1. Considerações preliminares
Debates diversos têm sido suscitados no meio arbitral a respeito do tema deste artigo em relação ao qual pretendemos demonstrar impropriedades na argumentação utilizada e, consequentemente, nas conclusões correspondentes, que fogem ao melhor direito. Sob esse aspecto nota-se um problema relacionado à marginalização do estudo do direito segundo o conceito sistêmico, permanecendo os operadores protegidos atrás das fortalezas estruturadas a partir das especialidades, o que se reflete na arbitragem, fato agravado pelo viés predominantemente processual, do qual o direito material tem ficado vassalo, inversamente à natureza das coisas.
Sob o aspecto acima a arbitragem é um microssistema jurídico – talvez nem seja uma especialidade do direito – que se relaciona com os demais. Procurando uma imagem para aclarar esse entendimento podemos pensar em uma teia de aranha, que se ramifica muitas vezes de forma circular, presa a alguns galhos de uma árvore que vemos como os princípios fundantes do Direito. Ao perder a aderência a um deles a teia jurídica torna-se ineficaz para regular adequadamente determinado negócio.
A ilustração dos microssistemas jurídicos pela figura de círculos interligados é incompleta, a exemplo daqueles que formam a identidade dos jogos olímpicos. Isto porque os círculos situados nos dois extremos não conversam com os demais, a não ser por meio de um eventual e distante reflexo, o que não acontece no mundo jurídico, que deve ser tomado como um todo. Por isso é mais visível para os nossos fins a ilustração da teia de aranha.
Note-se que quando um inseto é apanhado na teia os seus movimentos desesperados para se livrar se propagam pela teia e levam a informação para a aranha de que há ali um ser que foi capturado. Assim funcionam os microssistemas jurídicos, relacionando-se uns com os outros de maneira mais intensa com os que apresentam maior familiaridade jurídica e menos com os demais. Mas toda a teia é uma rede única, não podendo ser cortada em pedaços, o que acarretaria, como consequência, a sua inutilidade para o fim previsto e desejado.
Para os fins do presente artigo não precisamos refazer um trabalho de arqueologia jurídica, desenterrando outra vez a história e o desenvolvimento do instituto da desconsideração da personalidade jurídica, nascido longinquamente na Inglaterra, transmigrado para o direito norte-americano e trazido para o Brasil pelas mãos pioneiras de Rubens Requião1. Este autor o considerava uma técnica de ataque a fraudes contra credores por meio do mau uso (e claramente contra o direito) da proteção patrimonial dada pela personalidade jurídica de sociedades, atrás da qual se escondiam maliciosamente os sócios daquelas, frente aos credores destas. O fundamento histórico-doutrinário se dava em reação à fraude contra credores e no tocante à teoria do abuso de direito.
Esse instituto, como se sabe, depois da estranheza inicial com que foi recebido no país, logo alcançou foros de reconhecimento e seu uso se difundiu largamente, tendo infelizmente se transformado em ferramenta de busca da satisfação do credor a qualquer preço, especialmente nos direitos do consumidor e trabalhista. Nesses a regra presente no dístico de suas bandeiras era (e é ainda), “chechez l’argent”, ou seja, buscar o dinheiro onde possa ser encontrado em benefício do credor. Essa “técnica” originou abusos judiciais os mais diversos, que se transformaram em motivo de espanto para os cultores do direito, quando não em um riso amargo. Nessa visão caricata, até um prestador de serviços à sociedade devedora inadimplente foi muitas vezes chamado a pagar o que absolutamente não devia. Era terceiro! Sem falar, no plano do direito do consumidor, no plantador de cana-de-açúcar responsabilizado pela presença de uma barata na garrafa de aguardente feita com o seu insumo. Foi por essas razões que, no mesmo texto citado, defendemos a reconsideração da personalidade jurídica, de forma que sua superação viesse a se colocar dentro dos devidos parâmetros históricos e doutrinários.
Nesse cenário, eis que, senão quando, veio o Código Civil de 2002, com o art. 50 que introduziu a desconsideração da personalidade jurídica como regra a ser aplicada pelo magistrado. Abaixo reproduzimos em colunas paralelas a redação original e a nova, trazida pela lei 13.874/19, para efeito de comparação. Antes disso observamos que era desnecessário tornar esse instituto uma figura positivada, dado que o direito desde muito tempo sempre atacou a fraude, claramente presente no uso indevido e abusivo da personalidade.
