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O direito ao esquecimento

O direito ao esquecimento nada mais é que o direito que o indivíduo possui de não ser lembrado por algum acontecimento do passado, mesmo que este acontecimento tenha, efetivamente, ocorrido.

23/9/2020

No próximo dia 30 do corrente mês o STF irá julgar um tema de grande interesse social e político, o direito ao esquecimento, abordado no RE 1.010.606 com repercussão geral reconhecida e de eelatoria do ministro Dias Toffoli.

Trata-se de caso, no qual familiares da vítima de um crime praticado nos anos 1950, questionam a utilização da história em programa televisivo, pleiteando o direito ao esquecimento.

O direito ao esquecimento nada mais é que o direito que o indivíduo possui de não ser lembrado por algum acontecimento do passado, mesmo que este acontecimento tenha, efetivamente, ocorrido.

Ou seja é direito que a pessoa possui de não ser indefinidamente exposta a fatos pretéritos que podem causar prejuízos a sua imagem. Se um fato pretérito que tenha abalado a imagem de determinado indivíduo, seja por ele ter sido acusado de algo que não fez, ou que efetivamente tenha feito, mas já tenha cumprido todas as penalidades decorrentes disso, pela obsolescência do fato, não existem justificativas ou razões para que a divulgação destes fatos se perpetuem no tempo.

O direito ao esquecimento não é algo novo e nem surgiu no Brasil. Nos Estados Unidos da América é conhecido por "The Right to be let Alone" e é frequentemente arguido pelas partes que se sentem violadas por notícias do passado.

A noção surgiu no final do século XIX, quando os norte-americanos Samuel Dennis Warren e Louis Dembitz Brandeis publicaram artigo intitulado "Right to Privacy", que pode ser considerado o marco inicial ao direito à intimidade e à privacidade. Warren, foi juiz da Suprema Corte e um dos mais influentes juristas norte-americanos em questões de direito privado.

Neste artigo os autores sustentaram que todo o ser humano possui o "direito de ser deixado em paz", haja vista que naquele período, jornais sensacionalistas já exploravam de forma abusiva a intimidade de pessoas alvos do interesse público. 

Porém, no mesmo artigo os autores esclarecem que  há limitações ao "right to be let alone", quais sejam: esse direito não deveria impedir a publicação de matéria que fosse de interesse geral ou público; a proibição não recairia sobre os fatos que a própria lei permitisse a divulgação; a proteção não teria como incidir sobre a divulgação oral de fatos privados sem que houvesse dano específico; e, a proteção ao "right to privacy" cessaria se o próprio indivíduo fizesse divulgar e publicar os fatos de sua vida privada.

Na Alemanha, houve um caso emblemático em 1969, chamado de Caso Lebach, quando um ex-condenado pelo homicídio de militares alemães, após cumprir integralmente sua pena, teve conhecimento que uma emissora de Televisão iria publicar um documentário sobre o crime, expondo-o, mais uma vez ao público. Para evitar a divulgação, o ex-condenado ajuizou uma ação inibitória que chegou ao Tribunal Constitucional Alemão.

O que se discutia nessa demanda era se deveria prevalecer a liberdade de imprensa ou a proteção constitucional do direito de personalidade e privacidade. No julgamento foi decidido que a imprensa não pode explorar, por tempo indeterminado a vida privada de uma pessoa, mesmo sendo ela um criminoso. O documentário foi proibido de ser veiculado.

Em 1983, o Tribunal de última instância de Paris (Mme. Filipachi Cogedipresse) assegurou o direito ao esquecimento a um indivíduo nos seguintes termos: "qualquer pessoa que se tenha envolvido em acontecimentos públicos pode, com o passar do tempo, reivindicar o direito ao esquecimento; a lembrança destes acontecimentos e do papel que ela possa ter desempenhado é ilegítima se não for fundada nas necessidades da história ou se for de natureza a ferir sua sensibilidade; visto que o direito ao esquecimento, que se impõe a todos, inclusive aos jornalistas, deve igualmente beneficiar a todos, inclusive aos condenados que pagaram sua dívida para com a sociedade e tentam reinserir-se nela."

O direito ao esquecimento tem sido debatido em diversos países e tribunais, sendo que, conforme informação do boletim de Jurisprudência Internacional do STF, existem diversos entendimentos.

