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Genocídio infantil

Há décadas a população infantil brasileira é vítima de genocídio. O estupro da menina de 10 anos é apenas mais um entre milhões de crimes cometidos contra meninos e meninas, filhos de famílias desestruturadas, de pais alcoólatras, de mulheres abandonadas pelo marido ou companheiro, de moradores de rua, de viciados em cocaína e crack.

26/8/2020

A palavra genocídio tem diversos significados, todos ruins. Fico com o primeiro, do Dicionário Houaiss: extermínio deliberado, parcial ou total, de uma comunidade, grupo étnico, racial ou religioso.

Há décadas a população infantil brasileira é vítima de genocídio. O estupro da menina de 10 anos é apenas mais um entre milhões de crimes cometidos contra meninos e meninas, filhos de famílias desestruturadas, de pais alcoólatras, de mulheres abandonadas pelo marido ou companheiro, de moradores de rua, de viciados em cocaína e crack. O aborto autorizado pelo Poder Judiciário não é caso isolado. Dezenas são praticados sob sigilo para permanecerem ocultos em trágicas estatísticas.

Na edição de 15/12/92 da extinta Gazeta Mercantil publique artigo com o título “A tragédia das nossas crianças”. Aludi às conclusões da Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara dos Deputados (CPI), realizada em 1975/76, “cujo relatório final nos cobriu de vergonha diante dos povos civilizados”. A CPI apurou a existência de 2 milhões de menores abandonados e de 13,5 milhões de carentes. Na época o Brasil possuía 110 milhões de habitantes. Hoje somos 220. Para enfrentar o problema recorreu-se ao faz-de-conta: “Faz-de-conta que as elites tomaram conhecimento do assunto; faz-de-conta que providências urgentes passaram a ser tomadas; faz-de-conta que há um fundação nacional incumbida do bem-estar do menor; faz-de-conta que fundações estaduais se ocupam do mesmo problema; faz-de-conta que basta a aprovação de lei para que carentes e abandonados tenham educação e abrigo; faz-de-conta que o fracasso das medidas é devido à velha legislação; faz-de-conta que uma nova lei corrigirá as deficiências atribuídas à antiga; faz-de-conta que se cria um ministério do menor e assim por diante”.

Retomei o tema em 1997 e 1998 nos artigos Exploração de Menores, Menores à Venda e A Tragédia Maior, publicados no Correio Braziliense, incluídos em dois dos meus livros. Abordei questões como prostituição infantil, crianças viciadas no uso do crack, menores no comércio ambulante de rua, falta de creches e de escolas.

Às fantasias do passado a Constituição de 1988 acrescentou algumas. O Título VIII, dedicado à Ordem Social, traz o utópico Capítulo VII sobre a família, a criança, o adolescente, o jovem e o idoso. No artigo 226 declara: “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”. O artigo 227, por sua vez, garante: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

A Constituição vigora há 32 anos. Ao lado de muitos outros, ambos os dispositivos permanecem esquecidos. A lei 8.069, de 3/7/99, conhecida como ECA, dispõe sobre a “proteção integral da criança e do adolescente”. Completou 30 anos com parcos resultados. É imperativo que se faça algo objetivo e rapidamente. Proponho a criação de fundos municipais de assistência social e financeira à maternidade e à infância, supervisionados por fundos estaduais. O dinheiro viria do Fundo Partidário e do Fundo de Financiamento de Campanha, imorais, nocivos, fontes de recursos para profissionais da política, dedicados à exploração de negócios pessoais.

O crime de genocídio contra a infância e a adolescência deve ser combatido. É impossível conviver com o quadro de abandono de mães miseráveis, sem profissão e sem meios de subsistência e de crianças sem família, sem lar, sem amor e carinho, sem alimentação, sem roupas e brinquedos, carentes de assistência médica e de remédios, abrigadas precariamente em barracos de lona, vagando pelas ruas para pedir auxílio.

O país corre perigo concreto de ser chamado às barras de tribunal internacional. Poderá responder à acusação da prática de genocídio infantil. Como se defenderá? Afinal, desde 1975 as estatísticas são reveladoras e nada se fez.

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*Almir Pazzianotto Pinto é advogado. Foi Ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho.

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