Versão original |
Versão resultante da lei 13.874/19 |
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica. |
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso. § 1º Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza. § 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por: I - Cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa; II - Transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e III - Outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial. § 3º O disposto no caput e nos §§ 1º e 2º deste artigo também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica. § 4º A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica. § 5º Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica. |
Em relação ao caput do art. 50 não há novidade significativa entre a redação antiga e a nova.
Mas deve ser observado que, ao se levantar o véu da personalidade jurídica, o resultado buscado era o de fazer cair a imputação da responsabilidade sobre os bens dos sócios que haviam usado a sociedade para atrás dela se esconder dos credores2. A doutrina em questão, ora positivada, não se aplicava aos administradores da sociedade cuja personalidade era desconsiderada. Isso se explica pelo simples fato de que o efeito da superação da personalidade jurídica nunca foi tido como permanente e generalizado, mas temporário (num átimo, diriam alguns otimistas), ficando ela mantida para todos os demais efeitos legais, especialmente o da separação patrimonial entre sócio(s) e sociedade.
Significa dizer (sem ter em conta aqui a natureza fiduciária dos deveres dos administradores, própria do ordenamento jurídico anglo-norte-americano) que o perfil jurídico da sociedade não muda e que, portanto, os administradores continuam operando como órgãos da sociedade e sua responsabilidade se dá, via de regra, apenas internamente como consequência de haverem abusado dos seus poderes. Dessa forma, desconsiderada a personalidade jurídica, o seu patrimônio deveria ficar intacto. Portanto, aqui o legislador inovou, tendo para tanto adotado má doutrina e má jurisprudência.
Voltando ao texto do art. 50, as novidades ficaram explicitadas nos seus parágrafos, percebendo-se o intuito, não expressamente declarado, de se colocar um limite à utilização do instituto em tela pelo julgador. Novo tipo de lei, de natureza didática...
Há problemas diversos conforme veremos em seguida.
Pelo parágrafo 1º deve-se obrigatoriamente ter em conta uma interpretação teleológica, consistente em que o desvio de finalidade foi construído sobre dois alicerces finalísticos cumulativos de natureza dolosa: (I) lesar credores; e (II) praticar atos ilícitos. Somente assim o tipo se mostra completo. Significa dizer que um desvio de finalidade culposo fica fora da sua caracterização, como se a falta de diligência fosse sempre perdoável.
Acrescenta o § 5º que não é desvio de finalidade o crescimento da empresa ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica. Só faltava essa, um ataque direto ao fim da própria empresa (condenada a viver dentro desse pensamento a uma situação de marasmo econômico) e à liberdade de iniciativa, que costumava ser constitucionalmente protegida (art. 170 da Constituição). Acho que o nosso amigo Conselheiro Acácio ficou irritadíssimo com essa concorrência inusitada.
No tocante à ausência de separação patrimonial entre o patrimônio da sociedade e o dos sócios a lista do parágrafo 2º é exemplificativa, devendo se ter em conta uma realidade em tal sentido que se veja comprovada.
O parágrafo 3º apresenta uma inteligência hermética. Afinal de contas, o que é a extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica? Em primeiro lugar, as obrigações dos sócios diante da sociedade do ponto de vista patrimonial consistem no dever de integralização do capital e de não elegerem administradores ineptos, por exemplo. Quanto aos administradores constam do CC/02 (sociedade limitada) e da lei 6.404/76) deveres como os de diligência, lealdade e busca de informação, que são de natureza interna. Assim sendo, o que tem a ver a desconsideração da personalidade jurídica com essas questões? Parece-nos que nada.
Por sua vez o § 4º explica (?) que a mera existência de grupo econômico, ausente o abuso da personalidade jurídica não autoriza a operação de desconsideração da personalidade jurídica de sorte a alcançar outras sociedades do grupo. Esse foi um recado direto ao Judiciário, especialmente nos campos do direito do consumidor e trabalhista, para que não levam a coisa de forma tão leviana, conforme já aconteceu inúmeras vezes.
3. A natureza jurídica da desconsideração da personalidade jurídica, faculdade ou dever?
Suponhamos que um magistrado se veja diante de uma situação consumada e devidamente provada de abuso de personalidade, com a configuração de desvio de finalidade e/ou de confusão patrimonial e que um pedido de desconsideração tenha sido feito pelo credor. Nessas circunstâncias, tem o juiz a faculdade de não o aceitar?
Parece-nos que não porque, negando a desconsideração, o magistrado poderia estar aceitando uma fraude que, como vimos acima, é o meio pelo qual o devedor foge ilicitamente de pagar o credor, ao se esconder por trás do escudo da personalidade jurídica. Agindo assim estaria sendo dada guarida a um ilícito e se negando o direito à Justiça.
