Em tempos de massivo uso das redes sociais é incontestável que ciberespaços desempenham funções cada vez mais essenciais ao desenvolvimento humano1. A internet como ambiente plural e democrático tem possibilitado aos indivíduos a exploração de suas potencialidades, capacidades e autodeterminação. No entanto, a instantaneidade das relações virtuais humanas traz para os mesmos indivíduos e a sociedade novas formas de esgotamento e exaustão.
O fenômeno identificado por Byung-Chul Han como “sociedade do cansaço” também pode ser observado na alta exposição dos indivíduos ao mundo digital através do seu adoecimento neural2. O cenário de normalização de exageros nas comunicações, informações e desempenhos humanos é permeado por um excesso de positividade, vista como uma imposição do século XXI. Assim, constata-se que “a violência não provém apenas da negatividade, mas também da positividade, não apenas do outro ou do estranho, mas também do igual”3.
A compilação de tais excessos positivos em meios digitais dá azo à construção de um ambiente cibernético marcado por uma enxurrada de informações, muitas vezes desinformativas4. Em meio a estas, observa-se um fenômeno, alvo de inúmeras controvérsias, que consiste na propagação de exposições de condutas reprováveis de pessoas, normalmente famosas, de modo a denunciá-las, visando anular as suas reputações. Trata-se da cultura do cancelamento5.
Embora recente, o fenômeno não é propriamente uma novidade e já apresenta diversos estudos acerca de suas repercussões6. Não obstante a ampla variação de casos concretos, é possível identificar três elementos nevrálgicos à sua deflagração: primeiramente, tem-se uma pessoa notadamente famosa ou amplamente reconhecida perante a sociedade; em seguida, em razão de sua influência, a pessoa cria expectativas de se tornar um exemplo a ser seguido; por fim, por algum deslize, a pessoa comete um erro ou tem uma conduta socialmente condenável, e mediante ampla exposição, torna-se passível de ser cancelada.
Fruto da intensa polarização dos tempos atuais, o cancelamento remete à tática de boicotes de consumidores que retiram o apoio a marcas e corporações consideradas antiéticas7. Alguns autores entendem que o boicote referente à cultura do cancelamento, no entanto, é falho na medida em que o indivíduo supostamente cancelado frequentemente permanece lucrando, trabalhando e sendo visado, em razão justamente da alta repercussão do caso8. É a máxima virtual do “falem bem ou mal, mas falem de mim”.
Avaliar esse movimento é tarefa relativamente complexa, em razão das várias dimensões envolvidas no fenômeno. Ainda que seja possível identificar casos isolados anteriores9, a ideia de “cancelar” uma pessoa ganhou força a partir do movimento #MeToo. Poderosos homens da indústria hollywoodiana foram acusados de assédio sexual10, cujo efeito cascata encorajou vítimas, em sua maioria mulheres, a denunciarem casos de abuso, silenciados por anos, no afamado ambiente cinematográfico estadunidense.
Devido à crescente democratização do acesso à internet, pessoas e grupos até então desprovidos de reconhecimento social encontram um meio com ampla visibilidade para denunciar condutas não aceitáveis na sociedade atual. No entanto, em razão da viralização, o cancelamento facilmente ultrapassa qualquer viés expositivo, transformando-se em revide de uma situação de injustiça social, acumulada individualmente por uma massa.
Neste ponto, é necessário ater-se a dois panoramas possíveis relacionados aos desdobramentos desse fenômeno. O primeiro deles refere-se à criação de uma condenação moral da pessoa cancelada. Aqui se constata uma involução tecnológica, no sentido de que se faz uso de uma ferramenta moderna para veicular uma prática social muito antiga de julgamento precoce do comportamento alheio. Com o agravante do poder ofensivo exponencial que a internet proporciona, a inexistência de um “devido processo virtual” frequentemente resulta em injustiças desproporcionais às pessoas canceladas11.
O segundo panorama acontece no desencadeamento de um comportamento repressivo e intolerante, comum a qualquer pré-julgamento, que desconsidera ou mostra-se completamente alheio à compreensão da falibilidade humana. Assim, o conceito de “sociedade do cansaço” ajuda a refletir sobre esta nova realidade delineada, cujos efeitos assemelham-se a um novo tipo de coação moral, estabelecida de forma generalizada.
O resultado pode ser comparado à teoria da “espiral do silêncio”, desenvolvida por Elisabeth Noelle-Neumann12. De acordo com sua análise acerca das pesquisas eleitorais na Alemanha em 1974, constatou-se que por medo de isolamento social ou perda de status, as pessoas hesitam em expressar opiniões autênticas contrárias às normas sociais predominantes13. Adicionalmente, quanto mais indivíduos sentem que suas posições refletem a opinião da maioria, mais dispostos eles se tornam para expressá-las em discursos públicos14. Contemporaneamente, delineia-se um ambiente virtual ainda mais artificial, marcado por falsos moralismos, em razão da vigilância social de massa.
Há, desta maneira, uma inevitável e irônica contradição na cultura do cancelamento. Enquanto em um momento inicial o deslocamento de poderes nos espaços virtuais é traduzido em democratização social, o potencial de empoderamento que ela é capaz de gerar pode trazer consequências imensuráveis para os indivíduos expostos a ela, por meio da criação de um “tribunal social” composto por uma rede interminável de “juízes” do comportamento alheio com o poder de sentenciar qualquer indivíduo à morte social.
