutela provisória de urgência sem que a demanda estivesse integralmente formulada com a observância do figurino próprio a uma petição inicial (art. 282, CPC/73; art. 319, CPC).

A forma antecedente também pode ser compreendida como um requerimento avulso de tutela provisória de urgência; avulso que não importa um existir independente. Tirante a previsão do art. 304, CPC, cuja aplicação é restrita às tutelas provisórias de urgência satisfativas, tanto no art. 303 quanto no art. 305, o código institucionaliza o aditamento da demanda (art. 303, § 1º, I; art. 308); em outras palavras, a forma antecedente seria a primeira de duas etapas previstas em lei à formulação completa da demanda e demais elementos da petição inicial.

Aquilo que sob a égide do código revogado poderia ser explorado como uma estratégia à facilitação do acesso à jurisdição,3 orientada pela necessidade de provocar uma intervenção jurisdicional imediata (ex. suspensão de ato administrativo e reintegração do candidato ao certame), tornou-se um direito subjetivo. É direito da parte que preenche os requisitos do art. 303 ou do art. 305 se valer da forma antecedente das tutelas de urgência; é dever do órgão jurisdicional examinar a tutela provisória, contemporizando somente com os requisitos próprios a cada uma dessas espécies.

As formas antecedentes são respostas da legislação processual à urgência de tutela do sujeito moderno; meios que promovem o acesso à jurisdição (art. 5º, XXXV, CF/88) e, pois, direitos subjetivos. É como devem ser interpretadas.

Se a forma antecedente da tutela satisfativa é compreendida como um facilitador do acesso à jurisdição, permitindo que o sujeito de direito em situação de urgência possa acorrer ao judiciário sem a perfeita formulação da demanda, então, não é apropriada a interpretação que vincula o art. 303 ao art. 304, no sentido de que estariam amalgamados, é dizer, como se fossem uma espécie de “combo”. Não. É possível se valer da forma antecedente da tutela satisfativa sem que o autor pretenda a estabilização da tutela/imutabilidade das eficácias antecipadas. Interpretação outra não se coadunaria com o acesso à jurisdição, levando ao amesquinhamento do art. 303, CPC.

Partindo das mesmas premissas, o art. 303, § 4º, CPC não deve ser compreendido de forma “engessada”, como se o autor estivesse desautorizado a formular outros pedidos por ocasião do aditamento, independentemente do impacto no valor atribuído à causa. O que não pode faltar na petição apresentada com fundamento no art. 303 é a indicação do pedido de tutela definitiva correspondente ao de tutela provisória (ex. suspensão do ato administrativo, reintegração do candidato ao certame – anulação do ato administrativo; ordem para que o plano de saúde autorize determinado procedimento – invalidade de uma determinada cláusula e reconhecimento do direito à cobertura etc.). Nessa linha, e partindo dos mesmos exemplos, por ocasião do aditamento seria lícito ao Autor deduzir pretensão à indenização. 

Sob outro ângulo, se a forma antecedente da tutela satisfativa é uma opção, um direito decorrente do acesso à jurisdição, então é equivocada a interpretação que reduz o âmbito de incidência do art. 304, CPC à tutela satisfativa concedida nos moldes do art. 303, CPC. Ao deixar de exercer seu direito subjetivo à forma antecedente, o autor não está, necessariamente, abrindo mão da estabilização. Nada impede que a estabilização ocorra quando a tutela provisória foi requerida no bojo de uma petição inicial completa, hipótese em que o Autor teve o cuidado em subsidiar o juízo com mais elementos e, ainda assim, pretende a estabilização. Outrossim, por meio de um negócio processual, nada impede que a tutela provisória de urgência satisfativa se estabilize em qualquer outro momento do procedimento de conhecimento.

A forma antecedente promove a facilitação do acesso à jurisdição em situações marcadas pela urgência. Retenha-se o ponto: é apropriada às tutelas de urgência, sendo inaplicável à tutela da evidência. Não se admite forma antecedente de tutela da evidência, pois ela (forma antecedente) pressupõe a postergação do contraditório (contraditório diferido); é inerente à forma antecedente a análise e eventual concessão da tutela provisória sem a bilateralidade da audiência (oitiva do réu). Não há forma antecedente de tutela da evidência, porque do ponto de vista constitucional, a mitigação do contraditório somente é justificável quando não é possível ouvir ou aguardar a oitiva do réu. No particular, posicionamo-nos pela inconstitucionalidade do art. 311, parágrafo único, CPC.

