Migalhas de Peso

Lei 14.016 de 2020 e a doação de alimentos por parte dos restaurantes e afins

Este artigo objetiva apresentar a Lei 14.016, visando a preocupação com os alimentos excedentes de alguns estabelecimentos que geram desperdício e podem servir como doação aos mais vulneráveis, tendo em vista o combate à fome.

10/9/2020

A situação de extrema pobreza e fome trata-se de um problema mundial. Adentrado em âmbito nacional, em nosso país, a proporção engloba milhões de brasileiros. Cidadãos que vivem em condições de miserabilidade e que não têm de onde tirar seu sustento e de sua família, vivendo, muitas vezes, dependentes de ajuda governamental ou de doações.

É dever do governo garantir o direito à alimentação adequada de sua população. No entanto, havia algumas regulamentações que direcionavam nesse sentido, como o art. XXV da Declaração Universal dos Direitos Humanos, após reconhecimento do direito pela Comissão de Direitos Humanos da ONU, em 1993. A Lei 11.346/2006, regulamentada pelo Dec. n. 7.272/2010 prevê em seu art. 2º que

 Art. 2º A alimentação adequada é direito fundamental do ser humano, inerente à dignidade da pessoa humana e indispensável à realização dos direitos consagrados na Constituição Federal, devendo o poder público adotar as políticas e ações que se façam necessárias para promover e garantir a segurança alimentar e nutricional da população.

A lei acima mencionada criou o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN. Posteriormente, incluiu-se a EC 64/10, embora um pouco tardia, introduzia o direito à alimentação como direito social (LENZA, 2019, p. 1321).

Embora as regulamentações existentes garantindo o direito à alimentação à população, algumas pessoas questionavam o motivo de bares, restaurantes, mercados e etc. não contribuírem e doarem a comida que sobrava em seus estabelecimentos, já que o desperdício era grande e esse ato poderia contribuir com a diminuição da fome dos brasileiros em vez de, simplesmente, jogar tanta comida no lixo.

Ocorre que muitos desses estabelecimentos manifestavam a vontade em doar os alimentos excedentes, contudo, não havia uma legalização federal que os protegesse de atos prejudiciais que pudessem vir acender dessa atitude. O que poderia, inclusive, acarretar em sérios problemas, incluindo a esfera penal, para esses empresários, apesar de ter como pontos iniciais a caridade e a vontade de ajudar a matar a fome daqueles que necessitam.

Até pouco tempo atrás, alguns estabelecimentos preferiam não se arriscar devida a falta de segurança jurídica que abrangia esse tema, e receosos da responsabilização que lhes poderia incidir gerando possíveis complicações aos donos dos estabelecimentos, uma vez que não havia uma lei específica que regulamentasse essa prática. As lacunas na regulamentação traziam incertezas e insegurança jurídica, uma vez que, na falta de uma regulamentação federal, ficava a cargo de alguns entes federativos criar normas regionais.

Não é que tal ato fosse proibido de ser realizado, mas é que, na falta de uma legislação específica, a responsabilização por qualquer problema de saúde causado pelo alimento fornecido a alguém seria do estabelecimento, equivalendo-se a uma relação consumerista.

A determinação legal que existia responsabilizava o estabelecimento doador por qualquer problema que viesse ocorrer oriundo da alimentação doada aquele que a consumiu. Essa orientação inibia o ato de solidariedade por responsabilizar os empresários por qualquer óbice que o alimento causasse à saúde de quem o ingeriu.

Pelos motivos acima mencionados, os estabelecimentos não se sentiam seguros e optavam por não se comprometer, preferindo, muitas vezes, descartar um alimento que não estaria impróprio para consumo e que poderia ser doado, em vez de contribuir para o combate à fome.

Diante das adversidades apresentadas, foi publicada a Lei 14.016 de 2020 que põe fim ao receio que se tinha em realizar as doações de comida às pessoas necessitadas. A lei dispõe sobre o combate ao desperdício de alimentos e a doação de excedentes de alimentos para o consumo humano. Esta lei regulamenta e fornece o amparo legal que antes faltava aos estabelecimentos.

Em seu art. 1º, estabelece quais são os estabelecimentos que poderão realizar as doações e determina critérios para que a ação aconteça.

Art. 1º Os estabelecimentos dedicados à produção e ao fornecimento de alimentos, incluídos alimentos in natura, produtos industrializados e refeições prontas para o consumo, ficam autorizados a doar os excedentes não comercializados e ainda próprios para o consumo humano que atendam aos seguintes critérios:

I – estejam dentro do prazo de validade e nas condições de conservação especificadas pelo fabricante, quando aplicáveis;

II – não tenham comprometidas sua integridade e a segurança sanitária, mesmo que haja danos à sua embalagem;

III – tenham mantidas suas propriedades nutricionais e a segurança sanitária, ainda que tenham sofrido dano parcial ou apresentem aspecto comercialmente indesejável.