4. A desconsideração da personalidade jurídica no plano da arbitragem
Boa parte dos arbitralistas (talvez a grande maioria) alega que o árbitro não pode se valer desse instituto porque estaria limitado nos seus efeitos pela cláusula compromissória, da qual o terceiro atingido pelos seus efeitos não teria feito parte. Vamos lá.
Em primeiro lugar, considerando-se que o árbitro é juiz de fato e de direito quando assim investido (Lei de Arbitragem, art. 18), da mesma forma que o juiz togado é obrigado a aplicar a regra da desconsideração da personalidade jurídica - presentes os seus pressupostos - estaria o primeiro também obrigado a tomar essa medida no processo arbitral.
Repetindo o que foi dito antes, tal instituto opera no campo da fraude e, neste caso, os seus efeitos se dão segundo alguns dispositivos fundamentais do CC/02.
De plano, são anuláveis os negócios jurídicos quando o dolo for a sua causa, nos termos do art. 145. Por sua vez, o art. 166 estabelece casos de nulidade do ato jurídico, destacando-se o negócio ilícito; a fraude em relação a lei imperativa como objeto; e o negócio simulado. Diz ainda o art. 171, inciso II, que também é anulável o negócio jurídico, entre outros casos, por dolo, lesão ou fraude contra credores. Ou seja, as mesmas situações presentes, no fundo, no art. 50 do CC/02.
Não se pode perder de vista, na forma do art. 168, parágrafo único, que tais nulidades devem ser pronunciadas pelo juiz, quando conhecer do negócio jurídico ou dos seus efeitos e as encontrar provadas, não lhe sendo permitido supri-las. Portanto, dentro de tal cenário o juiz se encontra no campo de uma obrigação e não de uma faculdade.
Ora, se tais negócios devem ser anulados, decorre que os seus efeitos retroagem ao estado anterior, sendo esse precisamente um dos resultados da desconsideração da personalidade jurídica quando sua causa tiver sido a confusão patrimonial, que é uma das suas marcas.
5. A nulidade, a cláusula compromissória e a desconsideração da personalidade jurídica. O moral hazard
Essa nulidade, obrigatoriamente a ser reconhecida pelo árbitro, conforme visto acima, muitas vezes alcançará o patrimônio de terceiros, que não foram parte da cláusula compromissória e esse efeito não pode afastado, sob pena do esvaziamento dos dispositivos do Código Civil acima apontados, aqui presentes como os fios principais que ligam a teia ao tronco da árvore jurídica ao qual estão presos. Caso contrário, a teia desmorona.
A cláusula compromissória não pode ser tomada como um habeas corpus, favor do agente doloso e do terceiro, mesmo que este não tenha sido parte na conduta dolosa. Há, portanto, um dever do árbitro de determinar essa medida.
Por último, um aspecto que pensamos não ter sido considerado pelos arbitralistas, a abertura de uma porta escancarada ao moral hazard, resultante de um prévio dolo arbitral por uma das partes. Vamos a um exemplo.
Uma das partes, diante da perspectiva da celebração de um contrato de execução continuada, pode imaginar que, em dado momento e com o fim de proteger o seu patrimônio, terá como opção desviar bens da empresa em favor de terceiro. Assim sendo, tendo em conta que esse contratante sabe que a desconsideração da personalidade jurídica não será usada em arbitragem eventual, é claro que ele preferirá essa via Judiciário, incentivando-se assim o moral hazard. Dessa forma, usando uma expressão muito comum no meio arbitral, a arbitragem certamente será o meio adequado para ser dolosamente escolhido pela futura parte inadimplente. Não será adequado ao credor, frustrado quanto ao recebimento do seu crédito, que ficará submetido ao véu da personalidade jurídica. Como já dizem sabiamente os italianos há muito tempo, fatta la lege, trovato l’ingano, dito que aqui é aproveitado como desconsiderada a desconsideração da personalidade jurídica, vamos considerar a arbitragem.
Ora, viva!
1 V. em relação àquele autor o item 281 do seu Curso de Direito Comercial, pp. 283 a 285 (21ª ed., Saraiva, São Paulo, 1983). Vide também o item 1.8.3 do Vol. 2 do nosso Curso de Direito Comercial (Ed. RT, 3ª ed. revista, atualizada e ampliada, 2014, p. 87 e segs).
2 Cf. Rubens Requião, ob. cit., p. 283).
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*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Professor Sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP.
*Rachel Sztajn é advogada em São Paulo. Professora sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP.