Após uma leva de decisões do Tribunal Regional Federal (“TRF”) e do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) a favor do contribuinte, a discussão sobre a incidência de Imposto de Renda Retido na Fonte (“IRRF”) na remessa para pagamento de serviço técnico e assistência técnica, envolvendo país com o qual o Brasil possui Tratado para Evitar a Dupla Tributação (“Tratado”), começa a dar sinais a favor da Fazenda Nacional. Nos últimos meses, pelo menos 3 decisões do TRF da 3ª Região foram no sentido de que estão sujeitas ao IRRF as remessas para pagamento de serviço técnico e assistência técnica quando há previsão no Protocolo do Tratado equiparando tais pagamentos a royalties.
Aos contribuintes que leram o parágrafo anterior com pessimismo, sugiro que não recebam essa informação necessariamente como uma má notícia. Por anos, a discussão sobre a incidência de IRRF na remessa para pagamento de serviço técnico e assistência técnica esteve concentrada em interpretações erradas dos Tratados. Os argumentos que estão sendo analisados hoje pelo TRF e, em breve, pelo STJ podem finalmente colocar em pauta o mais importante: o conceito de serviço técnico e assistência técnica para fins de aplicação do art. XII dos Tratados.
Breve histórico
No fim dos anos 90, a Receita Federal do Brasil (RFB) passou a adotar a tese incorreta de que as remessas decorrentes de contratos de prestação de assistência técnica e serviço técnico sem transferência de tecnologia deviam se sujeitar ao IRRF por se classificarem no artigo XXI, “Rendimentos não Expressamente Mencionados” dos Tratados. Este entendimento foi consolidado pela RFB no Ato Declaratório COSIT 01/00, mas em 2012 foi rechaçado pelo STJ no REsp 1.161.467 (Caso COPESUL).
O Caso COPESUL discutiu a tributação das remessas para pagamento de serviços sem transferência de tecnologia de acordo com os Tratados Brasil-Alemanha e Brasil-Canadá. Invocando o magistério do Alberto Xavier, o Ministro Relator Castro Meira ressaltou em seu voto a diferença entre rendimentos derivados da prestação de informações resultantes de experiência adquirida no setor industrial, comercial ou científico (“know-how”) daqueles de prestação de serviços. O primeiro seria classificado no art. XII dos tratados, como “Royalties”, sujeito ao IRRF, e a prestação de serviços em geral no art. VII, como “Lucros das Empresas”, livres do IRRF no Brasil. A classificação como “Rendimentos não Expressamente Mencionados” defendida pela RFB foi considerada completamente equivocada.
A decisão do STJ teve duplo efeito: motivou contribuintes a entrarem com ações judiciais buscando seu direito a não retenção do IRRF nas remessas para pagamentos de serviços técnicos sem transferência de tecnologia; e fez a Fazenda Nacional surgir com uma nova tese. Por meio do Parecer PGFN/CAT 2.363/13, a Fazenda Nacional passou a defender que a retenção do IRRF é legítima quando o tratado celebrado pelo Brasil tiver, em seu Protocolo, regra equiparando serviços técnicos e de assistência técnica a royalties.
A RFB ratificou este entendimento por meio do Ato Declaratório Interpretativo 5/14, afirmando que o tratamento tributário a ser dispensado aos rendimentos pagos por fonte brasileira a pessoa física ou jurídica residente no exterior pela prestação de serviços técnicos e de assistência técnica, com ou sem transferência de tecnologia, com base em Tratado celebrado pelo Brasil será aquele previsto: (I) no artigo que trata de royalties, quando o respectivo Protocolo contiver previsão de que os serviços técnicos e de assistência técnica recebam igual tratamento, na hipótese em que o tratado autorize a tributação no Brasil; (II) no artigo que trata de profissões independentes ou de serviços profissionais ou pessoais independentes, nos casos da prestação de serviços técnicos e de assistência técnica relacionados com a qualificação técnica de uma pessoa ou grupo de pessoas, na hipótese em que o tratado autorize a tributação no Brasil, ressalvado o disposto no inciso (I); ou (III) no artigo que trata de lucros das empresas, ressalvado o disposto nos incisos (I) e (II).
Dos 32 Tratados celebrados pelo Brasil apenas 5 não possuem previsão em Protocolo equiparando serviços técnicos e de assistência técnica a royalties: França, Finlândia, Áustria, Japão e Suécia. Deve-se destacar que a Suécia em breve sairá desta lista, pois assinou recentemente Protocolo com o Brasil prevendo esta equiparação, o qual aguarda apenas publicação.
