Em 15 de agosto de 2020, O STF, via Plenário Virtual, julgou o “Leading Case” (ARE 1.244.885), de relatoria do ministro Dias Tofolli, momento em que se discutiu se haveria ou não incidência do ICMS “sobre o deslocamento de mercadorias de um estabelecimento para outro do mesmo contribuinte localizados em estados distintos”.
Tal controvérsia nasceu em face do Agravo contra decisão de inadmissão de Recurso Extraordinário interposto por produtor rural (Pessoa Física), nos termos Constitucionais, contra acórdão proferido pela Terceira Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul (TJ/MS).
E, o TJ/MS, em sede de Apelação Cível, assim decidiu (Ementa):
“APELAÇÃO CÍVEL EM MANDADO DE SEGURANÇA - ICMS - TRANSFERÊNCIA DE BOVINOS DE UM ESTADO PARA OUTRO - INCIDÊNCIA. OCORRÊNCIA DE FATO GERADOR, AINDA QUE A MOVIMENTAÇÃO SEJA ENTRE ESTABELECIMENTOS DO MESMO PROPRIETÁRIO - ARTIGO 12 DA LC 87/96 - INAPLICABILIDADE DA SÚMULA 166. RECURSO DESPROVIDO.”
Em síntese, a parte Recorrente, naquele ARE, alega que:
“ ...que a hipótese de incidência de ICMS extraída da ordem constitucional se limita aos atos de mercancia, caracterizados pela circulação jurídica do bem na qual há transferência de sua propriedade. Portanto, não basta o deslocamento físico ou econômico do bem no caso de semoventes.”
E, a parte Recorrida, em sede de Contrarrazões, também em síntese, expõe que:
“ ...a higidez do acórdão hostilizado, pois não haveria em sede constitucional a vedação da incidência na hipótese, ao passo que o art. 12, I, da Lei Complementar 87/1996 preconizaria a tributação de ICMS sobre as saídas de mercadoria de estabelecimento, ainda que para outro do mesmo titular”.
“Ademais, alude não existir ofensa ao princípio da legalidade, porque haveria parâmetros legais estaduais e nacionais que viabilizariam a exação. Colaciona o recorrido julgados de tribunais de justiça para corroborar a tese de que a jurisprudência e a doutrina se teriam firmado pela circulação econômica de mercadorias como critério para a incidência do ICMS.
Em outras palavras, seria devida a tributação em operação de circulação de mercadorias no ciclo de circulação da riqueza entre contribuintes autônomos, embora em concreto correspondam ao mesmo proprietário e não haja transferência de titularidade.”
Já o ministro relator, depois de um extenso arrazoado, arrematou a presente “quaestio” no seguinte sentido, após se manifestar “pela existência de matéria constitucional e de repercussão geral da questão suscitada no recurso extraordinário e pela ratificação da pacífica jurisprudência do Tribunal”:
“Consequentemente, dou provimento ao agravo para conhecer em parte do recurso extraordinário e, na parte conhecida, dar-lhe provimento, de modo a conceder a ordem de segurança pleiteada pelos impetrantes com vistas a determinar que o estado recorrido se abstenha de cobrar ICMS em situação correspondente à transferência interestadual de bovinos entre estabelecimentos de titularidade dos recorrentes, sem a configuração de ato mercantil, assim como de promover atos que impeçam essa movimentação. Por outro lado, emita o estado as notas fiscais de produtor rural necessárias para o referido transporte, sem as condicionar ao prévio recolhimento do imposto.”
Por fim, o ministro relator propôs, na sequência, a tese de julgamento cujo teor segue:
“Não incide ICMS no deslocamento de bens de um estabelecimento para outro do mesmo contribuinte localizados em estados distintos, visto não haver a transferência da titularidade ou a realização de ato de mercancia.”
Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a existência de repercussão geral e julgou o mérito da questão constitucional suscitada no referido Leading Case (ARE 1255885 - Tema 1.099) decidindo pela não-incidência do ICMS nas transferências de mercadorias por falta do substrato econômico-negocial, ou seja, “sem a configuração de ato mercantil” em tais situações operacionais.
