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Contrato de namoro: Mero indício ou prova cabal no direito das famílias?

O contrato de namoro aparece como opção para casais que mantêm relacionamentos sem que se considerem, no momento da pactuação, entidade familiar, evitando, assim, efeitos patrimoniais futuros.

9/9/2020

Desta fragilidade surge um “homem sem vínculos”, individualista, que almeja usufruir da companhia do outro sem que isso lhe traga responsabilidades.1

Nos dias 28 e 29 de agosto do presente ano, participei do Congresso Virtual Mineiro de Direito das Famílias e Sucessões organizado pelo IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família.

Ministrada a palestra “Contrato de namoro em momentos de isolamento social”, pela professora Marília Pedroso Xavier, autora do livro “Contratos de Namoro – Amor Líquido e Direito de Família Mínimo”, refleti sobre o tema e comentei com pessoas do meu convívio, tendo constatado que se trata de assunto pouco conhecido e cujo esclarecimento ostenta grande utilidade na sociedade contemporânea.

Já há alguns anos, os acadêmicos da área vêm defendendo o uso da terminologia “Direito das Famílias” (e não simplesmente “de Família”), em virtude da necessidade de que o Direito acompanhe as mudanças do contexto social, para que as abarque da melhor maneira.

O uso do plural (“das Famílias”) indica justamente que esse ramo jurídico passa a reconhecer que são inúmeras as configurações familiares existentes na sociedade hodierna, as quais não mais apresentam como núcleo central o casamento, e sim o vínculo afetivo.

Cediço que ainda não houve a normatização do “afeto”, não há impeditivo, no entanto, para que este seja usado como base interpretativa, de modo que o Direito das Famílias seja alicerçado nos princípios constitucionais (Dignidade da Pessoa Humana, Igualdade, Solidariedade, Melhor Interesse da Criança...), à luz das matizes do afeto.

Nesse diapasão é que foi positivado o – já bastante conhecido por todos – instituto da “união estável” (lei 9.278/96) e, posteriormente, reconhecida a união homoafetiva (ADPF 132 e ADIn 4.277 – importantes julgados do STF, com caráter vinculante e efeito erga omnes).

Ao contrário do que muitos pensam, inexiste um tempo legalmente previsto que deva ser computado para que o convívio de um casal venha a constituir uma união estável.

Trata-se de uma entidade familiar, reconhecida pela Constituição da República de 1988, a qual se institui a partir dos seguintes elementos: relacionamento público, contínuo, duradouro e com o intuito de se constituir família.

Vislumbra-se, portanto, que, embora não goze de conceito jurídico, o “namoro”, na contemporaneidade, não raro poderia vir a ser confundido com a união estável, sendo frequentemente tênue a linha que distingue os institutos: os casais dormem juntos, viajam juntos, chegando, inclusive, a morarem juntos.

Inobstante, nem tudo que parece de fato é.

Dessa forma, ainda que exista no namoro a publicidade, a afetividade, entende-se que não constitui entidade familiar, sendo, por conseguinte, inapto a gerar efeitos patrimoniais.

E não se diga que se trata de relações informais, vez que majoritariamente adotadas por jovens: muitos são os casais constituídos por pessoas maduras, que por vezes já se casaram, já enfrentaram dolorosos processos de separação e divórcio, longas batalhas pela partilha de bens, os quais optam, conscientemente, por se relacionar sem implicações jurídicas.

Poder-se-ia dizer, portanto, que o elemento subjetivo “intenção de constituir família” seria o núcleo distintivo entre o namoro e a união estável: nesta última a intenção de constituir família é presente, verificada no exato momento da vivência relacional, enquanto que naquele pode ser, ou não, que se vislumbre esse objetivo, o qual, de todo modo, se projeta para o futuro, não sendo concomitante à relação.

Perceba-se, então, que a simples coabitação não possui o condão de induzir à presunção de que se trata de uma união estável, superado o namoro.

Pode o casal residir sob o mesmo teto que se verificará apenas um namoro, ainda que na forma qualificada, caso a intenção de constituir família seja mera projeção para o futuro, enquanto que na união estável já se constata uma entidade familiar constituída no momento presente – vontade imediata do casal, de ambos.

A coabitação, em definitivo, não se presta, seja para identificar a união estável, seja para descaracterizar a informalidade do namoro.

Esclarecedores ensinamentos quanto ao tema se extraem de acórdão proferido pela 3ª turma do Superior Tribunal de Justiça, no Resp 1.454.643/RJ, da relatoria do ministro Marco Aurélio Bellizze, publicado em 10/3/15 (Grifos nossos):

“Permissa venia, o propósito de constituir família, alçado pela lei de regência como requisito essencial à constituição da união estável – a distinguir, inclusive, esta entidade familiar do denominado "namoro qualificado" –, não consubstancia mera proclamação, para o futuro, da intenção de constituir uma família. É mais abrangente. Esta deve se afigurar presente durante toda a convivência, a partir do efetivo compartilhamento de vida, com irrestrito apoio moral e material entre os companheiros. É dizer: a família deve, de fato, restar constituída. No ponto, oportuno citar o escólio de autorizada doutrina, que, em comentário ao "objetivo de constituir família", como requisito para a constituição da união estável, bem elucida a necessidade da efetiva concretização da família – e não a mera projeção desta para o futuro –, bem como, em muitos casos, a irrelevância da coabitação.

