Com a crise do Covid-19, passamos a vivenciar dissabores sem precedentes, não apenas a nível nacional, mas internacionalmente. Toda sociedade e setores da economia tiveram de se adaptar ao que vem sendo chamado de “novo normal”.
Certo é que as crises, de uma maneira geral, costumam causar tumulto no mercado. E no cenário atual da pandemia esse alvoroço se potencializou e instalou-se uma busca por soluções tentando minorar os prejuízos que fatalmente ocorrerão. Nessa esteira, percebemos um grupo específico de investidores atuando de forma agressiva nesse cenário: os chamados “fundos abutres” vêm à caça de empresas em crise, agonizantes, mas que ainda se apresentam viáveis e em condições de se recuperar.
Em uma primeira análise, seria possível pensar que esses fundos de investimentos são chamados “fundos abutres” porque, assim como as aves, teriam como característica marcante seu hábito pela caça; pacientemente sobrevoam sua presa até que ela esteja indefesa ou morta, para então, poder se alimentar de sua fragilidade. São fundos especializados em ativos de alto risco, os distressed assets. Procuram oportunidade de investimento em ativos que estejam sendo negociados por preço inferior ao que efetivamente valem, adquirem títulos com deságio, isto é, com um desconto em relação ao valor de face, assumem créditos em situação de inadimplemento, negociam ativos de empresas que geralmente estão à beira da falência. Também compram participações em empresas sem fôlego financeiro, muito abaixo do seu preço real, no intuito de mantê-las ativas, apostando na sua recuperação.
As consequências das ações desses fundos no mercado podem ser gigantescas. Movimentam milhões, bilhões. Hoje por causa da pandemia, ao que tudo indica, esses fundos se preparam para atacar de forma agressiva os ativos brasileiros, já que, no cenário atual, empresas de diversos setores precisam desesperadamente de liquidez.
Esses fundos são simbolizados pela letra “U”, e se utilizam de uma tese clássica desse setor: nos momentos de crise os preços dos ativos de inúmeras empresas e companhias despencam, criando oportunidades atrativas de compra. Mas com a estabilização da economia, tais preços tendem a subir oportunizando aos investidores lucros altíssimos e vantajosos.
Geralmente atuam de duas formas: 1) compram mais de 50% das ações, e pagam ou renegociam as dívidas mais urgentes. Uma vez quitadas as contas e estabilizada a crise econômica financeira, negociam e vendem sua participação a outro empresário, geralmente com atuação no mesmo ramo, por um valor substancialmente maior do que o pago anteriormente; ou 2) de forma menos usual, quitam todas as dívidas e assumem a gestão da empresa ou companhia em crise, no intuito de reconstruí-la, tornando-a saudável para lucrar com as operações da empresa e, posteriormente, colocá-la à venda por um preço bem maior do que o adquirido (ou, até mesmo, permanecer com a empresa).
No Brasil, operações com distressed assets têm ocorrido com grande frequência, notadamente quando uma empresa em crise apresenta um grande passivo trabalhista e faz uso dos procedimentos previstos na Lei 11.101/05, para tentar se reerguer.
As projeções Dados da Serasa Experian apontam que, já em 2020, será registrado um número recorde de pedidos de recuperação judicial, ultrapassando os 1863 casos registrados no ano de 2016, o que criará um ambiente extremamente propício para esses fundos agressivos, que não medirão esforços para saborear o banquete que se desenha.
Cabe ressaltar que, após a crise de 2014, constatou-se que diversos fundos estrangeiros compraram participações em empresas brasileiras em crise ou quebradas, chegando a movimentar milhões de reais. De algumas transações resultaram brigas judiciais, provocando certo trauma aos fundos internacionais que acabam internalizando a impressão de que a Justiça brasileira, além de morosa, burocrática, é amplamente favorável aos devedores, gerando instabilidade e insegurança por parte de investidores estrangeiros nessas transações.
Porém uma reflexão sobre a nomenclatura e utilidade desses fundos focados em ativos para a Reestruturação de Empresas há de ser feita: considerando que os abutres são aves que esperam a presa ficar fragilizada ou morrer, para então matá-las, seria realmente correto considerá-los como Abutres? Ou seria mais adequado chamá-los de Pássaros-Palito diante da sua verdadeira simbiose e cooperação com a empresa em crise? Explico:
O pássaro-palito é uma ave que penetra na boca dos crocodilos, para alimentar-se de restos alimentares e de vermes presos entre seus dentes. A vantagem é mútua, porque, em troca do alimento, o pássaro livra os crocodilos dos parasitas. A relação entre o pássaro-palito e o crocodilo africano é um exemplo de mutualismo. É assim que vemos a relação entre o fundo distressed e a empresa em crise.
Fazendo uma analogia, o fundo atua como o pássaro que corre o risco de ficar na boca do crocodilo (empresa em crise) retirando parasitas da boca do réptil. Essa atuação é um exemplo de mutualismo. O pássaro (fundo) se alimenta do que fica situado entre os dentes do crocodilo retirando os vermes, fungos e outras bactérias que poderiam levá-lo à morte (falência). Ou seja, voltando à nossa analogia, havendo boa simbiose, o fundo lida com o perigo (inerente a todo investimento), mas se beneficia de alguns ativos e, com muita frequência, ajuda a empresa a se recuperar, evitando a falência.
Por isso, nestas breves linhas, propomos uma revisão terminológica do apelido dado a esses fundos, porque longe de serem “abutres”, em diversos momentos, mais parecem ser parceiros a soerguer empresas. Diante do exemplo de mutualismo, optamos chamá-los de “pássaros-palito”.
Em suma, nesse relacionamento (entre fundo e empresa recuperanda) percebe-se também uma relação de mutualismo, uma verdadeira simbiose: os dois se beneficiam, já que o pássaro-palito (fundo) consegue comida (lucro) enquanto o crocodilo (atacado por parasitas, aqui simbolizados por elementos da crise pandêmica) recebe um habilidoso serviço de limpeza (reestruturação, melhores condições de pagamento e eficiência em gestão).
Se analisarmos com profundidade, além das críticas, perceberemos que esses fundos buscam por oportunidades de investimento, incorrendo em grandes riscos, sobrevoando o mercado buscando resquício de vida em ativos que parecem mortos, descendo e pousando a terra firme ao se deparar com uma oportunidade de investimento.
Denota-se que em muitos casos, os fundos são os responsáveis por efetivamente ressuscitar uma empresa que estava à beira da morte, salvando empregos, preservando a empresa, promovendo o estímulo à atividade econômica e mantendo sua função social, viabilizando a superação da crise econômico-financeira do devedor. Daí ser injusta e inadequada a pecha de “abutre”. Esse apelido parece, em alguma medida, depreciar uma atividade tão importante socialmente.
Não se pode olvidar que, hoje, ao olharmos para o céu, percebemos que os “abutres”, ou melhor, “pássaros-palito” já sobrevoam acima das nossas cabeças, mesmo apesar das críticas, da generalização simplista e até do desconhecimento sobre a sistemática de sua atuação por parte dos operadores do mundo da insolvência. Essa já é uma realidade! Que as aves e os crocodilos estejam preparados!
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