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Tutela cautelar x tutela satisfativa: ainda é relevante distinguir os institutos?

O ensaio reflete a (ir)relevância da separação entre tutela cautelar e tutela satisfativa (“tutela antecipada”) após a consagração da fungibilidade entre as tutelas de urgência e o advento do art. 300, caput, CPC.

1/10/2020

Dadas as dificuldades em discernir a tutela cautelar da tutela satisfativa (“tutela antecipada”1), quando o § 7º do art. 273, CPC/73 consagrou a fungibilidade entre as tutelas de urgência, porque tamanhas as dificuldades em apartá-las, a doutrina regozijou; sobre serem irmãs, foi dito que seriam quase gêmeas (ou quase gêmeas univitelinas).2

Encartado no art. 273 com o terceiro movimento de reforma do CPC/73 (Lei nº 10.444/02), o § 7º ampliou o sincretismo processual;3 inclusive, provável que muitos tenham entrevisto nele uma carta de alforria, facilitando o trânsito de “operadores” por estradas, não raro, sinuosas. Desde então, eventual confusão entre as tutelas cautelar e satisfativa não implicaria o pronto indeferimento da medida erroneamente postulada no caso concreto; sob a égide da fungibilidade (de mão dupla, diga-se de passagem), uma vez preenchidos os requisitos da tutela de urgência apropriada à espécie, caberia ao magistrado deferi-la.4

Em matéria de aproximação entre as tutelas de urgência, o art. 300, caput, do Código de Processo Civil (CPC) superou a fungibilidade; fê-lo, contudo, por meio do baralhamento de seus requisitos e, pois, negligenciando séculos de historicidade.5 A redação desse artigo foi ao extremo de uniformizar (rectius: pretender) os requisitos à concessão das tutelas de urgência.6

Muito bem. 

Forte nessas razões, o leitor concluiria que a distinção entre tutelas cautelares e satisfativas perdeu relevo; assombrado pela dúvida sobre a natureza de medida a ser postulada, eventualmente, do procedimento a ser observado, bastaria a astúcia do profissional em indicá-la como tutela de urgência. Ledo engano. Verdadeiramente, o advento do atual CPC revigorou a distinção entre essas tutelas. Existem ao menos quatro razões em suporte dessa assertiva. Vejamo-las.

1ª A primeira delas recai sobre o requisito negativo estampado no art. 300, § 3º, CPC (art. 273, § 2º, CPC/73), o qual torna defesa a tutela provisória de urgência satisfativa diante do risco de irreversibilidade dos efeitos (concretos) da decisão. Esse dispositivo tem incidência restrita às tutelas de urgência satisfativas.7

2ª A despeito da redação do art. 300, caput, CPC, os requisitos à concessão das tutelas de urgência não se confundem; há um espesso tecido histórico e doutrinário à demonstração disso. A título de ilustração, suficiente pensar no emprego do art. 300, CPC à obtenção de tutelas preventivas: inibitória e cautelar.8 Deixando a probabilidade do direito de lado – a nosso ver, requisito comum a toda e qualquer tutela provisória –,9 somente a tutela cautelar reclama a demonstração do perigo de dano iminente.

A tutela inibitória é uma modalidade de tutela preventiva com atuação sobre o ilícito; em seu caráter tríplice, visa a inibir a ocorrência, repetição ou continuação de um ato contrário ao direito (= ilícito). Já a tutela cautelar tem por objetivo assegurar a reparabilidade do dano. Para a concessão da tutela inibitória é irrelevante a existência ou possibilidade de um dano, bastando a demonstração do ilícito; eventual alusão a dano em procedimento judicial em que se busca a tutela inibitória deve ser encarada como apelo retórico, pois o prejuízo sequer ingressa na cognição judicial.10 Quem postula tutela inibitória fundada em urgência terá o ônus em demonstrar o perigo da demora, situação diversa do risco de dano iminente.

Retenha-se o ponto: apenas a tutela cautelar reclama a alegação e prova do dano iminente (= perigo de dano), observando que a expressão “risco ao resultado útil do processo” é caudatária da premissa doutrinária – equivocada – que reduz a cautelar a uma tutela do “processo”; cuida-se de variante da tese que enxerga a tutela assecuratória como instrumento de outro instrumento. Em síntese, ambas as expressões (requisitos) estão referidas à tutela cautelar, não sendo aplicáveis à tutela satisfativa.

A sólida construção doutrinária que impede o baralhamento dos requisitos à concessão de tutelas de urgências (cautelares e satisfativas) preexiste ao código em vigor, mas foi positivada em seu art. 497, parágrafo único; o preceito alude tanto à tutela inibitória (preventiva) quanto à tutela de remoção do ilícito (repressiva)11 como modalidades de tutela que, atraídas pela ameaça ou ocorrência de um ilícito, tornam dispensável a alegação/prova de dano.

