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Decisão do STF não autoriza os municípios e o Distrito Federal a cobrarem ISS sobre qualquer tipo de atividade

"É taxativa a lista de serviços sujeitos ao ISS a que se refere o art. 156, III, da Constituição Federal, admitindo-se, contudo, a incidência do tributo sobre as atividades inerentes aos serviços elencados em lei em razão da interpretação extensiva".

14/9/2020

No julgamento do Recurso Extraordinário 784.439/DF, realizado em junho de 2020, o STF fixou a seguinte tese sobre a interpretação da lista de atividades prevista em lei complementar de caráter nacional para definir os serviços de qualquer natureza tributáveis por meio do Imposto sobre Serviços (ISS): “É taxativa a lista de serviços sujeitos ao ISS a que se refere o art. 156, III, da Constituição Federal, admitindo-se, contudo, a incidência do tributo sobre as atividades inerentes aos serviços elencados em lei em razão da interpretação extensiva" (tema 296).

A pergunta que surge a partir de então é se essa decisão autoriza os municípios e o Distrito Federal a cobrarem esse imposto sobre qualquer atividade que tenha as características de serviços, ainda que não esteja prevista na lista anexa à LC 116/03. Para responde-la, é necessário relembrar o motivo pelo qual há a prescrição dessa lista em lei complementar e qual é a sua relação com a delimitação da competência tributária daqueles entes federados em relação a esse imposto.

O constituinte originário atribuiu a esses entes federados, por meio do art. 156, inciso III da CF, a competência para instituir imposto sobre “serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar”. Observe-se que foram excluídos das materialidades tributáveis pelo ISS os serviços cuja tributação compete aos Estados e ao Distrito Federal por meio da cobrança do ICMS, quais sejam: os serviços de transporte interestadual, de transporte intermunicipal e de comunicação. E, ainda, o enunciado daquele inciso III prescreveu que a competência dos municípios e do Distrito Federal para instituir e cobrar o ISS ficaria restrita apenas a serviços de qualquer natureza que estivessem definidos em lei complementar.

Trata-se de uma limitação imposta pelo próprio constituinte originário que não fere a autonomia daqueles entes federados, pois apenas estabelece quais os limites materiais do campo que eles terão para atuar na tributação da riqueza manifestada por aqueles que prestarem serviços em seus respectivos territórios. Além disso, essa limitação está em harmonia com uma das funções que o constituinte atribuiu à lei complementar nacional em matéria tributária, qual seja, a de definir os “fatos geradores” dos impostos previstos na Constituição Federal, conforme prescrito em seu art. 146, inciso III, alínea “a”.

Ao exercer essa função no processo de enunciação da LC 116, de 31 de julho de 2003, o legislador nacional optou por utilizar uma definição denotativa de quais fatos jurídicos devem ser considerados como “serviços de qualquer natureza” para fins de incidência do ISS. Essa definição foi feita por meio de uma lista exaustiva de fatos jurídicos, separados em 199 itens e agrupados em 40 grupos de atividades de natureza semelhante. Em 29 de dezembro de 2016, essa lista foi atualizada com a publicação da Lei Complementar n.º 157.

A opção por essa definição denotativa deu origem ao questionamento sobre os limites da interpretação dos itens previstos naquela lista, ou seja, se apenas os fatos jurídicos ali previstos expressamente poderiam ser atingidos pela cobrança do ISS (ou seja, uma definição taxativa) ou se esses fatos eram apenas exemplos daqueles que poderiam ser tributados por meio desse imposto, não excluindo a autonomia daqueles entes federados para cobrar o ISS sobre outros serviços de qualquer natureza que não constassem naquela lista.

O STF já havia se manifestado várias vezes sobre o assunto, em julgamentos nos quais foram analisadas listas de serviços previstas em legislações anteriores, que exerciam o mesmo papel da atual LC 116/03. Nessas manifestações, o posicionamento do STF era no sentido de ser taxativa aquela lista de atividades, sendo possível uma interpretação extensiva apenas em relação aos itens que previam expressões “congêneres” junto aos fatos jurídicos neles descritos1. Nesse sentido também é a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, conforme veiculado em sua súmula 4242. De acordo com essa interpretação, aqueles serviços que, apesar de terem nomenclaturas diferentes, possuem a mesma natureza dos serviços expressamente previstos em um dos itens da lista veiculada pela legislação nacional que tenham as expressões “congêneres” ou “de qualquer natureza” também poderiam ser tributados por meio do ISS, haja vista que o próprio legislador complementar previu a possibilidade de haver atividades similares àquelas descritas por ele e, por isso, incluiu aquelas expressões nesses enunciados para que esses fatos, que seriam verdadeiras espécies do gênero contido expressamente no item da lista, também fossem atingidos pela mesma tributação.

