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Uma análise da proporcionalidade no caso envolvendo aborto praticado pela gestante menor vítima de estupro

Este artigo aborda o aspecto dos direitos fundamentais, com ênfase na recente situação envolvendo o aborto cuja gravidez foi decorrente de estupro de menor pelo seu próprio tio.

17/9/2020

1 Introdução

Recentemente nos deparamos com o triste episódio onde uma criança de 10 anos, após reiteradas práticas de abuso sexual, que implicariam, juridicamente em ato de estupro, veio a engravidar. O suposto crime teria ocorrido em São Mateus, no Norte do Espírito Santo, sendo o principal suspeito do crime, o tio da vítima, que foi preso após confessar informalmente o ato de abuso. De acordo com a Polícia Militar, a menina contou que o abuso teria se perpetrado de forma permanente, desde os seus seis anos de idade e que não denunciou anteriormente por medo das ameaças. A gravidez, de aproximadamente três meses, foi confirmada por um exame de sangue1 Segundo previsto no Código Penal Brasileiro de 1940, o aborto é permitido em três situações específicas. É o teor do artigo 128 do Estatuto Penal:

Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico:

II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

O direito pátrio admite o aborto numa terceira hipótese, qual seja, se houver anencefalia fetal, ou seja, em razão de feto anencéfalo, diante das evidentes circunstâncias da inviabilidade da vida. Assim, no julgamento da ADPF 54, decidiu o Supremo Tribunal Federal2:

FETO ANENCÉFALO – INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ – MULHER – LIBERDADE SEXUAL E REPRODUTIVA – SAÚDE – DIGNIDADE – AUTODETERMINAÇÃO – DIREITOS FUNDAMENTAIS – CRIME – INEXISTÊNCIA. Mostra-se inconstitucional interpretação de a interrupção da gravidez de feto anencéfalo ser conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal.

Após decisão judicial que autorizou o aborto, a criança chegou a ser internada no Hospital Universitário Cassiano Antonio Moraes - Hucam, em Vitória, mas a equipe médica do Programa de Atendimento as Vítimas de Violência Sexual, se recusou a realizar o procedimento alegando que o feto já estava pesando mais do que o aceitável para se realizar o procedimento e então haveria riscos à saúde da mãe. A equipe médica também afirmou que eles não eram dotados de capacidade técnica para fazer o procedimento.3

Diante desta situação, a menina foi transportada para Recife, capital pernambucana, onde o procedimento de interrupção da gravidez foi realizado no Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros - Cisam.4

A partir da sua divulgação nas mídias e redes sociais, terceiros, totalmente alheios ao caso, manifestaram sua opinião sobre a situação, protestando pela ofensa à criança, afirmando que se tratava de pessoa homicida, que estaria matando o seu filho, desconsiderando qualquer nuance sob o olhar da vítima, ainda criança, que teria sofrido grave violência material e psicológica. 

2. Violação do domicílio

O Ministério Público do Espírito Santo apresentou uma ação civil pública contra Pedro Teodoro dos Santos, filiado ao PSL, que teria invadido a casa da menina de 10 anos e divulgado o nome da vítima nas redes sociais. Segundo a exordial, Pedro Teodoro dos Santos teve acesso ilegal aos dados da menina, presentes no processo que corre em segredo de justiça.

O acusado teria participado de uma manifestação em frente à casa da vítima, tendo, inclusive, invadido a residência sem que tivesse permissão para tanto. Uma vez dentro da casa, promoveu o que se pode chamar de “terror psicológico”’ sobre a responsável pela criança de 10 anos, no intuito de fazer com que ela mudasse a decisão quanto à interrupção da gravidez.

Nesse sentido, a violação de domicílio é ilegal (artigo 5º, XI, CF), salvo as exceções específicas que não se aplicam a este caso. Para os que violam a norma da inviolabilidade, as sanções estão definidas no Código Penal. Nesse diapasão entram em rota de colisão o direito à privacidade da gestante (vítima) e a liberdade de expressão daqueles que são contrários ao aborto nessas circunstâncias, como seria o caso do senhor Pedro Teodoro dos Santos.

 Entendemos que ocorreu violação à privacidade, passível inclusive de indenização por danos morais, nos termos da legislação civil. Assim, nesse caso, no sopesamento dos direitos em conflito, prevaleceria o direito à privacidade, decorrente da proteção ao domicílio.

3. Violação da intimidade e imagem

Ao ter os seus dados divulgados pela extremista Sara Fernanda Giromini, a criança teve o seu direito fundamental de preservação à integridade moral e a preservação de sua imagem, violados.5

Segundo previsto na CF, Artigo 5º Inciso X: são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

Nesse sentido, também dispõe o Artigo 17 da Lei 8.069/90, Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências:

O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais.

Entram em colisão os direitos de liberdade de manifestação do pensamento (artigo 5º, IV) e da liberdade de expressão (artigo 5º, IX) exercidos pela jornalista Sara Fernanda Giromini, em face ao direito a intimidade e privacidade da criança, mãe e vítima de abuso sexual reiterado, o que, diante das circunstancias do caso concreto.

Sopesando os valores envolvidos e no cotejo dos direitos, entendemos que a jornalista teria abusado do seu direito, invadindo a esfera da gestante, o que também merece reparos na ótica civil indenizatória, podendo ter reflexos até mesmo na seara criminal, se tipificadas as condutas.

4. Aborto humanitário

Essa discussão, que constitui o cerne do presente trabalho, está centrada na esfera da Constituição Federal, que consagra a inviolabilidade do direito à vida, nos seguintes termos

Art. 5º da CF: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.

