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Cadastro dos estupradores: Enfim a cultura do “cancelamento” chega ao Direito Penal

Deve-se, portanto, despir-se de preconceitos, de pré-julgamentos, e manter-se imparcial quando se propõe a analisar a matéria, para discuti-la dentro de um contexto democrático e de respeito às garantias constitucionais.

17/9/2020

Falar sobre temática que envolve o delito de estupro sempre é conflituoso, pois, por ser um crime violento e hediondo, a sociedade tende a exigir, do Judiciário, uma punição mais severa, uma resposta mais rigorosa – não é incomum ouvir-se falar em castração química ou física como pena para os delinquentes que cometem este tipo penal em específico. Nada mais natural, já que o delito discutido é, de fato, provocador de repulsa.

Contudo, o Direito Penal e Processual não se permeia pelo clamor público, não se desenvolvem para atender à exigência da sociedade de uma reposta estabelecida por leigos como justa, afinal o próprio conceito de justiça não é universal e o direito é ciência, oras.

Deve-se, portanto, despir-se de preconceitos, de pré-julgamentos, e manter-se imparcial quando se propõe a analisar a matéria, para discuti-la dentro de um contexto democrático e de respeito às garantias constitucionais.

É abordando a temática utilizando como pilar a reverência à Constituição Federal de 1988, que se passa a questionar o projeto de lei 5.013/19, que, recentemente, em 09 de setembro de 2020, recebeu voto favorável do relator, o senador Eduardo Braga, e segue para sanção presidencial.

O projeto, de iniciativa do deputado Federal Hildo Rocha, cria o Cadastro Nacional de Pessoas Condenadas por Crime de Estupro, cujo nome, por si só, já define a sua (in)utilidade. Trata-se de um cadastro, criado pela União, que deverá conter diversas informações de condenados por estupro, dentre elas as características físicas, impressões digitais, perfil genético, fotos, e, inclusive, o local de moradia e atividade laboral desenvolvida nos últimos 3 (três) anos.

Por mais que se reconheça o (aparente) esforço para combater o delito em referência, a brutalidade do crime e a estatística da quantidade de registros do seu cometimento não podem ser utilizados como um cheque em branco, para, como justificativa de coibir a violência sexual, convalidar o soterramento de garantias constitucionais tão caras ao Estado Democrático de Direito, à exemplo da dignidade da pessoa humana, a humanidade da pena, etc.

Os pontos nevrálgicos na discussão estão, portanto, na própria criação do cadastro, diante da aqui compreendida inconstitucionalidade de um banco de dados que contemple estas naturezas de informações e, quanto ao seu conteúdo, no fato deste projeto de lei não prever o lapso temporal em que as informações dos condenados por estupro constarão no cadastro e quem terá acesso à lista.

Foram propostas duas importantes emendas ao texto original que trataram das críticas acima elucidadas, contudo, o relator do projeto, Eduardo Braga, rejeitou-as.

A primeira previa o estabelecimento um limite do acesso ao cadastro, definindo ser restrito à polícia investigativa, ao Poder Judiciário e ao Ministério Público. Já a segunda, estabelecia que, após o cumprimento da pena, a informação deveria ser excluída do sistema, após determinação judicial. Ou seja, a emenda tratou de atrelar a permanência do nome do delinquente condenado ao seu tempo de pena.

Quanto ao problema de criação deste cadastro, nem mesmo as emendas que foram apostas têm o condão de corrigir o caráter disfuncional do projeto de lei, pois teme-se que medida seja um resgate ao direito penal do inimigo.

Relembre-se que a teoria do direito penal do inimigo1, criada por Gunther Jakobs em 1985, não trata o delinquente como sujeito de direitos, mas como um inimigo a ser diferenciado do demais cidadãos e privado do convívio social. Ou seja, desenvolve-se com a imposição de uma diferença de tratamento dado aos cidadãos, definidos como pessoas racionais e socializadas, e os inimigos, descritos como indivíduos de personalidade perigosa.

Um dos principais critérios do direito penal do inimigo é justamente a supressão de garantias penais e processuais penais, como in casu o projeto de lei propõe-se a fazer.

A grande crítica2 que se faz ao direito penal inimigo é a definição de quem é o inimigo. Quem será alijado dos direitos fundamentais do cidadão comum? Semelhantemente, o que faz o crime de estupro ser mais gravoso do que os demais, em especial os crimes que atentam contra a vida em geral, para merecerem um cadastro especial de pessoas condenadas? A absoluta ausência de clareza e a falta de critérios quanto a escolha desses destinatários da lei revela o lado mais irascível do direito penal: quando ele criado para o “outro”.

E não é só. Qual a utilidade legítima dessa informação? De certo não há, já que ela não se presta a cumprir o que promete, de funcionar como um controle preventivo de novos crimes. Mais um ato simbólico próprio do direito penal. Falso controle de criminalidade para uma sociedade que finge sentir-se mais segura.

Lado outro, para além dos problemas de criação do cadastro, as lacunas existentes no projeto de lei, que não trazem o período de tempo em que os nomes dos condenados farão parte do cadastro, permitem interpretações em sentidos diversos, dentre elas a de que o nome dos condenados uma vez acrescidos à lista, jamais sairão. Acontece que isso esbarra em uma série de direitos fundamentais, dentre eles o direito ao esquecimento3 e a inaplicabilidade de penas perpétuas. Em tempos mais modernos estar-se a criar uma espécie de “cancelamento” social em matéria penal.

