Depois que dois juízes de primeira instância do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro proibiram que veículos de comunicação social (GGN e Rede Globo) divulgassem matérias jornalísticas, os temas da liberdade de imprensa e da censura foram retomados, ainda que o Supremo Tribunal Federal tenha declarado a não recepção pela Constituição de 1988 da lei de imprensa do regime militar (lei 5.250/67).
Ora, não é aceitável que juízes imponham censura judicial para impedir que veículos de comunicação disponibilizem suas matérias para a sociedade, uma vez que a Constituição estabelece que deve imperar a ampla liberdade de imprensa.
Pretendemos, por meio deste texto, analisar a liberdade de informação a partir da questão da memória e do esquecimento, que está pendente de julgamento no Supremo Tribunal Federal, o que deverá ocorrer a partir de 30 de setembro de 2020.
O debate sobre o acesso à memória, no que diz respeito a acontecimentos da vida privada versus fatos da vida pública, tem dinamizado importantes discussões, seja no campo da política, da comunicação social, da editoração de livros e na rede mundial de computadores.
A discussão sobre a memória ou o esquecimento pode ser sintetizada entre as manifestações de Walter Benjamin, para quem “os mortos têm direito sobre nós, uma vez que, do ponto de vista deles, somos as futuras gerações” e Max Horkheimer, que defende que “os mortos estão mortos e não podem ser despertados”.
A jurisprudência construída no Supremo Tribunal Federal (STF) tem se encaminhado para dar respaldo à liberdade de expressão e de imprensa, proibindo toda forma de censura.
O STF, em 30 de abril de 2009, julgou que a lei 5.250/67 (Lei de Imprensa), aprovada durante o regime militar de 1964-1985, não foi recepcionada pela Constituição de 1988.
Essa declaração ocorreu por meio da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 130, onde foi afirmado aos veículos de comunicação a liberdade de informação, ressalvado o direito à resposta e à indenização, em casos comprovados de dano à moral da pessoa atingida pela divulgação dos dados e/ou informação.
A partir deste precedente, o STF deu direcionamento à questão da publicação de biografias, independentemente de autorização concedida pela pessoa retratada ou por seus sucessores, o que fez no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) 4.815 (relatora do processo, ministra Carmen Lúcia), ao decidir que:
“A Constituição do Brasil proíbe qualquer censura. ... O direito de informação, constitucionalmente garantido, contém a liberdade de informar, de se informar e de ser informado. ... Biografia é história. ... Autorização prévia para biografia constitui censura prévia particular. O recolhimento de obras é censura judicial, a substituir a administrativa. O risco é próprio do viver. Erros corrigem-se segundo o direito, não se cortando liberdades conquistadas.”
Este julgamento, ocorrido em 10 de junho de 2015, também poderá servir de base para a análise do debate entre o direito à memória ou ao esquecimento, que está pendente de julgamento no Recurso Extraordinário (RE) 833.248 (substituído pelo RE 1.010.606, que, em 11/9/20 teve seu julgamento agendado para a sessão do próximo dia 30/9/20), com repercussão geral reconhecida para avaliar a constitucionalidade da não divulgação/reprodução de dados de pessoa morta em programa televisivo. O parecer do Procurador Geral da República foi pelo não reconhecimento do direito ao esquecimento, no âmbito cível, frente à garantia da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa, como pretendem as empresas de comunicação social.
No julgamento do Habeas Corpus (HC) 118.977, o relator Dias Toffoli, no seu voto condutor, manifestou que: “O homem não pode ser penalizado eternamente por deslizes em seu passado pelos quais já tenha sido condenado e tenha cumprido a reprimenda imposta em regular processo penal. Faz ele jus ao denominado ‘direito ao esquecimento, não podendo perdurar indefinidamente os efeitos nefastos de uma condenação anterior, já regularmente extinta.”
