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Audiências unas e de instrução telepresenciais/virtuais no Processo do Trabalho: Uma inovação em tempos de pandemia

O Processo do Trabalho, marcado desde a gênese da Justiça do Trabalho pelo Princípio da Oralidade, encontra na prova oral o eixo central, verdadeira pedra angular que norteará o julgamento da lide pelo magistrado. Seria possível que a produção de prova oral se desse em audiência não presencial?

28/9/2020

Em 2020, o mundo foi surpreendido com a pandemia de covid-19, doença causada pelo novo coronavírus. No Brasil, a eclosão, ocorrida no final de março, trouxe consigo a necessidade de isolamento social, impondo aos sistemas econômico, político e jurídico severas adaptações. O Direito, enquanto instrumento de regulação social, também teve de se adaptar à nova realidade, e seu papel enquanto Ciência reguladora das relações interpessoais passou a ser ainda mais importante.

No âmbito do Poder Judiciário Trabalhista, a pandemia trouxe reflexos significativos. Em março, quando o Brasil ainda não tinha a exata dimensão do alcance do vírus, alguns Tribunais Regionais do Trabalho suspenderam os prazos processuais e os atos presenciais (como a realização de audiências), além de regulamentar o expediente forense telepresencial para magistrados, servidores, estagiários e colaboradores das unidades judiciárias. Como exemplo, cita-se o TRT da 2ª região (SP), que editou, em 16 de março, ato normativo com essa finalidade1.

O Conselho Nacional de Justiça, órgão cuja função precípua é o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, sem prejuízo de outras atribuições que lhe forem conferidas pelo Estatuto da Magistratura2, editou Resolução em 19 de março3, na qual regulamentou, dentre outras questões, a suspensão dos prazos processuais, estipulada, inicialmente, até 30 de abril, sem prejuízo de eventuais novas prorrogações, caso constatada a permanência do cenário que ensejou a sua edição.

Não obstante a disciplina do CNJ, os Tribunais Regionais do Trabalho seguiram estabelecendo, no âmbito de seu poder normativo, regras específicas a vigerem nos processos sujeitos a sua jurisdição, relativas à instituição de medidas de prevenção ao novo Coronavírus. Como exemplo, citam-se os Tribunais da 1ª região (RJ)4, da 3ª região (MG)5, da 4ª região(RS)6, dentre outros. Em um primeiro momento, os Tribunais Trabalhistas centraram-se em suspender os prazos processuais e normatizar o trabalho telepresencial de magistrados, servidores e colaboradores das unidades judiciárias.

Diante desse cenário de flagrante prejuízo aos atos processuais presenciais, instaurou-se no país o debate acerca da colheita de prova oral em audiências telepresenciais/virtuais. O Processo do Trabalho, marcado desde a gênese da Justiça do Trabalho pelo Princípio da Oralidade7, encontra na prova oral o eixo central, verdadeira pedra angular que norteará o julgamento da lide pelo magistrado. Seria possível que a produção de prova oral se desse em audiência não presencial?

A Constituição Federal de 1988 consagrou uma das garantias mais caras aos cidadãos e jurisdicionados: o Princípio da Razoável Duração do Processo8. Tal vetor foi inserto no texto constitucional pela emenda constitucional 45/04, conhecida como a “Reforma do Poder Judiciário”, que promoveu modificações no sistema processual, de modo a tornar mais ágil e célere a prestação jurisdicional. De outro lado, o Contraditório e a Ampla Defesa, formadores do Macroprincípio do Devido Processo Legal9, constituem umas das maiores garantias dos cidadãos no Estado Democrático de Direito inaugurado com a Constituição Cidadã de 1988.