O direito ao esquecimento é um desdobramento da dignidade da pessoa humana. Trata-se, em uma definição4 rudimentar, do direito de não ser lembrado por situações pretéritas, ainda que verídicas.

No ordenamento jurídico pátrio, o direito e o tempo caminham juntos, de modo que o lapso temporal interfere diretamente na pretensão autoral.  Ordinariamente, o direito de exigir é obstado, após o transcurso de um período de tempo. Significa dizer que o decorrer do tempo tem o poder de estabilizar situações pretéritas ao ponto de obstar à sua exigência. É o que se verifica nos institutos da prescrição, da decadência e da perempção.

Do mesmo modo, como consectário lógico à estabilização das situações pretéritas, o cometimento de um crime também deve ser esquecido. Esta é a razão de ser do direito ao esquecimento, notadamente por ser direito do condenado, por mais atroz e infamante que tenha sido o crime cometido, de ser ressocializado.

Ao menos na teoria5, uma das funções do sistema penitenciário brasileiro é a reinserção social do apenado. A partir dessa função da pena que, atualmente, tem um caráter mais simbólico do que prático, indaga-se, como será possível ressocializar um condenado se, após cumprida a sanção, ele continuará a ser taxado de delinquente por ter seu nome inserido num cadastro de pessoas condenados por crimes de violência sexual?

Não é preciso grande esforço intelectual para verificar os efeitos negativos da permanência dos nomes dos condenados e da publicitação dessa lista para a sociedade. Haverá uma discriminação dos apenados, o que, insofismavelmente, atenta contra a dignidade da pessoa humana.

É exatamente por tal razão de ser que o legislador previu, no artigo 93 do Código Penal que é assegurado, ao condenado, o sigilo dos registros sobre o seu processo e condenação, após dois anos da extinção da execução da pena. Semelhantemente, no artigo 202 da Lei Execuções Penais, existe a previsão de que, cumprida ou extinta a pena, não constarão da folha corrida, atestados ou certidões fornecidas por autoridade policial ou auxiliares da justiça, qualquer notícia ou referência à condenação. Os dois dispositivos não foram criados pelo legislador por força do acaso, mas sim para resguardar que um condenado tenha o direito de, após cumprir a sua pena, prosseguir com sua vida, reinserindo-se na sociedade, sem estar algemado à sua conduta desviante passada.

De mais a mais, o projeto de lei, na forma original em que foi pensado, ainda encontra embargo na vedação constitucional de prisões perpétuas, prevista no artigo 5º, XLVII, alínea b, da Constituição Federal de 1988. Isso porque, por mais que o condenado não esteja no cárcere, ser lembrado rotineiramente de um crime do passado, cuja sanção foi aplicada, cumprida e extinta, é uma forma de punição ad eternum, já que se está a falar de uma espécie nova de efeito automático da condenação que não possui intersigno.

A teoria jurídica da pena a define como uma retribuição de culpabilidade. Configura-se como uma imposição legítima do Estado de um mal justo contra o mal injusto, necessário para realizar justiça ou restabelecer o direito. Malgrado os delitos de violência sexual serem gravosos, o legislador já previu a sanção privativa de liberdade como retribuição equivalente ao crime, sendo despiciendo a criação de uma lista pública contendo o nome dos condenados por estupro.

Toda medida que visa o combate à criminalidade, desde que respeite as balizas da legalidade, deve ser festejada, contudo, é preciso atentar-se para os efeitos deletérios que ela traz. Um crime, por mais violento que seja, não legitima uma punição perpétua e não convalida o desrespeito às garantias constitucionais pelo Estado. Seria o retorno do método “Lombrosiano”?

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1 DIETER, Maurício Stegemann. "O direito penal do inimigo" e "a controvérsia". Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre, v. 9, n. 32, p. 135-150, jan./mar. 2009. Disponível clicando aqui . Acesso em: 13 set. 2020.

2 ROIZENBLIT, Marcelo. A doutrina do Direito Penal do Inimigo e o Estado Democrático de Direito. Revista criminal: ensaios sobre a atividade policial, São Paulo, v. 2, n. 3, p. 97-113, abr./jun.. 2008. Disponível clicando aqui . Acesso em: 13 set. 2020.

3 RIGUEIRO, Fábio Vinícius Maia. Direito ao esquecimento: dimensão da intimidade e identidade pessoal. Revista de Direito Constitucional e Internacional: Cadernos de direito constitucional e ciência política, São Paulo, v. 24, n. 98, p. 83-107, nov./dez.. 2016. Disponível em: clicando aqui . Acesso em: 13 set. 2020.

4 BRUM, Caroline Bussoloto de. Análise constitucional do direito ao esquecimento. Boletim IBCCRIM, São Paulo, v. 24, n. 288, p. 12-13, nov.. 2016.

5 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte Geral. Florianópolis: Tirant lo Balnch, 2018.

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*Catharina Araújo Lisbôa é advogada criminalista. Especialista em Ciências Criminais. Professora da pós-graduação em Ciências Criminais da Faculdade Baiana de Direito.

*Pablo Domingues Ferreira de Castro é advogado criminalista. Doutorando pelo IDP(DF). Professor de cursos de pós-graduação. Sócio do escritório Ana Paula Gordilho Pessoa e Advogados Associados.

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