§ 1º O disposto no caput deste artigo abrange empresas, hospitais, supermercados, cooperativas, restaurantes, lanchonetes e todos os demais estabelecimentos que forneçam alimentos preparados prontos para o consumo de trabalhadores, de empregados, de colaboradores, de parceiros, de pacientes e de clientes em geral.

§ 2º A doação de que trata o caput deste artigo poderá ser feita diretamente, em colaboração com o poder público, ou por meio de bancos de alimentos, de outras entidades beneficentes de assistência social certificadas na forma da lei ou de entidades religiosas.

§ 3º A doação de que trata o caput deste artigo será realizada de modo gratuito, sem a incidência de qualquer encargo que a torne onerosa.

Após indicar quais são os estabelecimentos que poderão realizar a doação e demonstrar sob quais condições os alimentos deverão ser fornecidos, a norma regulamentadora apresenta, em seu art. 2º, quem são os beneficiários do ato, ou seja, a quem se destina a doação de que trata a lei.

Art. 2º Os beneficiários da doação autorizada por esta Lei serão pessoas, famílias ou grupos em situação de vulnerabilidade ou de risco alimentar ou nutricional.

Parágrafo único. A doação a que se refere esta Lei em nenhuma hipótese configurará relação de consumo.

A lei ainda garante que essa ação solidária não caracterizará como relação de consumo, sendo assim, protege os donos dos estabelecimentos, tendo em vista que não configurará a responsabilidade objetiva que abarca o vínculo consumerista, conforme previsto no art. 14 do Código de Defesa do Consumidor “O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos”. Sendo assim, os estabelecimentos deixam de se responsabilizar pelos danos em que não incorreram com dolo, incidindo sobre eles apenas os casos em que agiram de maneira intencional. Assim explica os arts. 3º e 4º:

Art. 3º O doador e o intermediário somente responderão nas esferas civil e administrativa por danos causados pelos alimentos doados se agirem com dolo.

§ 1º A responsabilidade do doador encerra-se no momento da primeira entrega do alimento ao intermediário ou, no caso de doação direta, ao beneficiário final.

§ 2º A responsabilidade do intermediário encerra-se no momento da primeira entrega do alimento ao beneficiário final.

§ 3º Entende-se por primeira entrega o primeiro desfazimento do objeto doado pelo doador ao intermediário ou ao beneficiário final, ou pelo intermediário ao beneficiário final.

Art. 4º Doadores e eventuais intermediários serão responsabilizados na esfera penal somente se comprovado, no momento da primeira entrega, ainda que esta não seja feita ao consumidor final, o dolo específico de causar danos à saúde de outrem.

Dispõe os parágrafos acima que a responsabilidade exigida será a subjetiva. Os doadores e intermediários somente serão responsabilizados uma vez que comprovado o dolo em causar danos à saúde de outrem. No entanto, a responsabilização englobará as esferas civil, administrativa e penal.

Em vista disso, nota-se a fundamental relevância alcançada pela vigência da nova lei, uma vez que traz um conforto aqueles que sempre manifestavam o desejo de doar os alimentos que sobravam de suas produções e não se sentiam amparados, visto que poderiam se prejudicar de forma demasiada pelo fato de quererem contribuir com aqueles que não têm de onde tirar seu sustento, impedidos, principalmente, de ter uma devida alimentação.

Diante de todo o exposto quanto a dificuldade que se tinha em estabelecimentos realizarem a doação de alimentos excedentes, entende-se que a publicação da lei acima apresentada é de extrema relevância para a sociedade brasileira, uma vez que regulariza o ato, contribuindo e incentivando a prática do combate à fome.

______________

BRASIL. Emenda Constitucional nº 64, de 4 de fevereiro de 2010.

Altera o art. 6º da Constituição Federal, para introduzir a alimentação como direito social. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc64.htm. Acesso em 03 jul 2020. 

BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 30 jun 2020. 

BRASIL. Lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006. Cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN com vistas em assegurar o direito humano à alimentação adequada e dá outras providências. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11346.htm. Acesso em: 03 jul 2020. 

BRASIL. Lei nº 14.016, de 23 de junho de 2020. Dispõe sobre o combate ao desperdício de alimentos e a doação de excedentes de alimentos para o consumo humano. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 30 jun 2020. 

LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 23 ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2019. 

MDC. Lei de doação: saiba como reduzir o desperdício de alimentos no seu restaurante. Blog. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 02 jul 2020. 

PINHATA, Thais. Relatório da ONU indica que fome no Brasil, que antes diminuía, voltou a crescer. Revista Justificando.  Disponível em: clique aqui. Acesso em: 30 jun 2020. 

ROMANO, Rogério Tadeu. A responsabilidade objetiva e o Código de Defesa do Consumidor. Revista Jus Navegandi. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 30 jun 2020. 

______________

*Tatiane Cabreira Carvalho é advogada. Graduada em Direito pelo Centro Universitário Tiradentes (UNIT); Graduada em Letras pela Universidade Estácio de Sá (UNESA); Especialista em Estudos Linguísticos e Literários pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). 

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