Contudo, a nova tese fixada pelo STF em sede de repercussão geral no julgamento do RE 784.439/DF parece ter adotado nova interpretação ao definir que, apesar de ser taxativa a lista de serviços que atende à prescrição do art. 156, inciso III do texto constitucional para definir o que são “serviços de qualquer natureza”, o ISS também pode ser cobrado sobre as “atividades inerentes aos serviços elencados em lei em razão da interpretação extensiva”. É preciso, então, compreender o que seriam essas “atividades inerentes”, que também poderiam ser tributadas por meio do ISS, mesmo não estando previstas expressamente na lei complementar nacional.

De acordo com o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa3, “inerente” é algo “que existe como um constitutivo ou uma característica essencial de alguém ou de algo”, alguma coisa “que só existe em relação a um sujeito, a uma maneira de ser que é intrínseca a este”, sendo sinônimo de “dependente, específico, inseparável, ligado, peculiar, próprio”. Ou seja, as atividades inerentes seriam aquelas que fazem parte da execução de uma atividade já prevista na lei complementar como prestação de serviço tributável por meio do ISS e que não são executadas de forma independente. Seria algo muito próximo ao que a doutrina já denomina de “atividade-meio”, que são as atividades executadas como “etapas” para a execução da “atividade-fim” pelo prestador do serviço.

Consideremos as lições do Professor Aires F. Barreto sobre esse tema:

“Em toda e qualquer atividade há ‘ações-meio’ (pseudosserviços) cujo custo é direta ou indiretamente agregado ao preço dos serviços. Mas isso não autoriza possam ser elas tomadas isoladamente, como se cada uma fosse uma atividade autônoma, independente, dissociada daquela que constitui a atividade-fim (como seria, por exemplo, se se pretendesse que o advogado presta serviço de datilografia, mesmo sabendo que o custo dessa atividade-meio, separada ou embutidamente, é sempre cobrado do tomador dos serviços, por integrar seu preço). (...)

É preciso discernir, concretamente, essas situações: (a) as atividades desenvolvidas como requisito ou condição para a produção de outra utilidade qualquer são sempre ações-meio; (b) essas mesmas ações ou atividades, todavia, consistirão no fim ou objeto, quando, em si mesmas, isoladamente consideradas, refletirem, elas próprias, a utilidade colocada à disposição de outrem”4.

Sendo assim, se as “atividades inerentes” àquelas elencadas na lista anexa à LC 116/03 a que se refere o STF são, na verdade, as atividades-meio executadas pelo prestador para a concretização da atividade-fim para o qual foi contratado, não há que se falar em qualquer ampliação do campo de materialidades que podem ser tributadas pelos municípios e pelo Distrito Federal por meio do ISS a partir dessa decisão do STF. Assim se afirma, pois as atividades-meio não são contratadas de forma independente, não havendo a definição contratual de um “preço de serviço” que remunere a execução de cada uma delas de forma separada do preço estabelecido para a remuneração da atividade-fim contratada pelo tomador e executada pelo prestador.

Ainda que essa tese indique que a cobrança de ISS sobre a execução dessas “atividades inerentes” seria possível em razão da aplicação de uma “interpretação extensiva”5 em relação às atividades expressamente elencadas na lei complementar, a aplicação dessa técnica não parece ser capaz de justificar o alcance dessas atividades por esse imposto. A interpretação extensiva das atividades previstas em cada item da lista de serviços permitiria, no máximo, o alcance de fatos jurídicos que tivessem a mesma natureza, o mesmo gênero daquelas atividades, garantindo assim uma tributação isonômica de fatos jurídicos que tenham a mesma natureza e evitando que algum deles deixasse de ser tributado pelo simples fato de terem uma nomenclatura diferente daqueles elencados expressamente na legislação.

Mas esses fatos jurídicos a serem alcançados pela interpretação extensiva seriam aqueles que constituem prestação de serviço autônoma, contratados como atividade fim e executados por um prestador sem que outra das atividades elencadas no mesmo item da lista de serviços também precise ser executada para o cumprimento do objeto contratado pelo tomador. Não é o caso das atividades inerentes, que são apenas meios necessários para a execução completa da atividade principal a que corresponde o serviço prestado pelo contribuinte e que, como tais, não podem ser considerados de forma independente para fins de incidência do ISS.

