Migalhas de Peso

Os fundos estaduais de combate à pobreza na visão do STF

A legitimidade da jurisprudência passa por algumas perguntas não respondidas.

1/9/2020

Em outra oportunidade, já dissemos que a controvérsia acerca dos adicionais de ICMS cuja receita é vinculada aos Fundos Estaduais de Combate à Pobreza, exação sui generis prevista no art. 82, §1º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), constitui um dos temas tributários mais “mal resolvidos” da atualidade1, por não ter, até hoje, merecido um debate à altura da sua relevância jurídica e econômica no âmbito do Supremo Tribunal Federal.

E 2 (dois) recentíssimos acórdãos criam uma ocasião particularmente propícia para retomar o ponto, a saber: 1) a confirmação da negativa de seguimento a recurso de uma grande rede varejista que questionava adicional instituído em 2011 (Clique aqui); e 2) o leading case do tema 1094/RG, cuja tese restringiu a exigibilidade de exação instituída no intervalo entre a EC 33/01 e a LC 114/02 a fatos geradores posteriores a esta norma geral (Clique aqui).

Com efeito, a leitura atenta do seu inteiro de teor suscita algumas perguntas que, salvo melhor juízo, ajudam a colocar a desnudo o notável déficit de legitimidade da jurisprudência atual do Tribunal sobre a matéria. São elas:

1ª Pergunta: Existe precedente (qualificado) validando os adicionais anteriores à EC 42/03?

Em que pese a enfática sinalização afirmativa de incontáveis decisões monocráticas, o fato é que o Tribunal Pleno nunca chegou a se manifestar conclusivamente sobre o tema.

A fonte primária de todos os precedentes emanados de ambas as Turmas pode ser reconduzida, direta ou indiretamente, a uma decisão monocrática do ex-min. Ayres Britto na qual, antes de se extinguir a ADIn 2.869/RJ sem exame do mérito, consignou-se que “o art. 4º da emenda constitucional 42/03 validou os adicionais (...), ainda que estes estivessem em desacordo com o previsto na Emenda Constitucional 31/00”.

A 1ª turma já reconheceu tratar-se de mero obiter dictum, pavimentando a afetação do tema ao Plenário (Clique aqui). Mas, apesar do parecer da PGR favorável à iniciativa, a falta do reconhecimento formal da respectiva repercussão geral tem favorecido o “atropelo” do provável leading case2.

Isso não impediu, no entanto, o min. Luiz Fux de, em manifestação um tanto “fora da curva”, negar provimento a recurso do Estado de Goiás à base, justamente, da desqualificação do “precedente” da ADIn 2.869/RJ (Clique aqui). 

2ª Pergunta: A “jurisprudência pacífica” a respeito dos adicionais anteriores à EC 42/03 é aplicável também aos posteriores a ela?

Num primeiro momento, a min. Rosa Weber, relatora do primeiro dos acórdãos analisados, parece ter entendido que sim, tanto que, embora a exação em causa datasse de 2011, sua excelência invocou apenas precedentes que emularam o obiter dictum da ADIn 2.869/RJ. Isso parece ter sido assumido também pelo min. Luiz Fux na decisão solitária acima referida, que dizia respeito a adicional instituído em 2005: Sua Excelência, é certo, desviou-se da “jurisprudência pacífica”, mas o fez por encampar a sua antítese, não pode considerá-la inaplicável ao caso.

Mas a própria literalidade do dispositivo que justificou o “comentário” do ex-min. Ayres Britto (art. 4º da EC 42/03) pré-elimina essa “fungibilidade”, por tratar, textualmente, apenas dos adicionais criados “ate' a data da promulgação desta Emenda”, o que parece ser confirmado pela complementação feita pela min. Rosa Weber: no voto condutor que confirmou sua decisão singular, foi acrescida a referência à ACO 1.039/MS e à STP 107/GO, o que nos leva à próxima pergunta:

3ª Pergunta: A ACO 1.039/MS e STP 107/GO servem de precedentes para a controvérsia relativa aos adicionais posteriores à EC 42/03?

A sugestão de elevar à condição de leading case a – alentada, não se nega – decisão monocrática do min. Gilmar Mendes na ACO 1.039/MS (Clique aqui) fomenta uma “supervalorização” ainda mais intensa do que a do notório obiter dictum na ADIn 2.869/RJ.

Pelo menos não nos parece sustentável outra alternativa à vista da expressa ressalva de Sua Excelência de que “apenas os contribuintes detém legitimidade para se insurgirem em face dessa exação, não podendo a União questionar tal tributação”, forma típica de enunciar uma abordagem apenas ad argumentandum tantum, conceitualmente excluída da ratio decidendi.

Quanto à STP 107/GO (Clique aqui), sua própria natureza de contracautela parece bastar para descartá-la como um diagnóstico sobre o meritum causae, tanto que em várias decisões posteriores a respeito de pleitos idênticos o min. Luiz Fux, com o aval do Tribunal Pleno, fez questão evitar qualquer comentário sobre a própria (in)constitucionalidade da exação (Clique aqui).

4ª Pergunta: A ADIn 5.733/AM não se prestaria a colmatar esta “lacuna”?

Sem dúvida, era um excelente “candidato” a leading case e, realmente, o seu dispositivo parece apontar para a validade da exação após a “carência” fixada (Clique aqui).

Essa leitura, no entanto, é seriamente abalada pelo silêncio do voto condutor acerca da variável-chave (interpretação do atual art. 82, §1º., do ADCT), em virtude da superveniente revogação da norma que tornava indispensável o enfrentamento do busílis, sendo inevitável o “déjà-vu” quando se levam em conta as circunstâncias que inviabilizaram o exame do mérito da notória ADIn 2.869/RJ.

5ª Pergunta: Essa “jurisprudência pacífica” é compatível com a tese 1094/RG?

Parece-nos extremamente penoso tentar obscurecer a quebra de coerência/integridade jurisprudencial (art. 926 do CPC) se forem atribuídos aos “precedentes” repassados o peso e a leitura que se tem sugerido.

É que, tenha ou não promovido uma “reescrita” da Tese 171/RG, o recentíssimo leading case é inequívoco quanto à indispensabilidade da prévia edição de lei complementar, seja como condição de validade ou de eficácia da cobrança do ICMS.   

Ora, a validação dos adicionais do art. 82, §1º., do ADCT assume, justamente, a desnecessidade da lei complementar que passou a ser prevista com a EC 42/03, premissa que flerta com a própria antítese das teses 171 e 1094/RG.

O propósito desses breves e modestos esboços, longe de ser cravar uma resposta definitiva, é apenas realçar o quão necessária se mostra a simples suscitação das respectivas perguntas. Se é consenso o papel incomparável da jurisprudência do STF na orientação de juízes e jurisdicionados, assim como que repugna a um legítimo precedente algum quid de decisionismo, então quer-se crer que a colocação de tais perguntas não é uma questão de “se”, mas de “quando”...

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1 FREITAS, Leonardo e Silva de Almendra. “A Simplificação do Problema dos Fundos de Combate à Pobreza Posteriores à EC 42/03: Um Falso Easy Case”. In: Revista de Direito Tributário Contemporâneo. a. 4, n. 16, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, pp. 69-89.

2 É sintomática a reversão, pela mesma 1ª turma, de prévio sobrestamento sob o argumento de não haver previsão para o esperado julgamento (Clique aqui).

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*Leonardo e Silva de Almendra Freitas é advogado do escritório Almendra Freitas Advocacia Empresarial.

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