Por último, um breve apontamento sobre a forma antecedente da tutela cautelar. O legislador nunca reconheceu a autonomia substancial das cautelares. Antes do CPC em vigor, a legislação disciplinava um procedimento cautelar autônomo; a tutela cautelar poderia ser buscada por meio de um procedimento preparatório ou em caráter incidental (art. 796, CPC/73); no primeiro caso, antes do procedimento “principal”, ao passo que no segundo ele já existira.

Fiel ao pensamento de alguns nomes da Escola Sistemática italiana, destaque a Piero Calamandrei, a cautelar foi tratada pelo CPC/73 como dependente ou acessória.4 Em tema de autonomia, a única concessão do CPC/73 foi a de um procedimento próprio. Não é de hoje que a legislação brasileira tem dificuldade com a dignidade da tutela cautelar.

Mirando os arts. 305/310, poder-se-ia dizer que o código em vigor desferiu golpe ainda mais intenso na dignidade da cautela, recusando-lhe a própria autonomia procedimental; o que antes era um rito autônomo, conquanto dependente de outro procedimento dito principal, foi transformado em forma antecedente. Isso explica, para quem lê os arts. 305 a 308 pela primeira vez, porque existiu a preocupação em disciplinar o contraditório do réu na forma antecedente da tutela cautelar, o prazo de trinta dias à formulação do pedido “principal”, a previsão de revelia etc.   

Poder-se-ia afirmar que o código desferiu golpe ainda mais intenso na dignidade da cautela. Sucede que o fundamento da cautela está no direito material; o direito procedimental pode, no máximo, arranhá-la. Partindo da premissa de que a forma antecedente da tutela cautelar seja medida alinhada ao acesso à jurisdição, então o intérprete deixa de acreditar que ela foi amordaçada a uma simples fase antecedente. Não foi e nem poderia. No comparativo ao CPC/73, seu emprego foi simplificado pelo atual código. E quanto às cautelares autônomas, que já não tinham vez no código anterior, seria forçoso deduzir um pedido principal? Entendemos que não. Quando for o caso, a autonomia substancial da cautela pode ser preservada com a observância do procedimento comum de conhecimento, se não existir negócio jurídico processual construindo procedimento mais apropriado.

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1 Não é ocioso lembrar que parcela da doutrina e a própria legislação, tomam a “tutela antecipada” como sinônimo de tutela satisfativa. É por isso que o art. 303 do CPC fala em tutela antecipada requerida em caráter antecedente.

2 O que sempre guiou, e continua guiando, a oportunidade do requerimento da tutela provisória, é a presença de seus requisitos.

3 Sob a égide do CPC/73, por hipótese, seria possível provocar a jurisdição sem a perfeita formulação da demanda/respeito aos requisitos da petição inicial, concomitante à apresentação do requerimento de tutela provisória. Sucede que nessa situação, o requerente não poderia confiar que a formulação incompleta da demanda viabilizaria a apreciação da tutela de urgência pelo magistrado e, ato seguinte, pudesse complementar a petição inicial. Na falta de regramento para tanto, a medida seria arriscada. Mais que isso. Difícil acreditar que os vícios ou omissões da petição inicial não seriam tratados como obstáculos ao exame da tutela provisória, cuja análise restaria condicionada à complementação da demanda/observância dos requisitos da inicial. Em resumo, que sem o juízo de admissibilidade positivo não seria possível enfrentar a tutela provisória – mutatis mutandis, tal como ocorre ainda hoje se, por exemplo, a tutela provisória foi requerida, mas as custas não foram recolhidas ou houve algum equívoco na atribuição do valor da causa. Ainda assim, era um caminho possível.

4 Comungando dessa premissa, o atual art. 300, caput, CPC reclama a demonstração do perigo de dano (iminente) ou risco ao resultado útil do processo, expressões que têm o mesmo significado no contexto procedimental, é dizer, que traduzem a mesma ideia – equivocada – de que a cautelar seria acessória.

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*Mateus Costa Pereira é doutor em Direito Processual. Professor de Direito Processual e de Arbitragem. Autor do podcast “Processo e Prosa”. Advogado e Consultor jurídico. Sócio do escritório da Fonte, Advogados.

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