3ª O mesmo código que pretendeu uniformizar os requisitos à concessão das tutelas de urgência no caput do art. 300, CPC, teve o cuidado em estabelecer procedimentos distintos às formas antecedentes de tutela satisfativa (art. 303) e de tutela cautelar (arts. 305/308) – trata-se de um paradoxo, superável pela interpretação consorciada do art. 300, caput com o art. 497, parágrafo único. Além de prazos e termos iniciais diversos ao aditamento, somente na forma antecedente da tutela cautelar houve a preocupação em institucionalizar o contraditório do réu (art. 307). 

4ª Por último, a diferenciação também ganhou importância com a previsão da estabilização e da imutabilidade das eficácias antecipadas (art. 304, CPC),12 aplicável somente à tutela provisória de urgência satisfativa.13

Em poucas linhas, essas são as razões pelas quais a doutrina, em matéria de tutelas de urgência, deverá continuar se esmerando em diferençar as tutelas cautelares das tutelas satisfativas. No particular, entrevemos um ponto de partida seguro em Pontes de Miranda, ao distinguir a “segurança-da-execução” (tutela imediata sem ser satisfativa) da “execução-para-segurança” (adiantamento de satisfação ou execução provisória).14 Tema para outro ensaio.   

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1 Nomenclatura impropriamente utilizada pela doutrina e adotada pela legislação para designar a tutela de urgência satisfativa. Nesse sentido, suficiente perceber que a expressão tutela antecipada faz contraponto à tutela final; logo, não fala nada sobre o direito material (se cautelar ou satisfativa).

2 DINAMARCO, Cândido Rangel. A reforma da reforma. 6. ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 90.

3 FIGUEIRA JR., Joel Dias. Comentários ao Código de Processo Civil (arts. 270 a 281). 2. Ed. São Paulo: RT, 2007, t. I, p. 347.

4 DIDIER JR., Fredie; JORGE, Flávio Cheim; RODRIGUES, Marcelo Abelha. A nova reforma processual: comentários às Leis n. 10.317/2001, 10.352/2001, 10.358/2001 e 10.444/2002. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 84-85.

5 Por todos, cf. SILVA, Ovídio A. Baptista da. Do processo cautelar. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 85 e ss.

6 “Art. 300. A tutela de urgência será concedida quando houver elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo.”

7 Cuida-se de preceito que, já ao tempo do CPC/73, era mitigado pela jurisprudência. Foge aos nossos propósitos analisar o assunto neste momento.

8 Neste ensaio, não analisaremos a posição doutrinária que não enxerga preventividade na tutela cautelar. Esse exame foi realizado em outro trabalho: PEREIRA, Mateus Costa; PIMENTEL, Alexandre Freire; LUNA, Rafael A. Da – suposta – provisoriedade da tutela cautelar à “tutela provisória de urgência” no novo Código de Processo Civil brasileiro: entre avanços e retrocessos. Revista de Processo Comparado. São Paulo, RT, v. 3, p. 15-40, 2016. O trabalho pode ser encontrado em: <_https3a_ _bit.ly2f_2gg6xfu="">. 

9 A probabilidade do direito é requisito comum às tutelas provisórias. No tocante à “tutela da evidência” (art. 311, CPC), o legislador qualificou a probabilidade do direito no horizonte probatório e/ou de um provimento vinculativo.  

10 Sobre o tema, cf.: PEREIRA, Mateus Costa; GOUVEIA, Lúcio Grassi de; PAULA FILHO, Alexandre de. Tutela voltada ao ilícito, prescindibilidade do dano e limites da cognição judicial: estudo de caso envolvendo a transgressão reiterada da legislação de trânsito (ACP no 5009543-84.2015.4.04.7204/SC) visando a inibir futuros equívocos. Revista Brasileira de Direito Processual - RBDPro, Belo Horizonte, Fórum, v. 110, p. 17-36, 2020. Disponível para consulta em: <_https3a_ _bit.ly2f_3cbvx6d="">.

11 Tutela que escapa ao objeto deste ensaio.

12 Sobre o tema, ver:  GOUVEIA FILHO, Roberto P. Campos; PEIXOTO, Ravi; COSTA, Eduardo J. da Fonseca. Estabilização, imutabilidade das eficácias antecipadas e eficácia de coisa julgada: uma versão aperfeiçoada. Revista eletrônica de direito processual, v. 17, p. 550-578, 2016.

13 É oportuno registrar que não limitamos a estabilização e a imutabilidade à da tutela de urgência satisfativa concedida na forma antecedente.

14 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado das ações. Campinas: Bookseller, 1999, t. VI, p. 343; p. 409. Enaltecendo e desenvolvendo a contribuição de Pontes para o tema, cf. SILVA, Ovídio A. Baptista da. Do processo cautelar. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 42 e ss.

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*Mateus Costa Pereira é doutor em Direito Processual. Professor de Direito Processual e de Arbitragem. Diretor de Assuntos Institucionais da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro). Membro do Conselho Editorial da Revista Brasileira de Direito Processual (RBDPro). Advogado e Consultor jurídico (Sócio do da Fonte, Advogados). 

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