Por sua vez, o Código de Processo Civil – cuja aplicação ao Processo do Trabalho é subsidiária por disposição legal expressa10 -, estabelece um conjunto de normas relativas à produção de prova oral, de modo a garantir que tal prova seja segura juridicamente, válida, desembaraçada e, por consequência, legítima. Como exemplo, cita-se o artigo 385, § 2º (que proíbe o litigante que ainda não depôs de ouvir o interrogatório da outra parte); o artigo 449 (que determina que a oitiva das testemunhas se dê na sede do juízo ou tribunal); o artigo 453, § 2º (que obriga os órgãos jurisdicionais a manterem equipamento de transmissão e recepção de sons e imagens para a oitiva de testemunha por videoconferência), o artigo 456 (que veda uma testemunha de ouvir o depoimento das demais), dentre outros.

Sendo assim, se, de um lado, as partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa11, de outro, devem ter assegurado o direito à ampla produção de prova, com todos os meios e recursos a ela inerentes. A questão, portanto, cinge-se a saber se a realização de audiência una ou de instrução telepresencial/virtual, no Processo do Trabalho, seria capaz de assegurar o respeito aos princípios constitucionais do Contraditório e da Ampla Defesa, bem como às disposições normativas infraconstitucionais relativas à segurança jurídica da prova colhida.

Vale lembrar que muitas partes e testemunhas não possuem acesso à estrutura necessária para a participação de audiência virtual/telepresencial, seja no que diz respeito aos equipamentos necessários (celular ou computador), seja no que tange ao pacote de dados de internet suficiente para a conexão com o Órgão Jurisdicional. Mesmo o preposto da reclamada – que, em tese, utiliza equipamentos e internet custeados pela empresa – pode sofrer problemas de conexão e, com isso, ter seu depoimento interrompido. Seria possível a aplicação de penalidades pelo Magistrado à parte ou à testemunha que não comparecer por problemas técnicos?

O CNJ editou a resolução 314, na qual estabeleceu regras para a realização de audiências destinadas à colheita de prova oral no Processo do Trabalho. Nos artigos 3º e 6º da referida resolução, o Conselho Nacional de Justiça estabeleceu, expressamente, que os atos processuais que, eventualmente, não puderem ser praticados pelo meio eletrônico ou virtual por absoluta impossibilidade técnica ou prática justificada pela parte deverão ser adiados e certificados, e que não poderá o Magistrado ignorar as dificuldades técnicas quando da realização de audiências virtuais, sendo vedada, inclusive, a atribuição de responsabilidade a advogados/procuradores pelo comparecimento de partes e testemunhas a qualquer localidade fora de prédios oficiais do Poder Judiciário, para participação em atos telepresenciais/virtuais.

Mesmo com a disciplina do CNJ em plena vigência, muitos Juízos mantiveram processos em pautas telepresenciais/virtuais, ainda que as partes informassem impossibilidade técnica ou discordassem de sua realização por outros motivos. Em razão de decisões de juízos trabalhistas rejeitando impugnações das partes quanto à realização de audiências unas ou de instrução telepresenciais/virtuais, foram apresentados ao CNJ alguns Pedidos de Providências e Procedimentos de Controle Administrativo12, que culminaram em decisões importantes do órgão de controle do Poder Judiciário.

Em decisão proferida em 10 de junho de 2020, no procedimento de controle administrativo 0003753-91.2020.2.00.0000, o Conselho Nacional de Justiça decidiu: suspender a realização de audiências por videoconferências quando houver nos autos manifestação em sentido contrário de qualquer das partes ou de ambas, independentemente de juízo de valor quanto à fundamentação apresentada; determinar que o Juízo da 16ª Vara do Trabalho de Salvador/BA se abstivesse de aplicar qualquer penalidade processual às partes que não comparecerem às assentadas virtuais ou nelas tiverem o acesso interrompido, por questões técnicas, e proibir aquele Juízo de imputar às partes a responsabilidade pela apresentação de testemunhas.

Já em outra decisão, também recente, proferida no Pedido de Providências 0004046-61.2020.2.00.0000, o Conselho Nacional de Justiça determinou que o Tribunal Regional do Trabalho da 15ª região (TRT15) adequasse regras do funcionamento das audiências de instrução telepresenciais aplicadas durante a pandemia de covid-19. Tais audiências, em que se produzem provas, não podem ser impostas, sob risco de haver prejuízos à advocacia e ao cidadão, assim decidiu o CNJ.

