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Responsabilidade de aplicativos de entregas por danos sofridos por entregadores

Para que seja reconhecida a relação de emprego e, consequentemente, garantir os direitos trabalhistas aos empregados, são necessários alguns requisitos previstos na Consolidação das Leis Trabalhistas, sendo eles a pessoalidade, pessoa física, não eventualidade, onerosidade e subordinação.

15/9/2020

1. Contextualização

Diante do alto índice de desemprego no Brasil, muitos trabalhadores buscam outras vias para sobreviver, em especial por meio de atividades autônomas (facilitadas pela difusão do cadastro como microempreendedores individuais) ou informais. Nesse sentido, os aplicativos de entrega surgem como uma oportunidade, ao oferecer um trabalho flexível e sem burocracia.

Ocorre que, para que seja reconhecida a relação de emprego e, consequentemente, garantir os direitos trabalhistas aos empregados, são necessários alguns requisitos previstos na Consolidação das Leis Trabalhistas, sendo eles a pessoalidade, pessoa física, não eventualidade, onerosidade e subordinação.

Ainda que a discussão acerca da existência de vínculo empregatício entre aplicativos de entrega e entregadores seja controversa no Brasil, o Tribunal Superior do Trabalho considera inexistente tal relação em virtude da ausência dos requisitos previstos na CLT, retirando, portanto, o arcabouço protetivo das leis trabalhistas.

Por essa razão, não é estendido aos entregadores os direitos e garantias trabalhistas, sendo estes cada vez mais vulnerabilizados em face do poderio econômico, financeiro e organizacional das empresas de economia compartilhada, como Uber, iFood, entre outros.

O trabalho diário dos entregadores é precário, uma vez que são submetidos a diversos riscos laborais, como jornadas extenuantes, ausência de intervalos, assaltos e acidentes e, ainda assim, muitas vezes, auferem renda mensal inferior a um salário mínimo, mesmo que labutem ao seu limite, sem qualquer direito ou garantia trabalhista.

Comumente, entregadores sofrem acidentes que geram lesões permanentes e que diminuem sua capacidade laboral. Com efeito, ao dependerem quase que exclusivamente de suas próprias forças para a obtenção do sustento – e sem nenhuma garantia justrabalhista – são praticamente descartados pelo sistema, já que não conseguem por razões físicas manter sua capacidade e intensidade de trabalhos.

Ao fim e ao cabo, eles arcam com todos os danos de forma unilateral, ainda que o acidente tenha ocorrido no âmbito do interesse econômico dos aplicativos de entregas. É desproporcional que os aplicativos de entrega, que possuem um capital milionário, não sejam responsabilizados por nenhum prejuízo, apenas gozem dos lucros sem nenhum encargo.

Dessa forma, ainda que inexistente o vínculo empregatício, os aplicativos de entrega, que auferem lucros exorbitantes explorando a mão de obra dos trabalhadores, devem ser responsabilizados pelos danos sofridos durante o desempenho da atividade laboral, em consonância com o disposto no Código Civil, que adota a teoria do risco proveito e impõe a responsabilidade civil objetiva no caso de atividades econômicas que geram riscos.

2. A teoria do risco e a responsabilidade civil dos aplicativos de entregas

O Código Civil Brasileiro, em seu artigo 927, adotou a teoria do risco-proveito, estatuindo em seu parágrafo único que:

“Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”.

O diploma legal acolheu a teoria do risco para imputar a responsabilidade de pessoas que desenvolvem atividades que ameacem direitos alheios. A adoção da teoria do risco é especialmente relevante no contexto da sociedade de risco, posto que a aferição de culpa torna-se irrelevante quando alguém aufere benefícios por determinada atividade. É da aferição dos bônus que devem advir os ônus, como o dever de indenizar em caso de dano, privilegiando os direitos do ofendido, da vítima.

A objetivação da responsabilidade ampliou, em verdade, o dever de cuidado dos atores sociais, exigindo-lhes cuidado redobrado nas suas manobras, deslocando o foco do ofensor para o ofendido, dando reparação à vítima.

Nessa perspectiva, o dever de indenizar surge da teoria do risco gerado, ou seja, se é o empregador quem cria o risco por meio de sua atividade econômica (empresa), ou mesmo através de conduta que coloque o empregado em condição de risco, a ele caberá responder pelos danos causados. Da mesma forma deve ocorrer com os aplicativos de economia compartilhada.

