Não é de hoje que verificamos no aparato do Poder Judiciário diversos problemas em sua estrutura. Por exemplo, conforme os dados do Justiça em Números recentemente divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Poder Judiciário custa aos cofres públicos R$ 100.157.648.446 (valor este respectivo ao ano de 2019). Com relação à litigiosidade, o ano de 2019 fechou com o total de 77,1 milhões de processos em tramitação. Em um país com alto índice de litigiosidade, encontramos um baixo respeito às leis e até mesmo na instituição Poder Judiciário.
Porém, quais são (ou seriam) os motivos que levam a um Poder Judiciário tão caro e abarrotado? Claro que, para chegarmos neste nível de judicialização, diversos fatores são determinantes. Dentre eles, um dos mais relevantes é o ativismo judicial, entendido aqui, para além do conceito tradicional, em outras palavras, a ausência de uma uniformização de jurisprudência.
A partir deste panorama complexo, em que a estrutura que existe é incapaz de solucionar as demandas postas à sua análise, acaba-se optando por formas alternativas de conflitos (mediação, conciliação e arbitragem) e investimentos em tecnologia, de forma a diminuir o custo da estrutura existente e o grande número de processos judiciais.
No dia 21/08/2020, foi publicada Resolução n. 332 do CNJ sobre o uso da Inteligência Artificial no Poder Judiciário. Neste, alguns critérios mínimos foram criados, como respeito aos direitos fundamentais, deveres de não discriminação, publicidade e transparência e segurança.
Recentemente, houve debate relevante sobre a implementação da Inteligência Artificial ao Direito entre os Professores Lenio Streck1 e Alexandre Moraes da Rosa2. Não é objetivo do presente artigo discorrer sobre a possibilidade de a IA atuar no momento da tomada de decisão, porém, o que é certo, é que a tecnologia veio para chegar no Direito. Neste ponto, importante trazer à baila frase utilizada pelo Prof. Alexandre Moraes da Rosa: “A tecnologia não solicita autorização, nem assentimento dos juristas para avançar; dá de ombros”.
Em março de 2019, foi divulgada matéria no site Valor Econômico indicando que os Tribunais têm investido em inteligência artificial, como forma de reduzir o volume de ações judiciais3. O intuito na adoção da IA nos processos judiciais é de que tanto o custo do Poder Judiciário reduza quanto que a tecnologia consiga diminuir o grande acervo de processos, viabilizando uma maior agilidade na tramitação das ações, conforme entrevista com a juíza Keity Saboya, da 6ª Vara de Execuções Fiscais e Tributárias da Comarca de Natal
Porém, uma pergunta paira no ar. De que forma os jurisdicionados irão reagir a esta novidade implementada (ou, ao menos, sendo implementada) pelo Poder Judiciário? Acreditamos que, com o passar do tempo, mudanças de comportamentos tendem a ocorrer.
O primeiro reflexo da aplicação da IA ao processo tende a ser o tempo de sua duração. O tempo é um fardo necessário que deverá ser suportado por algum dos sujeitos para que se atinjam os resultados esperados em um processo judicial4. O tempo é um custo que deve ser incorporado pelo sujeito que busca a via jurisdicional para a satisfação de um direito5. Na perspectiva econômica, este tempo pode ser considerado como custo de transação a ser levado em consideração para os agentes litigantes. Dentro do processo brasileiro, temos um outro agravante a ser considerado: a possibilidade do devedor (no caso das ações de natureza civil patrimonial) e até mesmo dos acusados (em matéria penal) de utilizarem do grande e moroso aparato judicial em benefício próprio.
Peguemos um caso singelo a ser analisado. Em determinado cartório cível da Capital Gaúcha, o juízo responsável tem como costume realizar todas as penhoras pelo sistema BacenJud (penhora online) nas sextas-feiras. Ou seja, todos os réus atentos a essa realidade podem manter seus ativos em conta corrente até quinta-feira para, então, sacar ou transferir o valor para conta de terceiro e burlar a sistemática cartorária. A justificativa do juízo para a realização das penhoras apenas na sexta-feira é compreensível: de que é o único dia da semana em que, normalmente, não são aprazadas audiências, viabilizando a agenda para o cumprimento dessas ordens. Realidades como essa geram ao jurisdicionado o devido incentivo à procrastinação da ação judicial, bem como o desincentivo necessário à quitação da dívida e, até mesmo, da realização de eventual composição.
Neste ponto, a IA pode ser crucial para uma nova realidade processual.
A IA não possui essas “falhas” do sistema. Peguemos o caso do Poti, no Rio Grande do Norte, em que executa tarefas de bloqueio, desbloqueio de valores em contas e emissão de certidões relacionadas ao BacenJud. Tais tarefas, quando realizadas por servidores do Poder Judiciário, levavam semanas. Agora, são realizadas em segundos. O robô também atualiza o valor da ação de execução fiscal e transfere o montante bloqueado para as contas oficiais indicadas no processo. Se não existir dinheiro em conta, Poti pode ser programado para buscar o montante por períodos consecutivos de 15, 30 ou 60 dias6.
A maior eficiência trazida pela IA ao Poder Judiciário trará maior desincentivo ao descumprimento de decisões judiciais. Alguns tribunais investiram no aperfeiçoamento de sistemas de IA que auxiliam na tomada de decisão em si. O caso Victor (STF) e o Radar (TJ/MG) são casos que, diferentemente do Poti, procuram uma maior uniformização na aplicação da jurisprudência. No caso Victor, o objetivo será identificar quais estão vinculados a determinados temas de repercussão geral. No que tange ao caso Radar, existe uma separação de recursos que possuem pedidos idênticos e aplica, de forma uniforme, teses fixadas pelos Tribunais Superiores e pelo próprio Tribunal de Justiça mineiro. Nestes casos, portanto, haverá um maior desincentivo à litigiosidade, tendo em vista que, havendo uma maior previsibilidade da decisão judicial a ser tomada, caso o pleito daquele autor seja contrário à tese, ele será desincentivado ao ajuizamento (o contrário também será verdadeiro).
O STJ, da mesma forma, possui o seu próprio Projeto, denominado de Sócrates. A ideia é que o seja capaz de examinar Recursos e Acórdãos recorridos. Dessa análise, sairão informações relevantes aos relatores, como por exemplo: se o caso se enquadra nos repetitivos do tribunal, a legislação aplicada e até mesmo processos semelhantes com sugestões de decisões.
Portanto, a expectativa é que as formas de procrastinação anteriormente utilizadas pelos jurisdicionados agora, com o implemento da IA, sofram grande abalo, diante da grande velocidade e eficiência que serão implementadas à análise dos processos judiciais. Do ponto de vista econômico, a velocidade e a eficiência, para o devedor, resultaram em um acréscimo em seu custo de transação, aumentando os incentivos à solução do conflito.
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1- Um robô pode julgar? Quem programa o robô?
2- Inteligência artificial e Direito: ensinando um robô a julgar.
4- ABREU, Rafael Sirangelo de. Incentivos processuais: economia comportamental e nudges no processo civil. 1 ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 102.
5- ABREU, Rafael Sirangelo de. Incentivos processuais: economia comportamental e nudges no processo civil. 1 ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 103.
6- Tribunais investem em robôs para reduzir volume de ações.
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*Cesar Santolim é advogado, economista, professor da Faculdade de Direito da UFRGS, doutor e mestre em Direito pela UFRGS, com pós-doutorado em Direito pela Universidade de Lisboa.
*Demétrio Beck da Silva Giannakos é advogado, mestre e doutorando em Direito pela Unisinos. Sócio do escritório Giannakos Advogados Associados.