E, como já nos manifestamos em artigo anterior publicado em 11 de dezembro de 20191, como também assim se deu em relação à súmula do STJ 1662, permanece a questão decorrente dessa não-incidência agora decidida pelo STF, porquanto indaga-se como deve proceder diante desta situação tributária/ICMS o contribuinte remetente da mercadoria em transferência frente ao que dispõe o artigo 155, §2º da CF/88, “in verbis” :
Artigo 155 da CF/88
“§ 2º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 3, de 1993)
I - será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal;
II - a isenção ou não-incidência, salvo determinação em contrário da legislação:
a) não implicará crédito para compensação com o montante devido nas operações ou prestações seguintes;
b) acarretará a anulação do crédito relativo às operações anteriores;“
Vê-se, dessa forma, que é de clareza solar que em face dessas disposições Constitucionais o Contribuinte deve deixar de escriturar os créditos fiscais a que tem direito ou proceder aos devidos estornos.
Nessa senda, e a fim de tentar corrigir os efeitos dessa Decisão do STF e da súmula 166 do STJ vis a vis ao princípio constitucional da não-cumulatividade, vale lembrar que o referido PLS (já aprovado pela Comissão de Assuntos Econômicos do Senado - CAE) propõe acrescer o § 4º ao artigo 12 da LC 87, de 1996, de tal forma a não vir a ocorrer o fato gerador do ICMS nas transferências de mercadorias (trata-se do dito “deslocamento de mercadorias de um estabelecimento para outro do mesmo contribuinte), conforme segue:
“Art. 12. Considera-se ocorrido o fato gerador do imposto no momento:
(...)
§ 4º Não se considera ocorrido o fato gerador do imposto na saída de mercadoria de estabelecimento de contribuinte para outro estabelecimento de mesmo titular.”
Nesse diapasão, tal proposição mantida somente na forma acima deixará o princípio constitucional da não-cumulatividade de “pé quebrado”, posto que, diante dessa não tributação, o contribuinte, pelo disposto no artigo 155 da CF atrás citado, não poderá lançar/escriturar os créditos de ICMS em sua escrita fiscal (ou deve estornar os créditos lançados), porquanto vedado por ordem Constitucional.
Assim, a solução, voltamos a frisar, pode ser encontrada, a fim de NÃO se ter a CUMULATIVIDADE do ICMS, com o acréscimo ao PLS 332, de 2018 (o qual visa, como se viu acima, promover alteração no § 2º do artigo 12 da LC 87, de 1996), dos seguintes termos à sua parte final:
" ...como também em relação às transferências de mercadorias de que trata o § 4º do artigo 12".
Nesse caso, a fim de se corrigir os tais efeitos da Decisão do STF, em se adotando tal acréscimo, o referido dispositivo da LC 87 (§2º) ficará assim com a sua redação após acrescida daquela parte final:
"§ 2º - Não se estornam créditos referentes a mercadorias e serviços que venham a ser objeto de operações ou prestações destinadas ao exterior ou de operações com o papel destinado à impressão de livros, jornais e periódicos, como também em relação às transferências de mercadorias de que trata o § 4º do artigo 12".
Por fim, diante da atual Decisão do STF, e aliada à súmula 166 do STJ, e se realizados os citados acréscimos naquele PLS 332, o Contribuinte não precisará mais, por falta da ocorrência do fato gerador do ICMS nas transferências de mercadorias, destacar o ICMS nestas operações, e, por outro lado, poderá lançar em sua escrita fiscal os créditos de ICMS pelas entradas/aquisições (ou não deverá proceder aos devidos estornos), não devendo ser impedido, na forma da redação legal atual, de escriturar ou manter tais créditos de ICMS, vindo, dessa forma, atender plenamente ao princípio Constitucional da não-cumulatividade.
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1 “PLS 332, de 2018 - Não-ocorrência do fato gerador do ICMS nas transferências de mercadorias via acréscimo do § 4º ao artigo 12 da LC 87, de 1996”.
2 “Não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte.”
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*Osvaldo Bispo de Beija é sócio advogado do Beija & Sugijama Sociedade de Advogados.