O aumento do uso das ações coletivas demonstra o aprimoramento “da defesa das relações jurídicas de massa, fruto da sociedade moderna e da coletivização da Justiça, que busca uma defesa menos onerosa e mais célere para resolução de tais conflitos”1. A tutela jurisdicional coletiva consiste na proteção dos direitos que transcendem a esfera individual (metaindividuais ou transindividuais), sendo por natureza ou por uma questão de relevância social ou ainda em razão da amplitude significativa defendidos por meio das ações coletivas. Os direitos protegidos nas demandas coletivas são: os difusos, os coletivos e os individuais homogêneos.
A definição de tais direitos encontra-se positivada no art. 81, parágrafo único, do CDC. De acordo com tal dispositivo, os direitos difusos são os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato. Já os direitos coletivos são os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base. Já os direito individuais homogêneos são aqueles decorrentes de origem comum.
É importante salientar que no Brasil não há um Código de Processo Coletivo. Existe, na verdade, um conjunto de leis que formam o chamado microssistema processual coletivo, já tendo o Superior Tribunal de Justiça assentado que “por força do princípio da integração, as leis 4.717/65, 7.347/85, 8.078/90 e 8.429/92, dentre outras, compõem um microssistema processual coletivo, com o objetivo de propiciar uma adequada e efetiva tutela dos bens jurídicos por elas protegidos”2, restando esclarecido ainda que o Código de Processo Civil somente é aplicável subsidiariamente ao sistema de proteção coletivo e desde que não afronte os princípios da tutela coletiva3.
A lei 8.078/90, que é o CDC4, constitui uma das que integram o microssistema coletivo. Tal norma define interesses5 ou direitos difusos como sendo “os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato”; os interesses ou direitos coletivos stricto sensu são aqueles “transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base”; e os interesses ou direitos individuais homogêneos são “entendidos os decorrentes de origem comum” (art. 81, parágrafo único, da lei 8.078/90).
Os direitos metaindividuais costumam ser agrupados em duas categorias: a dos essencialmente coletivos (ou coletivos lato sensu) e a dos acidentalmente coletivos6. Trata-se de classificação pautada no critério da incindibilidade do objeto, isto é, na indivisibilidade do direito material. A categoria dos direitos essencialmente coletivos é formada pelos direitos difusos e pelos coletivos stricto sensu, enquanto a dos acidentalmente coletivos é formada pelos direitos individuais homogêneos.
A sentença de procedência proferida em uma ação coletiva poderá ser ordinária ou genérica, havendo necessidade de ser empregada nesta última hipótese a liquidação. A sentença coletiva genérica, a seu turno, poderá ser objeto de liquidação coletiva ou de liquidação individual. No primeiro caso, tem-se a chamada liquidação coletiva, que é realizada pelos próprios legitimados para a ação coletiva, enquanto no segundo fala-se em liquidação individual da sentença coletiva, a qual é realizada individualmente pelas pessoas que foram tuteladas por meio da sentença proferida na ação coletiva7. Saliente-se que mesmo nesta última hipótese (liquidação individual da sentença coletiva), se decorrido o prazo de um ano sem habilitação dos interessados, os legitimados para a ação coletiva poderão promover a liquidação e a execução das indenizações devidas (art. 100, da lei 8.079/90). A isso se chama de recuperação fluída (fluid recovery) e seu objetivo é evitar o enriquecimento sem causa do réu na ação coletiva proposta para tutela de direitos individuais homogêneos, quando os interessados não promovem, no prazo de um ano, as respectivas liquidações e execuções individuais8.
É possível afirmar, então, que nas ações coletivas “a liquidação de sentença pode correr tanto como mera fase do processo coletivo (caso dos direitos essencialmente coletivos e da recuperação fluída) quanto por meio de processo individual autônomo (quando os indivíduos pretendem liquidar sentença coletiva com base na extensão ou no transporte da coisa julgada in utilibus)”9. A primeira é uma liquidação coletiva, enquanto a segunda é uma liquidação individual da sentença coletiva.
Em matéria de liquidação individual da sentença coletiva, doutrina e jurisprudência reportam-se à chamada “liquidação imprópria”10.Tal modalidade de liquidação individual relaciona-se com as ações coletivas, incumbindo ao credor demonstrar não apenas o quantum debeatur a que faz jus, mas também a sua própria legitimidade ad causam para requerê-la. A propósito da matéria, esclarece a doutrina que “a coisa julgada pode ser transportada ou estendida para o plano individual, ocasião na qual a liquidação será realizada pelos próprios indivíduos (ou seus sucessores) integrantes da coletividade...”11, de modo que “cada liquidante, no processo de liquidação, deverá provar, em contraditório pleno e com cognição exauriente, a existência do seu dano pessoal e o nexo etiológico com o dano globalmente causado (ou seja, o an), além de quantificá-lo (ou seja, o quantum)”12.