Há quem sustente que não há como se garantir que o sistema, por mais seguro que seja, de fato em nenhum momento possa vir a falhar e, com isso, as partes ou suas testemunhas virem a escutar o depoimento dos demais. Da mesma forma, entendem alguns litigantes que não há como ter garantia de que partes e testemunhas não estarão no mesmo ambiente, visto que somente em ambiente presencial, na sala de audiências, poderia se ter certeza de que uma parte/testemunha não ouviu o depoimento da outra, sendo que, caso uma testemunha tenha ficado na sala, não será de forma alguma ouvida.

Ainda, há quem sustente que, em Audiências de Instrução realizadas na Justiça do Trabalho, há a necessidade de registro em ata do que é dito pelos depoentes, sendo necessária a observação pelo juízo do tom de voz, forma de se expressar, olhar, linguagem corporal, a fim de se detectar a veracidade do que está ali sendo informado, e que somente o juiz que preside a sessão (Princípio da Identidade Física do Juiz) é quem pode extrair tais informações de forma pessoal. Tais sinais não seriam passíveis de captação por vídeo, tampouco se conseguiria impedir, em audiência telepresencial/virtual, troca de olhares ou demais ações fraudulentas da legitimidade da prova. Por isso, muitos litigantes discordam da produção de prova oral de forma telepresencial/virtual.

O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas (ABRAT) enviaram ao Colendo Tribunal Superior do Trabalho o Ofício 315/20, no qual foram apresentadas algumas questões ainda não elididas a respeito da realização das audiências virtuais, como por exemplo: o artigo 387 do CPC dispõe que as partes não podem servir-se de escritos anteriormente preparados. Como saber se por trás do computador ou celular não há um texto sendo lido pelo depoente? Como garantir não estar o depoente com outro aparelho eletrônico recebendo informações sobre a audiência? O que impede o depoente de estar lendo peças do processo, e reproduzindo seu conteúdo? Se for caso de acareação de testemunhas, nos termos do artigo 418, II do CPC, como será feito em audiências realizada virtualmente?

Outra crítica feita à realização de audiência telepresencial/virtual para a produção de prova oral seriam os problemas técnicos que podem ocorrer em tais solenidades. Isso porque, em razão da dificuldade de locomoção existente em função do isolamento social e quarentena exigidos para o combate à pandemia, grande parte da população está praticamente todo o tempo em suas residências, utilizando a internet quase em 100% do seu tempo, o que acabou por sobrecarregar o sistema das operadoras, inclusive quando se trata de transmissão de imagens.

As audiências trabalhistas costumam demorar bastante, sendo que, de fato, não há como se garantir que durante um período tão longo nenhuma das partes teria problemas com conexão. Ou seja, não haveria como garantir que as partes, suas testemunhas e advogados teriam condições técnicas para a regular e satisfatória realização da audiência, o que poderia vir a acarretar insegurança jurídica para a produção da prova, assim como cerceio de defesa, infringindo o disposto nos incisos XXXVI e LV do art. 5º da CF.

Em razão da discordância com a produção de prova oral em audiências telepresenciais/virtuais pelos fundamentos anteriormente expostos, e diante da recusa do Juízo em cancelar a solenidade, diversos litigantes em Processos Trabalhistas (reclamantes e reclamadas), impetraram Mandados de Segurança contra decisões judiciais que designaram e mantiveram os processos em pauta neste formato. O fundamento seria, em síntese, a violação a princípios constitucionais como Contraditório, Ampla Defesa e Acesso à Justiça, bem como desrespeito a dispositivos infraconstitucionais relativos à validade/segurança jurídica da prova.