Lembrando novamente as lições do Professor Aires F. Barreto:

“Não se pode, portanto, tomar as partes pelo todo. Tanto mais tratando-se de serviços tributados pelo ISS, cuja hipótese de incidência refere, expressamente, gêneros de atividades econômicas constitutivas de serviços, perfeitamente discriminados em diferentes itens normativamente desdobrados. Deveras, as leis municipais, ao descreverem os serviços tributados pelo imposto, discriminam-nos, perfeitamente, em itens específicos. (...) impedem que atividades-meio sejam tomadas em conta, em lugar do serviço integralmente considerado”.6

Portanto, ainda que a tese fixada pelo STF no tema 296 de repercussão geral possa provocar, num primeiro momento, a interpretação de que os Municípios e o Distrito Federal estariam autorizados a cobrar ISS sobre qualquer atividade que tenha as características de serviços, mesmo sem que esteja prevista na lista anexa à LC 116/03, uma leitura mais atenta dessa tese demonstra que há, no mínimo, uma incerteza sobre qual o sentido que o STF quis atribuir à expressão “atividades inerentes” ao tentar definir os limites do campo de materialidades tributáveis pelo ISS. Essa incerteza certamente levará a uma intensa judicialização de casos em que esses entes federados exigirão o pagamento desse imposto sobre fatos jurídicos que não estão previstos na lei complementar nacional, nem possuem a mesma natureza dos fatos que nela estão expressamente previstos. Ou seja, ao invés de garantir a esperada segurança jurídica7 aos contribuintes, essa recente decisão acaba por ampliar as incertezas daqueles que exercem alguma atividade econômica que tenha traços de uma obrigação de fazer sobre a tributação que pode ser imputada sobre essa atividades.

Nesse contexto, a única afirmação que podemos fazer é que as pessoas físicas e jurídicas que exercem atividades econômicas no território de algum Município ou do Distrito Federal continuam protegidas pelo princípio constitucional da legalidade tributária, previsto no art. 150, inciso I da Constituição Federal, que impede veementemente a cobrança de qualquer tributo que não esteja estabelecido em lei. A aplicação desse princípio impede que aquelas pessoas sejam cobradas pelo pagamento do ISS sobre a execução de um fato jurídico que não esteja expressamente previsto na lei complementar nacional como uma prestação de serviço tributável por meio do ISS ou que não tenha a mesma natureza de uma atividade expressamente prevista como tal.

Portanto, ousando responder à questão que deu início a este artigo, a tese fixada pelo STF no julgamento do RE 784.439/DF não autoriza os Municípios e o Distrito Federal a cobrarem o ISS sobre qualquer atividade que tenha as características de serviços se essa atividade não estiver prevista na lista anexa à LC 116/03 ou se ela não tiver a mesma natureza de outra atividade já prevista naquela lista e não for executada como atividade fim pelo prestador de serviços que estaria sujeito à cobrança daquele imposto em razão da necessária observância dos princípios constitucionais da legalidade tributária e da segurança jurídica.

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1- Desde a década de 70 há decisões do STF nesse sentido, como, por exemplo, a do RE 75.952/SP, em cuja ementa consta: “(...) II. Aplicação do Decreto-Lei n. 406/68, com a redação que lhe atribuiu o Decreto-Lei n. 834/69, art.3, VIII. III. A lista a que se referem o art.24, II da Constituição, e 8 do Decreto-Lei n. 83/69 é taxativa, embora cada item da relação comporte interpretação ampla e analógica (...)”. (STF, RE 75.952/SP, Segunda Turma, Rel. Min. Thompson Flores, j. 29/10/1973, DJ 02/01/1974).

2- “É legítima a incidência de ISS sobre os serviços bancários congêneres da lista anexa ao DL n. 406/1968 e à LC n. 56/1987”.

3- HOUAISS, Antonio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Antônio Houaiss e Mauro de Salles Villar, elaborado pelo Instituto Antônio Houaiss de Lexicografia e Banco de Dados da Língua Portuguesa S/C Ltdas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009, p. 1077.

4- BARRETO, Aires F. Curso de Direito Tributário Municipal. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 375, grifo do autor.

5- “(...) a interpretação extensiva sempre acompanha a ideia de um texto normativo que possuiria um sentido literal menor do que deveria ter; ou seja, haveria um descompasso entre a expressividade da letra e o sentido que se pretende” (ANDRADE, José Maria Arruda de. Interpretação da Norma Tributária. São Paulo: MP editora, 2006, p. 234).

6- BARRETO, Aires F. Curso de Direito Tributário Municipal. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 377-378.

7- O Professor Paulo de Barros Carvalho explica que o princípio da segurança jurídica é “dirigido à implantação de um valor específico, qual seja, o de coordenar o fluxo das interações inter-humanas, no sentido de propagar no seio da comunidade social o sentimento de previsibilidade quanto aos efeitos jurídicos da regulação da conduta. Tal sentimento tranquiliza os cidadãos, abrindo espaço para o planejamento de ações futuras, cuja disciplina jurídica conhecem, confiantes que estão no modo pelo qual a aplicação das normas do direito se realiza” (CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 26 ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 162).

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*Francielli Honorato Alves é mestre em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET), Licenciada em Letras pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) e Graduanda em Ciências Contábeis pela Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis, Atuarias e Financeiras (FIPECAFI). É advogada e professora do Curso de Especialização em Direito Tributário do IBET.

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