Migalhas de Peso

Restituição de tributos no regime de substituição tributária à luz da jurisprudência do STF

Mais uma vez, STF confirma ser devida a restituição de tributos pagos a maior mediante o regime de substituição tributária, quando a base de cálculo efetiva das operações é inferior a presumida.

30/9/2020

Dispõe o Código Tributário Nacional, notadamente os arts. 113 e 114, que a obrigação tributária principal surge com a ocorrência do fato gerador, sendo este a situação definida em lei como necessária e suficiente à sua ocorrência.

A regra, portanto, é que o tributo apenas poderá ser objeto de cobrança após a ocorrência do fato gerador, momento no qual há a manifestação da capacidade econômica do contribuinte.

Nada obstante a rigidez do nosso sistema tributário, excepcionalmente, a Constituição permite a antecipação do recolhimento do tributo para momento anterior ao da efetiva ocorrência da hipótese de incidência, por meio do instituto da substituição tributária progressiva ou “para frente”, insculpido no § 7º do art. 150 da Carta Política, introduzido através da emenda constitucional 3/93. Observe-se a dicção constitucional:

“Art. 150.

(...)

§ 7º A lei poderá atribuir a sujeito passivo de obrigação tributária a condição de responsável pelo pagamento de imposto ou contribuição, cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente, assegurada a imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido.”

Em síntese, no regime de substituição tributária progressiva, determinado contribuinte situado no início da cadeia de produção assume a condição de responsável por reter e recolher antecipadamente o tributo devido não apenas sobre a sua própria operação, mas, também, o devido sobre as operações subsequentes, a serem praticadas pelos próximos contribuintes envolvidos na cadeia.

Naturalmente, se o fato gerador subsequente ainda não ocorreu, é evidente que é desconhecido o valor efetivo da operação presumida – este que se estabelece tão somente quando a operação se concretizar no plano dos fatos. Assim, para efeito de retenção e recolhimento do tributo devido por substituição tributária para frente, assume-se como “preço” da operação uma unidade de valor presumida, normalmente fixada por ato do ente tributante ou por entidades representativas.

Apesar de, conforme pacificamente admitido, o instituto da substituição tributária progressiva não ferir, de per si, os princípios constitucionais tributários, o fato é que esse deve necessariamente ser aplicado com temperamentos, justamente porque permite a tributação tomando por base tão somente uma presunção de ocorrência de um fato gerador futuro.

Tanto é assim que, da leitura do § 7º do art. 150 da CF/88, vê-se que “o constituinte fez surgir a nova figura jurídica do fato gerador por presunção, contrabalançada pela ‘imediata e preferencial restituição da quantia’ na hipótese de sua não realização’”1. Em outras palavras, o constituinte instituiu a técnica da substituição tributária para frente, visando a tornar a fiscalização mais eficaz; e, em contrapartida, estabeleceu uma garantia de restituição em favor do contribuinte, com o objetivo de afastar eventual excesso de poder de tributar.

Acerca do direito de restituição dos contribuintes, um grande debate foi levado ao Supremo Tribunal Federal. Especificamente, por anos, discutiu-se se a parte final do § 7º do art. 150 da Constituição Federal asseguraria a imediata e preferencial restituição da quantia paga, apenas na hipótese de o fato gerador presumido não se realizar totalmente ou, se também, o texto constitucional asseguraria à restituição da quantia paga a maior, caso o fato gerador presumido se realizasse parcialmente.

A nosso ver, parece-nos que a melhor interpretação da norma do § 7º do art. 150 da CF/88 é no sentido de que, se o fato gerador efetivamente realizado no plano dos fatos não reflete a grandeza que, presuntivamente, serviu de parâmetro para o recolhimento antecipado no momento da presunção, o tributo será, ainda que parcialmente, indevido, devendo ser restituído. É dizer, na hipótese de a base de cálculo presumida ser contrariada pela base de cálculo efetivamente praticada na operação comercial realizada, é esta que deve se sobrepor.

Entender em sentido diverso em nome da praticidade, parece-nos, pode dar margem para que, de encontro aos comandos constitucionais, o instituto torne-se um meio de enriquecimento sem causa para o Estado. Afinal, estar-se-ia tributando grandeza que não corresponde ao real preço da venda ao consumidor final, ou seja, que não corresponde ao fato gerador subsequente.

O posicionamento ora defendido, vale dizer, encontra guarida na doutrina mais abalizada do direito tributário. Pela contundência, cumpre trazer à baila os ensinamentos de Humberto Ávila, expendidos em Parecer colacionado nos autos do RE 593.849/MG, no qual analisou a constitucionalidade da restituição do ICMS pago antecipadamente em razão da substituição tributária na hipótese de restar comprovado que, na operação final com mercadoria ou serviço, ficou configurada obrigação tributária de valor inferior à presumida. Senão vejamos:

“(...) a CF/88 não permite um abandono total do fato gerador subsequente, como se poderia apressadamente pensar. Ao contrário, na operação com substituição, o legislador institui obrigação tributária ‘cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente’, devendo assegurar a restituição da quantia paga, caso não se realize ‘o fato gerador presumido’. Isso significa que, embora seja legalmente criado um novo fato gerador (saída da mercadoria na fase inicial do ciclo econômico), o ponto de referência para o dimensionamento da obrigação tributária com substituição continua sendo o fato gerador que presumidamente vai ocorrer em fase subsequente do ciclo econômico. Em outras palavras, a CF/88 não autoriza o legislador a adotar qualquer base de cálculo para a obrigação com substituição, mas apenas aquela cuja grandeza corresponda ao fato que deva ocorrer posteriormente. Essa exigência de vinculação conduz a capacidade objetiva ao centro da substituição tributária.