Há decisões de alguns Tribunais, como o TRT da 2ª região, que concederam medida liminar para o fim de determinar o cancelamento da solenidade13, por risco de violação a princípios constitucionais, como o Contraditório e a Ampla Defesa; de outro lado, há decisões de Tribunais, como o TRT da 4ª região, que indeferiram a petição inicial de Mandamus, por entender cabível recurso próprio (qual seja, Recurso Ordinário, ao final da fase de conhecimento – exegese da Orientação Jurisprudencial 92, da SDI-2 do TST, cumulada com artigo 893, § 1º, da CLT)14; por fim, ainda há decisões que, embora considerando cabível a ação mandamental, indeferiram a medida liminar postulada, por não entender existente ilegalidade ou abuso de poder na ação do Magistrado15.

O tema é demasiado controvertido e sobre ele não há um consenso doutrinário ou jurisprudencial, mas a verdade é que, sendo possível a preservação dos princípios constitucionais do Contraditório, da Ampla Defesa e do Acesso à Justiça (previstos, respectivamente, no artigo 5º, LIV, LV e XXXV, da CF de 1988), a realização de audiência telepresencial/virtual para a produção de prova oral em processos trabalhistas, além de garantir a observância ao Princípio da Razoável Duração do Processo, viabilizará a continuidade da prestação jurisdicional aos jurisdicionados e, com isso, a preservação da esfera jurídica das partes no Processo do Trabalho. Talvez, tal inovação seja incorporada, em definitivo, ao Processo do Trabalho no futuro, mesmo após a superação da pandemia de covid-19 que assola o Brasil.

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1 Resolução Corpo Diretivo 01/20, de 16 de março de 2020.

2 Artigo 103-B, § 4º, da CF de 1988.

3 Resolução nº 313, de 19 de março de 2020.

4 Ato Conjunto 03/20, de 24 de março de 2020.

5 Portaria GP 117/20, de 20 de março de 2020.

6 Portaria Conjunta 1.268/20, de 20 de março de 2020.

7 Derivam do Princípio da Oralidade diversos subprincípios, como o Princípio da Identidade Física do Juiz (o juiz que conclui a instrução é o juiz que julga a causa), o Princípio da Prevalência da Palavra Oral (subprincípio consagrado em diversos dispositivos da legislação consolidada, tais como os arts. 795, 840, 847 e 850, da CLT, os quais consagram, respectivamente, a necessidade de ser arguida a nulidade na primeira oportunidade em que a parte puder falar nos autos, a possibilidade de Reclamatória Trabalhista verbal, defesa e razões finais de forma oral, em audiência), o Princípio da Imediatidade (juiz participando da produção da prova) e o Princípio da Irrecorribilidade Imediata das Decisões Interlocutórias (as insurgências das partes quanto às questões resolvidas no curso do processo serão levadas à instância superior somente em recurso definitivo – art. 893, § 1º, da CLT).

8 Artigo 5º, LXXVIII, da CF de 1988, com redação dada pela Emenda Constitucional nº 45/2004: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.

9 Artigo 5º, LIV e LV, da CF de 1988.

10 Artigos 8º, § 1º, e 769, ambos da CLT.

11 Artigo 4º do NCPC.

12 Segundo o sítio do CNJ (Clique aqui - acesso em 13/9/20, 20:58 horas), Pedido de Providências (PP) é a ação destinada a apresentar propostas e sugestões tendentes à melhoria da eficiência e eficácia do Judiciário, bem como todo e qualquer expediente que não tenha classificação específica, ao passo que Procedimento de Controle Administrativo (PCA) é a ação utilizada para controle dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Judiciário, praticados há menos de cinco anos, salvo quando houver afronta direta à Constituição.

13 Como exemplo, cita-se a decisão da Eminente Desembargadora Relatora, proferida nos autos do Mandado de Segurança 1003699-05.2020.5.02.0000.

14 Como exemplo, cita-se a decisão do Eminente Desembargador Relator, proferida nos autos do Mandado de Segurança 0021791-91.2020.5.04.0000.

15 Como exemplo, cita-se a decisão do Eminente Desembargador Relator, proferida nos autos do Mandado de Segurança 0022132-20.2020.5.04.0000.

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*Mateus Gasparotto Crescente é advogado trabalhista do escritório Andrade Maia Advogados. Graduado em Direito pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul. Pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Estácio de Sá.

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