O mencionado artigo 927 do Código dispõe que há obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade ou a condição a que fora exposto o empregado implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem – e não resta dúvida que a atividade desenvolvida pelos entregadores é perigosa por natureza.

Nesse sentido, Facchini Neto (2010) afirma que “a responsabilidade civil se explica porque o agente teria criado um risco para os demais, ou porque retirou algum proveito de uma coisa ou do trabalho de outrem”.

Da mesma forma, reitera Orlando Gomes (2000):

“A obrigação de indenizar sem culpa nasce por mistério da lei, para certos casos, por duas razões: a primeira, seria a consideração de que certas atividades do homem criam um risco especial para os outros, e a segunda, a consideração de que o exercício de determinados direitos deve implicar a obrigação de ressarcir os danos que origina”.

Assim, há como conceber que o intermediário, que trava relações jurídicas com os entregadores, esteja isento de qualquer responsabilidade por qualquer evento danoso ocorrido. Ele deverá responder sim, quando a atividade desenvolvida se der no seu interesse, justamente porque com os bônus devem vir os ônus.

Há de se ressaltar que, como a atividade de entregador embute riscos evidentes ao direito do trabalhador, a responsabilidade é objetiva, como plasma a tese do risco-proveito. Assim, muito embora não haja vínculo empregatício com os aplicativos de entregas, os entregadores não podem ficar desamparados, uma vez que a própria Constituição Federal consagra ao trabalhador o direito de ser protegido por eventuais acidentes sofridos durante a atividade laboral:

 “Art. 7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: (…) XXVIII - seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa”.

Registre-se que o dispositivo abrange o direito de indenização a todos os trabalhadores, inclusive aos trabalhadores autônomos que não possuem vínculo empregatício. Assim, ainda que sem vínculo celetista, o entregador traz lucros enormes ao aplicativo, à similitude do que ocorre com um empregado, de modo que não é razoável que a natureza do vínculo entre as partes determine a extensão da responsabilidade da empresa, sob pena de tornar letra morta a proteção da Constituição Federal.

É imperioso ressaltar que a interpretação acima promove a igualdade em sentido material: o entregador empregado usufrui de proteção legal contra os acidentes de trabalho. Sendo assim, o entregador sem vínculo empregatício, mas com outro negócio jurídico-base, que dá muito lucro para a outra parte, deve ser protegido.

No tocante à aplicação da teoria do risco, diversos tribunais do Brasil já possuem decisões no sentido de considerar a responsabilidade civil objetiva no dever de reparação em caso de acidentes sofridos no durante o desempenho das funções laborais:

RECURSO DE REVISTA. DANOS MORAIS E MATERIAIS. ACIDENTE DE TRABALHO. ATIVIDADE DE RISCO. MOTOBOY. RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO EMPREGADOR. CULPA EXCLUSIVA DE TERCEIRO. NEXO CAUSAL. A norma constitucional (artigo 7º, XXVIII) prevê desde logo a responsabilidade subjetiva, obrigação de o empregador indenizar o dano que causar mediante comprovação de dolo ou culpa, e o Código Civil (artigo 927, parágrafo único), nos casos de atividade de risco ou quando houver expressa previsão legal, de forma excepcional prevê a responsabilidade objetiva do autor do dano, situação em que não se faz necessária tal comprovação. A norma constitucional trata de garantia mínima do trabalhador e não exclui a regra do parágrafo único do art. 927 do Código Civil, o qual, por sua vez, atribui uma responsabilidade civil mais ampla ao empregador, perfeitamente aplicável de forma supletiva no Direito do Trabalho, haja vista o princípio da norma mais favorável, consagrado no caput do art. 7º da Constituição Federal. Quanto ao nexo causal, cumpre ressaltar que, tratando-se de atividade de risco, o fato de terceiro capaz de rompê-lo é apenas aquele completamente alheio ao risco inerente à atividade desenvolvida. Ora, o risco a que está ordinariamente submetido o trabalhador que, no desempenho de suas funções, precisa deslocar-se constantemente no trânsito com o uso de motocicleta é justamente o de ser abalroado por outro veículo. Vale dizer, o acidente de trânsito decorrente de culpa exclusiva de outro motorista integra o próprio conceito do risco da atividade desenvolvida pelo reclamante. Impende salientar, ainda, que o risco da atividade econômica deve ser suportado pelo empregador, e não pelo empregado (art. 2º da CLT). Assim, não rompe o nexo causal o fato de a culpa do acidente que vitimou o reclamante ter sido atribuída a terceiro, condutor de outro automóvel envolvido no acidente. Presentes o dano experimentado pelo reclamante e o nexo de causalidade, impõe-se a condenação das reclamadas em danos morais e materiais. Recurso de revista conhecido e provido. REVERSÃO DA JUSTA CAUSA. O Tribunal Regional, com base na análise da prova testemunhal, manteve a despedida do autor por justa causa, por concluir que ele deixou transcorrer o prazo de trinta dias sem comparecer para trabalhar, configurando o alegado abandono de emprego. A alteração dessas premissas, por se revestirem de conteúdo fático, demandaria o reexame de fatos e provas, vedado pela Súmula 126 do TST. Recurso de revista não conhecido.