(...)

Efetivamente, tampouco a coabitação, por si, evidencia a constituição de uma união estável (ainda que possa vir a constituir, no mais das vezes, um relevante indício), especialmente se considerada a particularidade dos autos, em que as partes, por contingências e interesses particulares (ele, a trabalho; ela, pelo estudo) foram, em momentos distintos, para o exterior e, como namorados que eram, não hesitaram em residir conjuntamente. Este comportamento, é certo, afigura-se absolutamente usual nos tempos atuais, impondo-se ao Direito, longe das críticas e dos estigmas, adequar-se à realidade social...”.

Discriminados os institutos, torna-se instintiva a percepção da utilidade do contrato de namoro: possibilita às partes vivenciar uma união afetiva, pública, duradoura, formalizando que ambos estão conscientes que essa não se confunde com uma união estável.

Vislumbra-se, por conseguinte, que, findo o relacionamento, existente um contrato de namoro válido, nenhuma das partes envolvidas fará jus a repercussões patrimoniais:

“Fundados em uma premissa de comprometimento light, esses novos arranjos valorizam a satisfação das pessoas no tempo presente, independentemente de quais serão os desdobramentos futuros – se é que existirão”. (XAVIER, 2011, p. 75).

O contrato de namoro afasta a tão temida comunicabilidade patrimonial: findo o namoro não há que cogitar em pleitear partilha de bens, pensão alimentícia ou herança.

No entanto, por se tratar de modalidade atípica de contrato, constata-se ainda discussões quanto à sua validade jurídica.

Aduzem os doutrinadores que defendem a invalidade jurídica do pacto em comento que a união estável corresponde à realidade fática, de modo que, ainda que assinado documento que declara que as partes não viviam em união estável, esta poderá ser reconhecida de toda forma, desde que se verifiquem elementos fáticos que a corroborem.

O contrato de namoro apresentaria, portanto, para essa corrente, presunção apenas relativa de validade, de modo que poderia servir como indício da inexistência de união estável, não sendo, no entanto, prova cabal, podendo, inclusive, ser considerado nulo, como mero ardil para a burla da lei.

Urge destacar que não existe no ordenamento jurídico qualquer norma que redunde na proibição de se estabelecer contratos de namoro, mais uma, dentre tantas, modalidades de contrato atípico. Para que sejam válidos, basta respeitar os requisitos legais genéricos do negócio jurídico (art. 104 do CC): partes capazes, objeto lícito, possível, determinado ou determinável, observada forma prescrita ou não defesa em lei.

Não há que se chancelar o uso de contrato de namoro como meio para que as partes fraudem os efeitos jurídicos e patrimoniais de eventual união estável, faticamente constatável, ainda que declaradamente negada. Isso é certo. Porém, tampouco deve-se, ab initio, se presumir ou pelo intuito escuso ou se cogitar que deva a sociedade civil se adaptar ao Direito: deve ser superado o “fosso existente entre a forma jurídica e a realidade social”, nos dizeres de Orlando Gomes.

Assim sendo, para que o contrato de namoro cumpra a sua função de efetivamente resguardar as partes, em hipótese de discussão futura quanto à categoria da relação vivida, é de suma importância que aquelas o firmem em fidelidade absoluta quanto à configuração e o propósito da união.

Nessa senda, poderiam, por exemplo, fazer constar as partes que, de boa-fé, pactuam que, na eventualidade de o namoro evoluir para a união estável, escolhem que esta seja abarcada pelo regime de separação de bens.

Justamente para que seja conferido o condigno valor probatório do contrato de namoro é que se aconselha seja este redigido por advogado familiarista e utilizada a forma pública.

Resta, então, sem qualquer pretensão de que tenha sido exaurido o tema, um convite para que a população assuma todas as nuances da autonomia da vontade, assim como para que entenda e legitime a importância do planejamento patrimonial, que não há de ser compreendido como desconfiança ou menoscabo pelo companheiro, e sim como uma manifestação consciente do desejo no campo amoroso.

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1 XAVIER, Marilia Pedroso. “Contrato de namoro: amor líquido e direito de família mínimo”. P. 20. Constante do acervo digital da UFPR. Extraído do site (Clique aqui). Último acesso em 1/9/20.

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*Marcella Apocalypse é advogada, especialista em Ciências Penais pela PUC/MG, militante também nos quadros da Advocacia Familiarista.

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