Para Maria Cristina Franco Ferraz e Ericson Saint Clair, a frase nietzschiana “Essas aves de rapina são más; e quem for o menos possível ave de rapina, ou antes, o seu oposto, cordeiro – este não deveria ser bom?” corrobora a compreensão de alteridade no mundo cibernético entre “bons” e “maus”15. A analogia composta pela suposta dicotomia formada entre espécies incomparáveis (cordeiros e aves de rapina) pode ser associada à construção da pretensa moralidade virtual. Por um lado, ao tornar o outro cancelado, o cancelador entende a si mesmo como virtuoso e merecedor da aprovação dos demais. Por outro lado, “cancelar” alguém implica colocar um rótulo em algum indivíduo por uma atitude, comprometendo com isso todo o seu ser. Vê-se, portanto, que a concepção de negatividade conjecturada por Nietzsche16 dialoga com o excesso de positividade de Byung-Chul Han, na medida em que tudo que não é positivo é visto como necessariamente negativo.
Com relação à responsabilidade civil, afigura-se necessário distinguir a responsabilização subjetiva do ofensor(es) e a do provedor (hospedeiro). Pois, se o cancelamento for gerado por postagens de cunho ofensivo realizadas por um usuário de uma rede social, aplica-se o regramento da responsabilidade subjetiva previsto no art. 187 do Código Civil, sendo necessária a demonstração da ação, do dano, do nexo causal e da culpa.
Noutro giro, nos termos do art. 18 do Marco Civil da Internet, o provedor de conexão à internet não será responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros. Em sentido suplementar e no intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura nos ambientes virtuais, preceitua o art. 19 do mesmo diploma, que o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente. Destacando-se as ressalvas legais em contrário. Sendo possível concluir que somente após a omissão ou a inobservância de comando judicial estaria configurado o nexo de causalidade entre a conduta do hospedeiro e os danos ocasionados pelo ofensor. Nesse sentido, Flávio Tartuce entende tratar-se de uma responsabilidade subjetiva agravada.17
Nesta toada, debruçar sobre a verificação de danos decorrentes deste fenômeno, pressupõe o exame de interesses potencialmente antagônicos, mas igualmente indissociados à dignidade da pessoa humana em espaços cibernéticos. A extrema variação quanto às fattispecies ligadas à cultura do cancelamento descaracteriza qualquer generalização de um único juízo de valor a respeito deste comportamento. Destarte, compreender as origens e o dinamismo do processo inerente à cultura do cancelamento é crucial à adequada tutela dos direitos da personalidade.
__________
1- RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância: a privacidade hoje. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 169.
2- HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2018, p. 14.
3- HAN, Byung-Chul. Ibid., p. 15.
4- HAN, Byung-Chul. No enxame: perspectivas digitais. Petrópolis: Vozes, 2018, p. 122.
5- GOLDSBROUGH, Susannah. Cancel culture: what is it, and how did it begin? Disponível em: Clique aqui. Acesso em: 17.08.2020
6- ANDRADE, Raneyelle. Cultura do cancelamento expõe intolerância desta geração. Disponível em: Clique aqui. Acesso em: 15.08.2020
7- NORRIS, Pippa. Closed minds? Is a ‘cancel culture’ stifling academic freedom and intellectual debate in political science? In: Harvard Kennedy School. RWP20-025. Agosto, 2020, p. 2. Disponível em: Clique aqui. Acesso em:20.08.2020
8- HOOKS, Austin Michael. Cancel culture: posthuman hauntologies in digital rhetoric and the latent values of virtual community networks. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Artes e Ciências, Universidade do Tennessee. Chattanooga, Tennessee, EUA, Agosto, 2020, p. 12-13.
9- HAGI, Sarah. Cancel Culture Is Not Real—At Least Not in the Way People Think. Disponível em: Clique aqui. Acesso em: 17.08.2020
10- NWANEVU, Osita. The “Cancel Culture” Con. Disponível em: Clique aqui. Acesso em: 15.08.2020
11- SANCHES, Mariana. O que 'sinal de OK' retratado como racista nas redes revela sobre a 'cultura de cancelamento'. Disponível em: Clique aqui. Acesso em: 17.08.2020
12- TRIGO, Luciano. 'A espiral do silêncio' examina os mecanismos de manipulação da opinião pública. Disponível em: Clique aqui. Acesso em: 20.08.2020
13- NORRIS, Pippa. Op. Cit. p, 16.
14- Ibid., p, 16.
15- FERRAZ, Maria Cristina Franco; SAINT CLAIR, Ericson. Por uma genealogia do ódio online: contágio, viralização e ressentimento. In: Revista Matrizes, Universidade de São Paulo, Vol. 13, nº 1, p. 145. Disponível em: Clique aqui. Acesso em: 23.08.2020
16- FERRAZ, Maria Cristina Franco; SAINT CLAIR, Ericson. Ibid.
17- TARTUCE, Fávio. Direito Civil: Direito das Obrigações e Responsabilidade Civil. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 501.
_________
*Pedro Gueiros é advogado na área de Proteção de Dados e Governança do Lima = Feigelson Advogados. Graduado em Direito pelo Ibmec-RJ.
*Pedro Dalese é bacharel em Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF), advogado do Escritório Luciano Tolla Advogados (Niterói/RJ) e especializado em Direito Digital e Proteção de Dados pela Escola Superior de Advocacia (ESA/OABRJ).