Igualmente, no HC 126.315, o relator Gilmar Mendes, no seu voto condutor, assim expôs: “...É que, em verdade, assiste ao indivíduo o ‘direito ao esquecimento’, ou ‘direito de ser deixado em paz’, alcunhado no direito norte-americano de ‘the right to be let alone’. Direito ao esquecimento, a despeito de inúmeras vozes contrárias, também encontra respaldo na seara penal, enquadrando-se como direito fundamental implícito, corolário da vedação à adoção de pena de caráter perpétuo e dos princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da proporcionalidade e da razoabilidade.”
Como se pode observar, o debate travado no passado entre W. Benjamim e M. Horkheimer (acima destacado) poderá vir a ser repetido no plenário do STF. Apesar de que, a decisão no julgamento do Recurso Extraordinário 593.818, ocorrida em 18 de agosto de 2020, com repercussão geral reconhecida (tema 1501), relatado por Luís Roberto Barroso, afastou o esquecimento em matéria criminal para majoração de pena.
Como consequência desta dualidade de pensamento, entre memória e esquecimento, os argumentos utilizados para o estabelecimento do segundo (esquecimento) poderão ser favoráveis aos que, efetiva e comprovadamente, praticaram delitos bárbaros durante o regime de 1964-1985; aplicando-se o mesmo aos envolvidos no extermínio de menores na Candelária, no Rio de Janeiro; na chacina dos sem terra de Eldorado dos Carajás, no Pará; ou no genocídio do presídio do Carandiru, em São Paulo; cujos perpetradores poderão ter seus nomes lançados ao esquecimento, mesmo que sejam julgados e condenados.
Nesse ponto, tais fatos, mesmo que lamentáveis, devem ser considerados como registros da memória do país, devendo ser amplamente divulgados para que não sejam repetidos no futuro.
Assim, considero importante ressaltar que o STF, no julgamento realizado em 16/3/17, na reclamação 11.949/RJ, a relatora, ministra Carmen Lúcia, a respeito da negativa do Superior Tribunal Militar de tornar público o conteúdo dos julgamentos secretos ocorridos durante a ditadura militar, manifestou que: “o direito à informação, a busca pelo conhecimento da verdade sobre a sua história, sobre os fatos ocorridos em período grave contrário à democracia, integra o patrimônio jurídico de todo cidadão, constituindo dever do Estado assegurar os meios para o seu exercício”.
Ainda que envolvam delitos praticados, e diante da repercussão política e social dos acontecimentos, é direito da sociedade saber quem os praticou e como os praticou, a fim de se evitar posicionamentos rejeitados pela Constituição e contrários à democracia, como a defesa da tortura e de torturadores, a apologia ao estupro e a violações aos direitos humanos, como ocorreu na Câmara dos Deputados; ou comentários que buscam naturalizar o abuso e o trabalho infantil, feitos por meio de transmissão ao vivo, via rede mundial de computadores, em 10 de setembro de 2020.
Sendo assim, não se pode jogar ao esquecimento nem impedir a divulgação dos envolvidos nos delitos de grande repercussão, relativos a violações dos direitos humanos, aos quais deve ser dado amplo conhecimento, para que sejam repelidos pela sociedade.
A defesa do esquecimento das graves violações aos direitos humanos ocorridas durante as ditaduras no país (1937-1945 e 1964-1985) atua como alimento do ódio, que incentiva o retorno despudorado das mesmas práticas destrutivas, como estamos observando nos dias atuais, mediante os ataques sistemáticos aos índios, aos negros, às ações policiais em comunidades faveladas, à população LGBTQ+, às mulheres e às crianças; comportamentos que possibilitam o genocídio, desrespeitam a pluralidade e nos afastam cada vez mais de uma ordem verdadeiramente democrática.
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1 "Não se aplica para o reconhecimento dos maus antecedentes o prazo quinquenal de prescrição da reincidência, previsto no art. 64, I, do Código Penal"
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