Migalhas de Peso

Dano moral e a pornografia da vingança

No âmbito da responsabilidade civil, a divulgação do revenge porn tem o condão de causar danos à imagem, honra e privacidade da vítima, constituindo uma grave lesão aos direitos da personalidade.

29/9/2020

Não é de hoje que a intimidade é vista como um templo sagrado, afinal, todos têm o direito de resguardar para si o que não pretende exibir ao mundo. Todavia, com o advento das novas tecnologias, em especial com a disseminação da internet, manter a intimidade como algo restrito tem se tornado cada vez mais difícil, pois as mídias sociais permitem a difusão anônima de imagens e vídeos em escala global e imediata, emanando, ainda, a dificuldade de eliminação completa do conteúdo uma vez divulgado. 

Diante deste cenário, tem sido cada vez mais frequente o compartilhamento não autorizado de imagens íntimas, consentidas ou não. Em regra, a prática tem relação com a vingança de ex-parceiros ou parceiras em razão do término do relacionamento, mas pode também ocorrer, por exemplo, quando uma pessoa é filmada ou fotografada sem o seu conhecimento dentro de um banheiro público. 

Tal prática é conhecida como “pornografia da vingança” (Revenge Porn1 ou Revenge Pornography), e tem se tornado cada vez mais frequente, podendo ser materializada de maneira online ou offline, ou seja, os materiais podem ser compartilhados na internet, enviados por e-mail, mensagem de texto no celular ou, ainda, mostrados fisicamente para terceiros, por meio de foto impressa ou digital. 

No âmbito da responsabilidade civil, a divulgação do revenge porn tem o condão de causar danos à imagem, honra e privacidade da vítima, constituindo uma grave lesão aos direitos da personalidade, bens imateriais consagrados e tutelados pela Constituição da República Federativa do Brasil2. O trauma vivido pela vítima (geralmente mulher) é imensurável, sendo que em diversas ocasiões há a necessidade de acompanhamento psicológico e psiquiátrico, pois o reflexo do machismo impregnado na coletividade acaba por levar a vítima, que é taxada como a culpada pela ocorrência, a cometer atos extremos, inclusive havendo relato de casos de suicídio por conta da exposição indevida. 

Nesse diapasão, no caso de ofensa à honra, à imagem e à vida privada da vítima, tem-se como preenchidos os requisitos da responsabilidade civil, uma vez que: (a) o ato ilícito se caracteriza na divulgação de imagens e vídeos íntimos sem que haja consentimento da vítima; (b) o dano resta evidenciado nas ofensas à intimidade, à honra e à imagem da vítima; e (c) há evidente nexo de causalidade entre a conduta ilícita praticada e o dano sofrido pela ofendida. 

Mas além da configuração dos requisitos para responsabilização do ofensor, o grande desafio que os tribunais vêm enfrentando nos casos de revenge porn diz respeito à quantificação dos danos morais. Em um caso julgado em 2016 pelo TJ/MG, a decisão de 1ª instância condenou o réu ao pagamento de R$ 100 mil a título de danos morais à vítima da pornografia da vingança. No entanto, a Corte deu provimento por maioria de votos ao recurso do réu a fim de diminuir os danos morais para apenas R$ 5.000,00, sob a alegação de que a vítima teria concorrido para a produção do dano e assumido, assim, o risco da divulgação ao enviar as imagens voluntariamente para o ex-namorado. Sobre tal decisão foram opostos embargos infringentes (ainda sob a vigência do CPC anterior), acolhidos por unanimidade para majorar a indenização para o valor inicialmente proposto pelo relator (R$ 75.000,00).

Ainda que a vítima tenha se deixado fotografar, não consentiu com a divulgação – o registro das imagens e vídeos ocorrido durante o relacionamento tem como premissa a boa-fé e confiança existente entre o casal e essa violação é imposta pelo ofensor com o único intuito de desonrar a vítima. Assim, o papel de vítima não pode jamais ser relativizado – a interpretação de que ela teria concorrido para a produção do dano, atraindo a aplicação do art. 945 do Código Civil3 é tecnicamente incorreta, haja vista que o dano não ocorreu com a captação da imagem, mas com sua divulgação.