No caso, o procedimento da liquidação afigura-se necessário não apenas para definição do valor pretendido, mas também para demonstração da própria condição de credor do requerente. É importante reiterar que o imediato pedido de cumprimento da sentença não poderá ser formulado porque a sentença proferida na ação coletiva para tutela de direitos individuais homogêneos é genérica, valendo lembrar que o art. 95 do CDC prevê que “Em caso de procedência do pedido, a condenação será genérica, fixando a responsabilidade do réu pelos danos causados”13. Nessa ordem de ideias, a liquidação individual da sentença coletiva deve preceder ao cumprimento da sentença (execução), destinando-se à comprovação do crédito do postulante e também à comprovação da sua própria legitimidade.
Por sinal, o STJ tem considerado que a liquidação imprópria da sentença proferida em ação coletiva afigura-se obrigatória14, já tendo sido assentado que “A sentença genérica prolatada no âmbito da ação civil coletiva, por si, não confere ao vencido o atributo de devedor de 'quantia certa ou já fixada em liquidação'... porquanto, 'em caso de procedência do pedido, a condenação será genérica', apenas 'fixando a responsabilidade do réu pelos danos causados' (art. 95 do CDC). A condenação, pois, não se reveste de liquidez necessária ao cumprimento espontâneo do comando sentencial...”15. Tal orientação, por sinal, foi firmada em recurso especial repetitivo pelo STJ16.
A propósito, o Código Modelo de Processos Coletivos para Ibero América do Instituto Ibero-Americano de Direito Processual, aprovado em Caracas, em 28 de outubro de 2004, prevê no art. 23, parágrafo único, que “En el proceso de liquidación de la sentencia, que podrá ser promovido ante el juez del domicilio del ejecutante, corresponderá a éste probar, tan sólo, el daño personal, el nexo de causalidad y el monto de la indemnización”.
Diante de tal cenário, caso o credor requeira o cumprimento individual da sentença coletiva (execução), sem prévia liquidação, deverá o magistrado oportunizar a emenda da petição inicial para que o pedido seja corrigido, na forma do art. 321 do CPC, valendo lembrar ainda do princípio da primazia da resolução do mérito, segundo o qual devem ser evitadas as sentenças terminativas. Por sinal, o CPC Brasileiro tem como um de seus princípios norteadores o da primazia da resolução do mérito, restando estabelecido no art. 317 que “Antes de proferir decisão sem resolução de mérito, o juiz deverá conceder à parte oportunidade para, se possível, corrigir o vício”. Tal princípio encontra-se em harmonia com a própria ontologia do processo, valendo lembrar que a elevação do processo ao status de medida de todas as coisas não se afigura compatível com a perspectiva instrumental do direito processual.
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1- LUCON, Paulo Henrique dos Santos. SILVA, Érica Barbosa e. Análise crítica da liquidação e execução na tutela coletiva. In: LUCON, Paulo Henrique dos Santos (Coord.). Tutela coletiva. São Paulo: Atlas, 2006. p. 163.
2- AgInt no REsp 1521617/MG, Rel. Ministra Regina Helena Costa, Primeira Turma, julgado em 16-05-2017, DJe 22-05-2017.
3- REsp 1452660/ES, Rel. Ministro Og Fernandes, Segunda Turma, julgado em 19-10-2017, DJe 27-04-2018.
4- Adverte a doutrina que o Título III do Código de Defesa do Consumidor representa, por ora, “o Código Brasileiro de Processos Coletivos”, mas “os diplomas que tratam da tutela coletiva são intercambiantes entre si” (ZANETI JR, Hermes. DIDIER JR, Fredie. Curso de direito processual civil: processo coletivo. Salvador: Juspodivm, 2007. v. 4. pp. 49 e 51), posição que se encontra em harmonia com a orientação do Superior Tribunal de Justiça.
5- Sobre a matéria, a doutrina mencionar que “A necessidade de estar o direito subjetivo sempre referido a um tutela determinado ou ao menos determinável, impediu por muito tempo que os ‘interesses’ pertinentes, a um tempo, a toda uma coletividade e a cada um dos membros dessa mesma atividade... pudessem ser havidos por juridicamente protegíveis” GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 6. ed. rev. atual e ampl. Rio de Janeiro: Forense universitária, 2000. p. 719). No Brasil, em matéria de processo coletivo, passou-se a utilizar como sinônimas as expressões “direitos” e “interesses”. A propósito: “O legislador, certamente alertado sobre o possível reducionismo que poderia recair sobre a utilização da expressão ‘interesses’ ao invés de ‘direitos’, optou por uma solução conciliatória que acabou prestigiando ambas, tornando-as equivalentes para fins e tutela jurisdicional” (VENTURI, Elton. Processo civil coletivo: a tutela jurisdicional dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos no Brasil. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 47.).
6- MOREIRA, José Carlos Barbosa. Tutela jurisdicional dos interesse coletivos ou difusos. In: Temas de direito processual: terceira série. São Paulo: Saraiva, 1984. p. 195 e 196. Fala-se, em doutrina, ainda, em tutela dos direitos coletivos (interesses difusos e coletivos em sentido estrito) e em tutela coletiva dos direitos (interesses individuais homogêneos). A esse respeito, cf.: WAMBIER, Luis Rodrigues. Sentença civil: liquidação e cumprimento. 3. ed. ver. atual e ampl. São Paulo: Revista dos tribunais, 2006. p 297.