(TST/RR: 13235720125050195, relator: Augusto César Leite de Carvalho, Data de Julgamento: 26/6/19, 6ª turma, Data de Publicação: DEJT 28/6/19)

RECURSO ORDINÁRIO DAS PARTES. ACIDENTE DE TRABALHO TÍPICO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. ENTREGADOR DE MEDICAMENTOS. ATIVIDADE EXTERNA. USO DE MOTOCICLETA. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS, MATERIAIS E ESTÉTICOS. Incontroverso o acidente de trânsito sofrido pelo reclamante no exercício de suas funções, que consistiam em realizar as entregas de medicamentos vendidos pela reclamada, com uso de motocicleta, função esta popularmente conhecida como "motoboy". A atividade exercida pelo reclamante é, sem sombra de dúvidas, uma atividade de risco, hábil a ensejar a responsabilidade objetiva da reclamada com fulcro nos artigos 2º da CLT e 927, parágrafo único do art. 927 do CC. Tanto é verdade o exercício da atividade de risco que, em 18/06/14, a Lei 12.997 acrescentou o § 4º ao artigo 193 da CLT e considerou perigosas as atividades de trabalho em motocicleta. FATO DE TERCEIRO INEXISTENTE. RESPONSABILIDADE DA RÉ CONFIGURADA. É indene de dúvidas que o acidente não foi causado pelo reclamante e tampouco pela reclamada, mas sim por terceiro, motociclista que dirigia na contramão, o que se extrai do teor da petição inicial e dos documentos juntados pelo reclamante, mormente o laudo da polícia civil de fls. 48/51, que concluiu que o acidente foi causado pelo condutor da motocicleta V1 de placa NXR/JXH-5165 (o condutor era terceiro estranho a lide). Não há qualquer discussão ou controvérsia a respeito deste fato. Contudo, o fato de terceiro capaz de romper o nexo de causalidade e afastar a responsabilidade da reclamada seria apenas aquele completamente estranho ao risco inerente à mencionada atividade, a teor da exceção prevista no art. 927 do Código Civil, o que obviamente não é a hipótese, na medida em que o reclamante sofreu acidente de trânsito no desempenho de suas funções de entregador de medicamentos, no momento em que dirigia a motocicleta. Assim, deve a reclamada responder pelos danos sofridos pelo reclamante. QUANTUM INDENIZATÓRIO. Em relação ao quantum das indenizações por danos morais e materiais, resguardando o dever do magistrado de evitar o enriquecimento indevido, e ponderando critérios de razoabilidade e proporcionalidade na fixação dos valores, a fim de atender à tríplice função da responsabilidade civil: reparação, sanção e caráter pedagógico, reputa-se razoável os valores fixados pelo Juízo de Origem, de R$ 15.000,00 cada. Contudo, os valores fixados a titulo de indenização por danos estéticos merecem a readequação pelo Juízo ad quem, consoante solicitado pela reclamada, uma vez que arbitrados de forma excessiva, devendo ser reduzido o valor da indenização para R$ 5.000,00. Recurso da reclamada conhecido e parcialmente provido. Recurso do reclamante conhecido e não provido.