Em outro caso de revenge porn, houve a condenação solidária das empresas Samsung Eletrônica Amazônia Ltda. e Advance Express Assistência Técnica Ltda. ao pagamento de R$ 25.000,00 por danos morais. No caso concreto, enquanto o aparelho celular de uma pessoa encontrava-se para conserto na assistência técnica autorizada da Samsung, um técnico acessou a conta pessoal do WhatsApp da vítima de maneira que, alguns dias depois, a demandante passou a receber mensagens ofensivas em seu celular, assim como em seu perfil no Facebook, acerca de fotografias pessoais em estado de nudez, que foram tiradas por ela mesma, através de seu celular, no intuito exclusivo de compartilhamento com seu namorado. Ora, evidentemente que houve uma violação de confiança, pois ao depositar seu dispositivo para reparo, é razoável supor que seus arquivos pessoais não serão vasculhados ou acessados ou, no mínimo, que não serão divulgados. 

Ainda, é importante ressaltar que no que diz respeito à responsabilidade dos provedores de internet, onde são vinculadas as fotos ou vídeos da vítima de pornografia não consensual, o art. 18 da lei 12.965/18 (Marco Civil da Internet – MCI49) prevê a exclusão da responsabilidade dos provedores por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros. Contudo, segundo dispõe o art. 214, os provedores são responsabilizados quando receberem notificação da pessoa que teve sua intimidade violada e, mesmo assim, não excluírem as imagens, vídeos ou outros materiais privados. Neste sentido, o E. STJ já decidiu, no ano de 2018, que após o recebimento da notificação, o provedor de internet se torna responsável subsidiário pela violação da intimidade decorrente da divulgação do conteúdo não autorizado e não desvinculado5.

Por fim, não se pode olvidar, também, que além de se tratar de uma ofensa moral, a partir da nova Lei de Proteção de Dados Pessoais – lei 13.709 de 14/8/18 – o revenge porn foi tipificado de forma precisa como crime, sendo que além da indenização que terá que pagar, o ofensor ficará sujeito ao crivo da justiça criminal.

Pelo exposto, entendemos que a era digital e as novas ferramentas tecnológicas não são capazes de reduzir a proteção legal aos direitos à privacidade e intimidade, sendo obrigação do Judiciário pautar sua atuação de modo a garantir a ampla reparabilidade dos direitos da personalidade violados em tais casos, sopesando o gravíssimo grau de culpabilidade dos ofensores, cujo intento não é outro senão causar desgosto à vítima.

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1 Embora a nomenclatura não seja a mais adequada, uma vez que nem sempre o ato é praticado por vingança, tem-se que o termo é o mais bem aceito atualmente.

2 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...]

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

3 Art. 945. Se a vítima tiver concorrido culposamente para o evento danoso, a sua indenização será fixada tendo-se em conta a gravidade de sua culpa em confronto com a do autor do dano.

4 Art. 21. O provedor de aplicações de internet que disponibilize conteúdo gerado por terceiros será responsabilizado subsidiariamente pela violação da intimidade decorrente da divulgação, sem autorização de seus participantes, de imagens, de vídeos ou de outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado quando, após o recebimento de notificação pelo participante ou seu representante legal, deixar de promover, de forma diligente, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço, a indisponibilização desse conteúdo.[...]

5 STJ – REsp 1.679.465 SP 2016/0204216-5, relator: ministra Nancy Andrighi, data de julgamento: 13/3/18, T3 – 3ª turma, data de publicação: DJe 19/3/18.

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*Clayton Reis é pós-doutor em Responsabilidade Civil pela Universidade de Lisboa. Mestre e doutor em Direito das Relações Sociais. Professor universitário e advogado do escritório Reis & Alberge Advogados.

 
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