O Tribunal de Justiça da União Europeia, no processo Google Spain S.L, Google Inc. y Agencia Española de Protección de Datos (AEPD), Mario Costeja González (C-131/12), Julgado em 13-5-2014, chegou à seguinte conclusão:

"O processamento de dados realizado por operadores de mecanismos de busca pode afetar significativamente direitos fundamentais à privacidade e à proteção dos dados pessoais, sendo permitido que um indivíduo solicite aos operadores a remoção de links de pesquisa ligada ao seu nome".

Na Áustria, um cidadão Austríaco absolvido da acusação de possuir material pornográfico infantil, solicitou à Comissão de Proteção de Dados a exclusão de informações do processo criminal ao qual foi submetido, presente nos bancos de dados de uso da justiça criminal, acessados pela polícia, procuradoria e tribunais. O pedido foi negado com base em norma que permite a manutenção de registros específicos de causas judicias penais por até sessenta anos.

Decisão G 7/12-11 o É constitucional norma que permite a manutenção do registro de dados específicos de processo penal por até 60 anos. Julgado em 29-6-2012.

Na Bélgica, em novembro de 1994, um médico que dirigia sob os efeitos de bebida alcóolica causou sério acidente de trânsito, resultando na morte de duas pessoas. À época, o jornal Le Soir noticiou o ocorrido, mencionando o nome completo do motorista. Em 2006, foi concedida ordem judicial para retirar de seu registro criminal, a condenação por dirigir embriagado (décision de réhabilitation judiciaire). Após uma longa instrução processual Corte de Cassação da Bélgica manteve a determinação imposta ao jornal. A Corte recordou que o art. 10º da Convenção Europeia de Direitos do Homem (CEDH)8 e o art. 19 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP), que protegem a liberdade de expressão, conferem aos órgãos. Assim, para resguardar o direito ao esquecimento, a Corte manteve a decisão inferior que obrigou o veículo de imprensa responsável pela publicação original e pela conversão em arquivos digitais a retirar a identificação nominal do autor no arquivo digital.

Na Holanda, em decisão proferida em 6/1/1995, no processo 15.549, a Suprema Corte Holandesa entendeu que "o direito ao esquecimento (ou right to be left in peace) deve prevalecer sobre a liberdade de expressão e de imprensa quando não subsistir interesse público na informação e quando for necessário para proteção da honra, reputação e demais direitos da pessoa ofendida, nos termos do artigo 10.2 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem".

Em Israel, o famoso caso Hashavim H.P.S. Business Data v. Directorate of Courts, com o intuito de proteger a privacidade dos litigantes, o Tribunal Administrativo de Israel alterou suas normas e passou a exigir de empresas que gerenciam bancos de dados deixassem de indexar nos mecanismos de busca as decisões proferidas pelo Tribunal extraídas do banco de dados oficial.

As novas regras impediriam que as decisões do Tribunal, publicadas por Hashavim e outras empresas fossem acessadas por meio dos mecanismos de busca como Google e Bing. A empresa Hashavim H.P.S. Business Data, responsável por um banco de dados de decisões de tribunais e de outras instituições disponibilizado no site Takdin-Light, apresentou reclamação contra esse novo regramento, argumentando que os novos requisitos de desindexação impediriam o acesso público à informação e não seriam eficientes para proteger o direito à privacidade dos envolvidos.

A Suprema Corte de Israel assim decidiu: É inconstitucional resolução do Tribunal Administrativo que determinou a desindexação automática de informações disponibilizadas em bancos de dados comerciais, oriundas do banco de dados oficial desse órgão, por não ser eficiente na proteção do direito à privacidade e por configurar restrição desproporcional ao direito de acesso a decisões judiciais.

E na Itália, em julgamento ocorrido no ano de 2018, o Sr. Antonelli Venditti, famoso cantor e compositor italiano, processou a emissora RAI por ter retransmitido um vídeo desabonador ao artista no programa de TV La Vita in Direta, que classificava as celebridades mais detestáveis do mundo artístico. Na gravação, feita em dezembro de 2000, repórteres surpreenderam o Sr. Venditti do lado de fora de um restaurante para entrevistá-lo e o artista peremptoriamente se negou a responder perguntas. A cena foi reexibida pelo canal RAI cinco anos após o ocorrido com comentários que, ironicamente, questionavam as razões para a rispidez do cantor. O requerente afirmou que a reapresentação ao público desse momento lhe causou danos pelo uso ilegal de sua imagem, violou seu direito a ser esquecido e feriu sua privacidade e honra, ante a natureza difamatória dos comentários incluídos no vídeo.