Decisões do STJ
Ainda não há decisão no STJ analisando especificamente a previsão em Protocolo de Tratado que equipara serviço técnico e assistência técnica a royalties. Como visto acima, o Caso COPESUL, julgado em 2012, não tocou nesse ponto. Posteriormente, em 2015, o Caso IBERDROLA (REsp 1.272.897), que envolveu a retenção de IRRF no pagamento de serviços a uma empresa espanhola, também passou longe. O cerne da questão no Caso IBERDROLA era interpretar se a expressão “lucros” do artigo VII do Tratado Brasil-Espanha englobava ou não o termo rendimentos. A preocupação do STJ nessa ocasião era evitar que o conceito de lucro fosse buscado na legislação doméstica. Restou decidido então que, para fins do artigo VII do Tratado Brasil-Espanha, o “lucro da empresa estrangeira” deve ser interpretado não como lucro real, mas como lucro operacional, o qual inclui o rendimento pago como contrapartida de serviços prestados.
Seguindo esta linha, recentemente, em maio de 2020, o STJ proferiu decisão no REsp 1.618.897 (Caso ALCATEL), reiterando a prevalência das disposições dos Tratados sobre normas jurídicas de Direito Interno. No Caso ALCATEL o contribuinte postulava afastar a retenção de IRRF sobre remessas para pagamento de serviços técnicos prestados por uma empresa francesa. Valendo-se do racional utilizado na decisão do Caso IBERDROLA, o STJ confirmou que, de acordo com o artigo VII do Tratado Brasil-França, os lucros da empresa francesa incluem os rendimentos pagos como contrapartida de serviços prestados e, portanto, não podem ser tributados no Brasil.
Note-se que o Tratado Brasil-França está entre as exceções de tratados que não possuem previsão em Protocolo equiparando pagamento por serviços técnicos a royalties. Ou seja, o Caso ALCATEL foi favorável ao contribuinte, mas não se tratou de uma grande vitória, pois a própria RFB já havia confirmado, em sede de solução de consulta, que as remessas realizadas para pagamento de serviços técnicos ou de assistência técnica, prestados por pessoa sediada na França, independentemente de ter havido ou não a transferência de tecnologia, terão o tratamento tributário dado aos lucros das empresas previsto no Tratado Brasil-França, não se sujeitando, portanto, à incidência do IRRF (Soluções de Consulta 153/15 e 501/17).
Decisões do TRF
No TRF, a legitimidade da tributação na fonte nas hipóteses em que o Protocolo do Tratado equipara o tratamento tributário de serviços técnicos e assistência técnica a royalties já foi analisada algumas vezes e, em boa parte, favorável ao contribuinte. Em vários precedentes, o argumento que prevaleceu para que a retenção do IRRF fosse afastada foi o fato de a prestação de serviço técnico não envolver a transferência de tecnologia. Este foi o fundamento, por exemplo, em acórdãos do TRF da 2ª Região (processo nº 0003055-39.2015.4.02.0000 e processo nº 0000160-54.2013.4.02.5116 sobre o Tratado Brasil-Holanda) e TRF da 3ª Região (processo nº 0004166-76.2012.4.03.6130/SP).
Em 2017, o TRF da 3ª Região aprofundou um pouco mais o assunto, mas manteve o entendimento de que a equiparação a royalties deve ser aplicada apenas a “casos limítrofes em que, embora o contrato seja de prestação de serviços, haja alguma forma, mesmo complementar ou instrumental, de transferência de tecnologia ou ‘know-how’”. Esta passagem se encontra, por exemplo, no processo 0016356-64.2012.4.03.6100/SP (referente ao pagamento por serviços de procurement a uma empresa situada na Bélgica) e processo 0008354-29.2013.4.03.6114/SP (referente ao pagamento por serviços sem transferência de tecnologia a empresa situada no Peru).