7- Sobre tal matéria, cf.: HERTEL, Daniel Roberto. A liquidação coletiva e as reformas processuais do CPC. Revista dialética de direito processual - RDDP, São Paulo, SP, n. 66, 2008.
8- Sobre a matéria, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que “A recuperação fluida (fluid recovery), prevista no citado art. 100 do CDC, constitui específica e acidental hipótese de execução coletiva de danos causados a interesses individuais homogêneos, instrumentalizada pela atribuição de legitimidade subsidiária aos substitutos processuais do art. 82 do CDC para perseguirem a indenização de prejuízos causados individualmente aos substituídos, com o objetivo de preservar a vontade da Lei e impedir o enriquecimento sem causa do fornecedor que atentou contra as normas jurídicas de caráter público, lesando os consumidores” (REsp 1599142/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 25-09-2018, DJe 01-10-2018).
9- DONIZETTI, Elpídio. CERQUEIRA, Marcelo Malheiros. Curso de processo coletivo. São Paulo: Atlas, 2010. p. 378
10- Superior Tribunal de Justiça, AgRg no AREsp 362.491/RS, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 05-11-2013, DJe 08-11-2013. Na doutrina, Cândido Rangel Dinamarco assim já se posicionou: “O objeto desse especialíssimo processo de liquidação por artigos é mais amplo que o da autêntica e tradicional liquidação, porque inclui a pretensão do demandante ao reconhecimento de sua própria condição de lesado, ou seja, pretensão à declaração de existência do dano individual alegado” (DINARMACO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. São Paulo: Malheiros, 2004. v. 4. p. 631 e 632).
11- DONIZETTI, Elpídio. CERQUEIRA, Marcelo Malheiros. Curso de processo coletivo. São Paulo: Atlas, 2010. p. 380.
12- GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 6. ed. rev. atual e ampl. Rio de Janeiro: Forense universitária, 2000. p. 786. No mesmo sentido: LUCON, Paulo Henrique dos Santos. SILVA, Érica Barbosa e. Análise crítica da liquidação e execução na tutela coletiva. In: LUCON, Paulo Henrique dos Santos (Coord.). Tutela coletiva. São Paulo: Atlas, 2006. p. 175. MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 17. ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 460).
13- Em outro ensejo destaquei que “nas ações que versam sobre direitos individuais homogêneos, a sentença condenatória a ser proferida deverá ser ilíquida. Tal situação de iliquidez decorre da imensa dificuldade em se apurar a extensão dos danos experimentados individualmente, assim como os eventuais prejudicados” (HERTEL, Daniel Roberto. A liquidação coletiva e as reformas processuais do CPC. Revista dialética de direito processual - RDDP, São Paulo, SP, n. 66, 2008. p. 15).
14- Há alguns julgados, contudo, em sentido diverso, já tendo sido assentado pelo Superior Tribunal de Justiça que é possível “a dispensa de liquidação por arbitramento ou artigos nas execuções coletivas que permitam verificar o valor devido por simples operação matemática com planilha de cálculo. Entretanto, essa possibilidade deve ser analisada caso a caso devido à diversidade de situações fáticas existentes nos processos coletivos” (AgInt no REsp 1602761/RO, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellize, Terceira Turma, julgado em 20-02-2018, DJe 02-03-2018).
15- STJ, REsp 1247150/PR, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Corte Especial, julgado em 19-10-2011, DJe 12-12-2011.
16- O art. 927, do CPC, prevê que os juízes e os tribunais observarão: I - as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; II - os enunciados de súmula vinculante; III - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos; IV - os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional; V - a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados. A propósito disso, a doutrina de qualidade afirma que “observar o teor de um precedente judicial é tão necessário para a justiça de uma decisão quanto à aplicação adequada de uma norma legal. Os precedentes asseguram a promoção da igualdade em seus aspectos mais particulares, por isso o necessário recurso ao raciocínio lógico” (LUCON, Paulo Henrique dos Santos. Segurança jurídica no novo CPC. In: LUCON, Paulo Henrique dos Santos. OLIVEIRA, Pedro Miranda de (Coord.). Panorama atual do novo CPC. Florianópolis: Empório do direito, 2016. p. 342.).
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*Daniel Roberto Hertel é graduado em Administração e em Direito. Possui especialização em Direito Público e em Direito Processual Civil. É Mestre em Garantias Constitucionais (Direito Processual) pela Faculdade de Direito de Vitória. É professor Adjunto X de Direito Processual Civil da Universidade Vila Velha-UVV e ex-professor de Direito Processual Civil da Fundação de Assistência e Educação (FAESA). É professor convidado de Direito Processual Civil da Academia Brasileira de Direito Constitucional–ABDCONST, da Escola Superior da Magistratura do Estado do Espírito Santo–ESMAGES e de outros cursos de pós-graduação em Direito.