A Corte Suprema de Cassação da Itália deu provimento ao recurso do requerente, entendendo que os indivíduos, inclusive as celebridades, têm direito de impedir a transmissão de vídeos em que sua imagem é exibida, mas que não são relevantes para o debate público, tampouco justificados por razões de justiça, segurança pública, proteção de direitos ou liberdades de terceiros ou por interesse científico, cultural ou educacional.

Dessa feita, ficou asseverado na jurisprudência internacional que a proteção constitucional da personalidade não admite que a imprensa explore, por tempo ilimitado, a pessoa do suposto criminoso e sua vida privada.

Firmou-se o entendimento de que o princípio da proteção da personalidade deveria prevalecer, nesse caso, em relação à liberdade de informação e à liberdade de imprensa.

No Brasil, o direito ao esquecimento possui proteção constitucional e legal, considerando-se que é uma consequência do direito à vida privada, intimidade e honra, assegurados tanto pelo artigo 1º de nossa Constituição Federal que trata sobre a Dignidade da Pessoa Humana, bem como pelo art. 5º, inciso X que protege a  privacidade.

O STF, em 20/2/2015, no julgamento do ARE 833248, no qual se pleiteou indenização por danos morais em virtude do uso não autorizado da imagem da falecida irmã dos autores do processo – conhecido como o "Caso Ainda Curi - no programa de televisão denominado "Linha Direta Justiça".

Em sede de recurso extraordinário, os recorrentes defenderam que a discussão relativa ao direito a proteger sua dignidade humana, atingida pelo exercício considerado abusivo e ilegal da liberdade da expressão frente aos órgãos de mídia e de imprensa, constitui matéria de repercussão geral.

No mérito, sustentaram que o direito ao esquecimento é um atributo indissociável da garantia da dignidade humana, com ela se confundindo. Aduziram que a liberdade de expressão não tem caráter absoluto, não podendo se sobrepor às garantias individuais, notadamente à inviolabilidade da personalidade, da honra, da dignidade, da vida privada e da intimidade. Assim, defenderam que o programa sobre o lamentável fato não teve cunho jornalístico e se deu de forma sensacionalista, com objetivo meramente comercial, tendo o revolvimento dessa tragédia implicado danos morais à família da vítima, mesmo após longo período de tempo.

O STF, por maioria, reconheceu a existência de repercussão geral da questão constitucional suscitada, chegando a seguinte conclusão: O debate acerca da harmonização dos princípios constitucionais da liberdade de expressão e do direito à informação com aqueles que protegem a dignidade da pessoa humana e a inviolabilidade da honra e da intimidade é de natureza constitucional e possui repercussão geral.

O STF asseverou que as matérias abordadas no recurso extraordinário, além de apresentarem nítida densidade constitucional, extrapolam os interesses subjetivos das partes, uma vez que abordam tema relativo à harmonização de importantes princípios dotados de status constitucional: de um lado, a liberdade de expressão e o direito à informação; de outro, a dignidade da pessoa humana e vários de seus corolários, como a inviolabilidade da imagem, da intimidade e da vida privada.

Assim, a Corte entendeu que a definição das questões postas no feito repercutirá em toda a sociedade, revelando-se de inegável relevância jurídica e social.

Ainda, o min. Luis Felipe Salomão, do STJ, no julgamento do REsp 1.335.153-RJ, apesar de ser favorável ao direito ao esquecimento, colacionou diversos argumentos contrários.

Disse o Nobre Ministro que o acolhimento do chamado direito ao esquecimento constituiria um atentado à liberdade de expressão e de imprensa; que  o direito de fazer desaparecer as informações que retratam uma pessoa significa perda da própria história, o que vale dizer que o direito ao esquecimento afronta o direito à memória de toda a sociedade; que  o direito ao esquecimento teria o condão de fazer desaparecer registros sobre crimes e criminosos perversos, que entraram para a história social, policial e judiciária, informações de inegável interesse público; que  é absurdo imaginar que uma informação que é lícita se torne ilícita pelo simples fato de que já passou muito tempo desde a sua ocorrência, e, finalmente, que  quando alguém se insere em um fato de interesse coletivo, mitiga-se a proteção à intimidade e privacidade em benefício do interesse público.