(TRT-11 - AIRR: 00013299520145110011, relator: RUTH BARBOSA SAMPAIO, Data de Julgamento: 16/11/15, 2ª turma, Data de Publicação: 18/11/15)

RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO ANTERIORMENTE À VIGÊNCIA DA LEI Nº 13.015/2014. ACIDENTE DE TRABALHO. RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO EMPREGADOR. TEORIA DO RISCO PROFISSIONAL. MOTOBOY. COLISÃO DE TRÂNSITO. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL E ESTÉTICO . A teoria do risco profissional preconiza que o dever de indenizar tem lugar sempre que o fato prejudicial ao empregado é decorrência da atividade ou profissão da vítima, como se deu na hipótese vertente. As funções de motoboy, com deslocamento constante por motocicleta em trânsito urbano, acentuam a possibilidade de colisão ou abalroamento, configurando risco inerente à atividade profissional. Assim, restando incontroverso o acidente de trabalho sofrido pelo reclamante e comprovado o nexo de causalidade com o trabalho realizado, fica a empregadora obrigada a reparar os danos moral e estético decorrentes do infortúnio, nos termos do art. 927, parágrafo único, do Código Civil, que normatiza a responsabilidade objetiva do empregador. Precedentes. Recurso de revista de que não se conhece.

(TST/RR: 65733520115120026, relator: Walmir Oliveira da Costa, Data de Julgamento: 25/9/19, 1ª turma, Data de Publicação: DEJT 27/9/19)

Portanto, notadamente os aplicativos de entrega possuem a responsabilidade de indenizar os entregadores em casos de acidentes, quando estes ocorrem no interesse do lucro dos aplicativos de entrega, devendo incidir a teoria do risco.

3. Considerações finais

As relações de trabalho têm mudado cada vez mais com o passar dos dias. Nesse contexto, os aplicativos de entrega utilizam a tecnologia para oferecer uma ilusória oportunidade de emprego para milhares de trabalhadores desempregados.

A exploração da mão de obra dos entregadores é feita de forma precária, sem garantias e sem regulamentação. Nesse sentido, os trabalhadores ficam completamente desamparados em casos de acidentes e prejuízos sofridos durante a atividade laboral, exigindo uma resposta do ordenamento jurídico para equilibrar a relação das partes.

O fato de não existir entendimento pacífico no Direito brasileiro acerca do vínculo empregatício entre entregadores e aplicativos de entrega não pode servir de proteção para as empresas, eximindo-as de qualquer responsabilidade.

Por essa razão, deve ser aplicada a teoria do risco-proveito, reconhecendo a responsabilidade civil objetiva, uma vez que é nítido o risco produzido aos entregadores pelo desenvolvimento da atividade econômica dos aplicativos de entrega.

Ser trabalhador é ocupar um espaço no local de produção. Nesse sentido, a força motriz que move o os aplicativos de entrega são os entregadores, que se arriscam diariamente no trânsito das cidades e levam lucros para os aplicativos de entregas. Assim, responsabilizar tais empresas em reparar eventuais danos sofridos pelos entregadores é fazer cumprir os direitos consagrados no ordenamento jurídico brasileiro e na Constituição Federal, protegendo os direitos individuais e os direitos da personalidade, como a integridade física e psíquica.

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BRASIL. Código Civil de 2020. Disponível clicando aqui. Acesso em: 10 set. 2020.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível clicando aqui. Acesso em: 10 set. 2020.

FACCHINI NETO, Eugênio. Da Responsabilidade Civil no Novo Código. Brasília, 1 mar. 2010. Disponível em: https://www.dpd.ufv.br/wp-content/uploads/Bibiografia-DIR-313.pdf. Acesso em: 10 set. 2020.

GOMES, Orlando. Obrigações, Rio de Janeiro: Forense, 2000.

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*Alexandre Augusto Rocha Soares é procurador do Estado de Sergipe. Sócio do escritório Costa e Rocha Soares Advogados. Mestrando em Direito Empresarial. Especialista em Direito Processual Civil. Graduado em Direito pela PUC/SP e em jornalismo pela USP.

*Letícia Campos de Oliveira é graduanda do curso de Direito (Universidade Tiradentes - UNIT). Colaboradora no escritório Costa e Rocha Soares Advogados. Membro da Comissão de Acadêmicos de Direito da OAB/SE.

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