Por outro lado, recentemente, pelo menos três acórdãos do TRF da 3ª Região sinalizaram uma possível mudança de posicionamento. Em junho de 2019, a 3ª Turma acolheu os embargos de declaração, com efeitos infringentes, da Fazenda Nacional, para admitir a incidência de IRRF nas remessas para pagamento de serviço de software com base no Protocolo do Tratado Brasil-Alemanha (considerando o período em que este tratado ainda estava em vigor). O acórdão reformado havia negado provimento à apelação da Fazenda Nacional sob o argumento de que o contrato de prestação de serviços firmado pelas partes não envolvia transferência de tecnologia. No novo acórdão, a 3ª Turma não se pronunciou sobre o fato de o serviço não envolver transferência de tecnologia, concluindo apenas que o Item 4 do Protocolo do Tratado Brasil-Alemanha claramente equipara os serviços técnicos e de assistência técnica a royalties para fins de tributação dos rendimentos pagos por fonte brasileira à empresa alemã (processo 0024442-10.2001.4.03.6100/SP).
Em junho de 2020, a 3ª Turma do TRF da 3ª Região decidiu novamente em favor da Fazenda Nacional ao confirmar a incidência de IRRF na remessa para pagamento de serviços de consultoria financeira, gerencial e administrativa para uma empresa espanhola (processo 5023086-93.2018.4.03.6100). Segundo o acórdão da 3ª Turma, embora não haja no Tratado Brasil-Espanha “um conceito expresso e abrangente quanto a definição de serviços técnicos e nem consta que a definição de royalties envolveria, necessariamente, a transferência de tecnologia em sentido estrito”, é certo que o Protocolo que alterou o Tratado Brasil-Espanha equipara serviço técnico à royalties. Desta forma, segundo o tribunal, tal previsão deveria ser aplicada ao caso pois “serviços de consultoria exigem profundos conhecimentos e habilidades técnicas de análise especializada por parte da contratada.”
Seguindo linha semelhante, no mês seguinte, julho de 2020, a 4ª turma do TRF da 3ª Região decidiu, por maioria, que incide IRRF na remessa para pagamento de serviços técnicos prestados por empresa argentina, ainda que sem transferência de tecnologia (processo 0004819-10.2014.4.03.6130). O contrato em questão envolvia o serviço de suporte, assistência para manutenção e atualização de website. De acordo com a análise da 4ª Turma, os contratos de royalties e prestação de serviço técnico não podem ser confundidos: “no caso dos royalties o contratante tem direito a receber os ‘processos’ (‘know how’) pelo qual se atingem os resultados industriais ou comerciais, ao passo que com o simples serviço apenas o resultado é almejado.” De acordo com a documentação juntada aos autos, a 4ª Turma entendeu que se tratava de serviço técnico e de assistência técnica científica, portanto, sujeito à tributação na fonte de acordo com o Protocolo do Tratado Brasil-Argentina.
Os acórdãos do TRF da 3ª Região comentados acima sinalizam que os julgadores estão analisando os Protocolos dos Tratados em mais detalhes. Note-se que o previsto em tais Protocolos tem o mesmo valor jurídico do disposto no próprio Tratado1 e, portanto, refletem o que foi negociado pelo Brasil e o outro Estado contratante e vinculam os seus residentes.
Previsão de Equiparação de Serviço Técnico a Royalties nos Protocolos dos Tratados
É importante ressaltar que a previsão incluída nos Protocolos dos Tratados que equiparam serviço técnico e de assistência técnica a royalties não possuem uma redação uniforme. Normalmente, os Protocolos preveem que o parágrafo 3 do art. XII do Tratado Tributário será aplicado a pagamentos de prestação de serviços técnicos ou assistência técnica sem estabelecer expressamente maiores limitações, como é o caso dos Tratado Brasil-Chile, Brasil-Bélgica, Brasil-Noruega, dentre outros. No entanto, a redação, mesmo que com poucas variações, pode ser mais ou menos restritiva, sendo imperioso, portanto, a análise de cada caso.
Em regra, os Protocolos não trazem uma definição de serviço técnico ou assistência técnica, nem tampouco preveem que, para equiparação a royalties, o serviço deve ou não envolver a transferência de tecnologia. A exceção a esta regra é o novo Protocolo celebrado entre Brasil e Argentina (decreto 9.482/18), o qual adotou um conceito de serviço técnico e de assistência técnica tão amplo quanto o da instrução normativa 1.455/14:
“b) Fica estabelecido que as disposições do parágrafo 3 do Artigo XII se aplicam aos rendimentos provenientes do uso ou da concessão de uso de software ou de notícias internacionais, e da prestação de serviços técnicos e de assistência técnica, científica, administrativa ou semelhante.