Veja-se portanto, que embora haja diversos entendimentos pelo mundo sobre o Direito ao Esquecimento, como muito bem considerou o ministro Salomão, há muito o que ser avaliado. E isso é o que o STF pretende fazer nos próximos dias.

A privacidade, o direito de não ser lembrado, o direito de ser esquecido, a censura, a liberdade de expressão, todos estes pontos serão debatidos neste aguardado julgamento.

Na opinião deste autor a privacidade é a riqueza do futuro.

Hoje estamos constantemente expostos às mídias sócias e aos meios televisivos. Se escrevemos algo no WhatsApp, aquele texto pode ser encaminhado a milhões de pessoas e se tornar público, independente da nossa vontade. Quando postamos algo em uma rede social, por mais que ela seja direcionada aos nossos "amigos" ou "seguidores" poderá alcançar divulgação geral, bastando pata tanto que seja encaminhada ou republicada.

Ou seja, não temos mais nenhum controle sobre onde possam parar as informações que disponibilizamos, ainda que voluntariamente.

Se a mensagem tiver conteúdo bom e verdadeiro, talvez tudo bem. Mas quando se tratam de algo desabonatório, calunioso ou fake news? Essas informações poderão ficar para sempre acessíveis a todos?

É justo que uma pessoa seja eternamente condenada pela mídia por algo que ela fez no passado e já cumpriu sua pena? 

É justo que uma mentira contada 100 vezes se torne real?

É justo que fatos do passado sejam eternamente lembrados, mesmo que não haja qualquer interesse público?

Na minha opinião a resposta para todos estes questionamentos é um vigoroso não, mas neste caso estaremos entrando em caloroso debate entre privacidade e liberdade de expressão, o que não é o objeto deste artigo.

Quando digo que a privacidade é a riqueza do futuro, penso que na atualidade as pessoas estão tão expostas que talvez esse excesso de exposição passe a desvalorizá-las.

Talvez em breve não tenhamos mais espaço para pessoas que passem postando fotos do que almoçaram, de quanto correram naquela tarde, do pneu do carro que furou, do cachorro que está doente, do penteado novo e de  coisas assim.

Será que tamanha exposição valoriza ou desvaloriza a pessoa? Hoje as pessoas podem ser valorizadas pelos números de seguidores, amigos ou likes que recebem, mas no futuro os valores serão os mesmos?

Será que grandes corporações vão querer em sua liderança pessoas tão expostas? Quem sabe aquelas pessoas que se expõem menos ou que não se exponham passem a ser mais valorizadas?

Será que quem não quer participar dessa exposição generalizada precisa mesmo participar? Será que todos precisam mesmo ter seu nome vinculado a centenas de links disponibilizados nos sites de pesquisa?

E quem não quer essa exposição? E quem guarda feridas que não quer que sejam expostas?

O direito ao esquecimento nos permite isso. Nos permite não sermos lembrados quando não quisermos e nem sermos expostos quando entendermos que não devemos.

Para aqueles para quem a exposição faz parte de sua vida (o que é extremamente normal nos dias de hoje), talvez o direito ao esquecimento possa ser visto como algo ruim ou até mesmo uma forma de censura jornalística, mas para aqueles que são as vítimas, que são o alvo das notícias (fake news, impróprias ou do passado) o direito ao esquecimento passa a ser uma possível  forma de se obter justiça ou o encerramento de uma mácula antiga.

O ministro do STF, Gilmar Ferreira Mendes em seu Curso de Direito Constitucional. 1ª ed., São Paulo: Saraiva, 2007, p. 374, assim manifestou-se sobre o direito ao esquecimento: "Se a pessoa deixou de atrair notoriedade, desaparecendo o interesse público em torno dela, merece ser deixada de lado, como desejar. Isso é tanto mais verdade com relação, por exemplo, a quem já cumpriu pena criminal e que precisa reajustar-se à sociedade. Ele há de ter o direito a não ver repassados ao público os fatos que o levaram à penitenciária."

Assim, com as palavras do ministro Gilmar Mendes encerra-se este artigo, almejando que no próximo dia 30 de setembro o STF possa, enfim, chegar a uma conclusão sobre o direito ao esquecimento que, certamente, poderá impactar a vida de muita gente.

___________

*Mauro Eduardo Vichnevetsky Aspis é advogado, especialista em Direito Eletrônico, sócio dos escritórios Aspis e Palmeiro da Fontoura Advogados (RS) e Ellen Gracie Advogados Associados (RJ).

 

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