O ordenamento jurídico brasileiro previu, em proteção à vida, o crime de aborto (artigos 124 a 128) no Código Penal, prevendo as hipóteses de aborto provocado pela gestante e também por terceiros, com ou sem o seu consentimento. Para além das formas punitivas, o Código Penal também dispõe sobre as situações nas quais não se pune o aborto praticado pelo médico, entre as quais sobreleva mencionar o denominado “aborto sentimental”.

Também conhecido também como aborto humanitário ou aborto ético, trata-se da permissão legal para interromper a gravidez quando a mulher foi vítima de estupro, o que se discute no presente artigo. Nesse sentido, o legislador optou em proteger a vida da mãe, que foi vítima de um crime hediondo, conforme o artigo 128, inciso II do Código Penal Brasileiro, que dispõe:

Se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante, ou quando incapaz, de seu representante legal.

O aborto também assume permissão quando se constata anencefalia fetal. Nesse caso, não há perspectiva de vida pelo feto, razão pela qual não teria sentido obrigar a gestante a conduzir uma gestação que somente lhe causaria dor e tristeza, em detrimento à sua dignidade (ADPF 54/DF).

No nosso ordenamento jurídico, em se tratando de colisão de direitos fundamentais, é comum que o Poder Judiciário se faça protagonista e exerça o seu papel realizando as devidas ponderações no caso concreto. No caso em questão temos o olhar centralizado no Poder Legislativo, uma vez que, o princípio da proporcionalidade foi antevisto pelo legislador, ao autorizar o aborto em caso de gravidez resultante de estupro.

No caso em questão temos a colisão de dois direitos fundamentais, o primeiro, o direito à dignidade sexual da gestante, criança de 10 anos que foi estuprada e optou por realizar um procedimento de aborto. O outro direito é a vida do nascituro. Quando se fala em aborto, inevitavelmente se discute o direito à vida, este assunto exige muita sensibilidade crítica, uma vez que ao se discutir o direito à vida do nascituro outros direitos colidem diretamente com este.

A violência sexual, em muitos casos silenciada, devasta infâncias, atentando ao direito de se viver uma vida livre de violências e outras violações de direitos fundamentais. Casos como este, geram consequências que impactam negativamente a vida destas crianças por muitos anos ou até mesmo durante toda a vida, impedindo o pleno desenvolvimento de seu potencial enquanto ser humano. E essa foi a “ratio essendi” da previsão normativa que autoriza o aborto humanitário ou sentimental.

4 Conclusão 

A preocupação com a efetividade dos Direitos Fundamentais é tema incansável ao estudo e do operador do Direito. Entretanto, muitas vezes, na sua aplicabilidade surge o problema da colisão dos Direitos e nos encontramos diante de um dilema a ser solucionado pelo aplicador e intérprete da norma.

Nos valemos do princípio da proporcionalidade para adequar e contornar, de maneira simples, as diversas nuances decorrentes do caso em análise. A nossa perspectiva é protetiva dos direitos da mãe, menor e vítima do crime, considerando a quantidade de abusos em seus direitos até o presente momento.

E que as reflexões trazidas sirvam como alento para mentes mais inquietas, principalmente oriundas dos cenários religiosos, em defesa da vida intrauterina, e que afirmam no sentido do cometimento de crime de aborto pela gestante. Embora os argumentos em favor da vida do feto sejam sedutores, não podemos deixar que a sedução supere a Constituição Federal e as Leis. Em última instância, o Estado Democrático de Direito.

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1 BREDOFW, Rosi, "Menina de 10 anos engravida depois de ser estuprada em São Mateus, no ES", G1, 08/08/2020, clique aquiacesso em 14/09/2020.

3 BREDOFW, Rosi, "Menina de 10 anos engravida depois de ser estuprada em São Mateus, no ES", G1, 08/08/2020, clique aqui

4 BREDOFW, Rosi, "Menina de 10 anos engravida depois de ser estuprada em São Mateus, no ES", G1, 08/08/2020, clique aqui

5 RESK, Felipe, "Para juristas Sara Giromini feriu ECA e Código Penal ao divulgar nome de criança estuprada", O Estado de S. Paulo, 17/08/2020, clique aqui

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ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Malheiros Editores. 2. ed. 2017.

ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 13.ed. São Paulo: Malheiros, 2012.

BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. 3º ed. Brasília jurídica: Brasília, 2003.

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 7.ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

BREDOFW, Rosi, "Menina de 10 anos engravida depois de ser estuprada em São Mateus, no ES", G1, 08/08/2020, clique aqui. 

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado.10ª edição, ampliada. São Paulo: Método, 2006.

MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da constituição. ed. Mandamentos: Belo Horizonte, 2004.

MORAIS, Lorena Ribeiro de. Senatus: Cadernos da Secretaria de Informação e Documentação. v. 6, n. 1, 2008.

RESK, Felipe, "Para juristas Sara Giromini feriu ECA e Código Penal ao divulgar nome de criança estuprada", O Estado de S. Paulo, 17/08/2020, clique aqui.

SILVA, Afonso Virgílio da. Colisões de direitos fundamentais entre ordem nacional e transnacional. São Paulo Quartier Latin, 2010.

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*César A. A. Babler é professor de Direito Constitucional da Unitá Faculdade em Campinas/SP.
 
*Thais de Matos Macedo Lio é aluna de Direito Constitucional (4º semestre) da Faculdade da Unitá Faculdade em Campinas/SP.

 

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