Pode-se afirmar, até mesmo, que a capacidade contributiva objetivada pelo valor de venda efetiva da mercadoria constitui uma razão que não pode ser afastada por completo, recebendo um peso que se mantém mesmo diante das razões que justificam a utilização da substituição. A capacidade contributiva objetiva é, assim, uma razão para tanto (ou ‘contanto que’), no sentido de que não pode ser descartada, conservando seu peso mesmo diante de razões contrárias e, não prima facie (ou ‘descartável’), no sentido de que pode ser afastada completamente em face de razões contrárias.”

Igualmente precisa a lição de Marco Aurélio Greco:

“Questão que pode ser levantada é saber se a previsão constitucional alcança as hipóteses em que o fato gerador não se realizar (dicção literal do dispositivo) ou se também se aplica às hipóteses em que ele ocorrer, mas não tiver a dimensão prevista ao ensejo do recolhimento por antecipação (não ocorrer tal como previsto). O sentido do dispositivo constitucional é claramente o de proteger o contra exigências maiores do que as que resultam da aplicação do modelo clássico do fato gerador da obrigação tributária. Não há uma autorização constitucional para cobrar mais do que resultaria da aplicação direta de alíquota sobre a base de cálculo existente ao ensejo da ocorrência do fato legalmente previsto (fato gerador). Antecipa-se o imposto devido, não se antecipa para arrecadar mais do que o devido. Portanto, a devolução é de rigor sempre que o fato não realizar ou, realizando-se, não se der na dimensão originalmente prevista. O excesso tem a natureza de uma cobrança indevida e a Constituição não está legitimando o indébito.2

Nada obstante, até outubro de 2016, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal não coadunava com esse entendimento. Com efeito, apegando-se a uma interpretação sobremaneira literal, entendia-se que a Constituição apenas asseguraria a imediata e preferencial restituição de quantia paga no caso de não se realizar o fato gerador presumido, vendando-se a mesma possibilidade nos casos em que o fato gerador se concretizasse em importe inferior ao valor que serviu de referência para antecipação do tributo.

Nesse sentido, no bojo da ADIn 1.851, entendeu a Suprema Corte que o fato gerador presumido não é provisório, mas definitivo, de sorte que não daria ensejo à restituição ou complementação do imposto pago, senão na hipótese de sua não realização total. 

Esse entendimento, todavia, foi superado pelo STF no julgamento do RE 593.849/MG realizado, sob o regime de repercussão geral, no ano de 2016. No caso concreto, objetivava-se garantir o direito da empresa Parati Petróleo Ltda. de usufruir da garantia constitucional de imediata e preferencial restituição da quantia de ICMS concernente às diferenças acontecidas nas operações finais de venda de óleos combustíveis, óleo diesel, querosene e outros lubrificantes com preço inferior ao valor que serviu de base à antecipação do imposto.

No julgamento, dando nova interpretação ao § 7º do art. 150 da CF, a Suprema Corte fixou tese nos seguintes termos: “é devida a restituição do ICMS pago a mais no regime de substituição tributária para frente se a base de cálculo efetiva da operação for inferior a presumida”.

Na oportunidade, alertou o relator, ministro Edson Fachin, que o princípio da praticidade, que justifica a existência do sistema de substituição tributária, não pode se sobrepor aos princípios da igualdade, da capacidade contributiva e da vedação ao confisco. Outrossim, destacou que A tributação não pode transformar uma ficção jurídica em uma verdade absoluta, tal como ocorreria se o fato gerador presumido tivesse caráter definitivo, logo, alheia à realidade extraída da realidade do processo econômico."

Em mesmo sentido, em julgamento virtual concluído no último dia 27 de junho, agora sob relatoria do ministro Marco Aurélio, decidiu o STF, apreciando o RE 596.832/RJ, também sob a sistemática de repercussão geral, ser devida a restituição de outros tributos (dessa vez, as contribuições sociais PIS e Cofins) mediante o regime de substituição tributária, quando a base de cálculo efetiva das operações for inferior à presumida.

O recurso apreciado foi interposto por um grupo de postos de combustíveis com o fito de obter a restituição do excesso pago de PIS e COFINS, no âmbito do regime de substituição tributária progressiva instituído pela lei 9.718/98, a que se submeteram em determinado período.

No julgamento, utilizando-se das mesmas premissas que orientaram o RE 593.849/MG, fixou-se a seguinte tese: “É devida a restituição da diferença das contribuições para o Programa de Integração Social – PIS e para o Financiamento da Seguridade Social – Cofins recolhidas a mais, no regime de substituição tributária, se a base de cálculo efetiva das operações for inferior à presumida.”

Conforme reconhecido em sede do julgamento, a praticidade da substituição tributária não pode perder de vista os direitos e garantias dos contribuintes, que não podem ser obrigados a arcar com uma carga tributária superior à sua própria manifestação de riqueza.

Em nosso entendimento, o posicionamento que ora perfilhado pelo Supremo Tribunal Federal parece acertado e representa importante vitória aos contribuintes, que, por décadas, aguardaram uma definição segura a respeito da matéria. Vez que ambas as decisões foram proferidas sob o apanágio da repercussão geral, o entendimento deverá ser seguido pelos demais tribunais pátrios.

_________

1 Reclamação 5.639/MT. Rel. Min. Dias Toffoli. Primeira Turma. DJ: 30.09.2014. DJe: 14.11.2014.

2 GRECO, Marco Aurélio. Comentário ao artigo 150, parágrafo 7º. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; STRECK, Lenio L. (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013. p. 1672.

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*Débora Pascal de Almeida é advogada do escritório Erick Macedo Advocacia. Pós-graduanda em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET.

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