Considera-se prestação de serviços técnicos e de assistência técnica a execução de serviços que dependam de conhecimentos técnicos especializados ou que envolvam assistência administrativa ou prestação de consultoria, realizada por profissionais independentes ou com vínculo empregatício ou, ainda, resultante de estruturas automatizadas com claro conteúdo tecnológico; e a assessoria permanente prestada pelo cedente de processo ou fórmula secreta ao cessionário, mediante técnicos, desenhos, estudos, instruções ou outros serviços similares, os quais possibilitem a efetiva utilização do processo ou fórmula cedidos.”
Esta recente inclusão no Protocolo do Tratado Brasil-Argentina demonstra que, ao menos nesse caso, a intenção do governo brasileiro foi ampliar o conceito de serviço técnico e assistência técnica para fins de equiparação a royalties. No entanto, em contrapartida, foi acordado que o rendimento recebido pelo residente argentino e tributado no Brasil é isento na Argentina (item 3 do art. XXIII do Tratado Brasil-Argentina). Ou seja, apesar do conceito amplo de serviço técnico no Tratado Brasil-Argentina, foi adotado o método mais benéfico para evitar a dupla tributação do prestador de serviço argentino tributado na fonte no Brasil (isto é, isenção, ao invés do comum e mais complexo método de crédito).
Comentários Finais
Embora os últimos acórdãos do TRF da 3ª Região sobre IRRF nas remessas para pagamento de serviço técnico e assistência técnica, quando há previsão no Protocolo do Tratado equiparando tais pagamentos a royalties, tenham sido negativos para o contribuinte, deve-se admitir que houve uma evolução no debate. Definir o conceito de serviço técnico e assistência técnica, de acordo com a previsão do Protocolo, é vital para confirmar a correta aplicação do Tratado. Este conceito não pode ser simplesmente retirado da previsão do artigo 17, II, “a”, da IN 1.455/14, como já tentou a RFB em várias oportunidades, mesmo sem base legal, assim como não pode ser resumido apenas em “serviço com transferência de tecnologia”.
O norte interpretativo para definir o conceito de serviço técnico e assistência técnica mais apropriado deve levar em consideração a real intenção do Brasil e do outro país que negociaram a inclusão deste termo nos Protocolos dos Tratados. Como mencionado acima, na Argentina, o conceito utilizado é de fato mais amplo (semelhante ao da IN 1.455/14), mas esta não é a regra, pelo menos por enquanto. É preciso que a previsão do Protocolo seja analisada no detalhe em cada caso específico.
Além disso, deve-se ter em mente que o art. XII dos Tratados celebrados pelo Brasil não seguem o Modelo OCDE. Assim como na maioria dos outros países em desenvolvimento, o art. XII dos Tratados celebrados pelo Brasil se assemelha mais ao Modelo ONU, que prevê a possibilidade de tributação na fonte.2 Outro fato importante é que o Brasil, perante a OCDE, registrou expressamente sua reserva ao direito de incluir pagamentos por assistência técnica e serviços técnicos na definição de royalties do art. XII.3 Ou seja, ainda que a preferência do contribuinte no Brasil seja sempre afastar a incidência do IRRF, não adianta litigar nos tribunais contra a política fiscal brasileira.
O Brasil, por ser um país em desenvolvimento e importador de capital, tenta manter o seu direito de tributar na fonte nas negociações dos Tratados e, por ser a 9ª maior economia do mundo, consegue ter mais poder de barganha. Então, para que se evite eternos litígios, é melhor que o debate siga na busca do conceito de serviço técnico e assistência técnica de acordo com o negociado pelo Brasil em seus Tratados. Isso sem esquecer que, quando não for possível afastar a tributação na fonte, a receita tributária no Brasil será incrementada, o que é positivo especialmente na atual crise, e a dupla tributação da renda será evitada de acordo com o art. XXIII do Tratado.
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1 XAVIER, Alberto. Direito tributário internacional do Brasil. 8. ed. Rio de Janeiro, 2015, p. 81.
2 ROCHA, Sérgio André. Política Fiscal Internacional Brasileira. Editora Lumen Juris. Rio de Janeiro, 2017, p. 64.
3 OECD. Model Tax Convention on Income and on Capital. Paris: OECD, 2014. p. 476-477. Disponível em Clique aqui
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*Laura Kurth é advogada. Especialista em Planejamento Tributário pela PUC/RJ e mestre em Tributário Internacional pela Universidade de Melbourne, Austrália.