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Abuso do direito de voto na assembleia geral de credores em tempos de covid-19

Em tempos de colapso econômico, deve-se estimular a fundamentação do voto desfavorável ao Plano de Recuperação Judicial, de modo a evitar o exercício abusivo do direito de manifestação pelo credor.

17/8/2020

Em tempos de crise econômica sistêmica, como a que vivemos atualmente devido à pandemia do covid-19, o instituto da Recuperação Judicial torna-se ponto focal de debate no mundo jurídico, bem como manchete nos principais veículos de comunicação do país. Não é de se esperar menos.

Isto porque especialistas estimam que o número de pedidos de Recuperação Judicial este ano alcançará a marca de 3.500 pleitos1, podendo chegar a 5.000 requerimentos2. Portanto, dúvidas não subsistem acerca do número recorde de pedidos de Recuperação Judicial em um único ano, tendo em vista que em 2016, ano com a maior quantidade de requerimentos, foram 1.863 casos.

Assim, certamente um dos assuntos mais abordados recentemente, considerando o imperativo isolamento social imposto pelo covid-19, é a realização remota das Assembleias Gerais de Credores (AGC), quer seja esta efetuada integralmente pelo meio virtual quer seja implementada de maneira híbrida.

No presente artigo, no entanto, não versaremos acerca do modo apropriado para a efetivação das AGC, mas sim sobre o direito exercido pelos credores neste órgão deliberativo, soberano dentro da perspectiva da Recuperação Judicial. Mais especificamente o abuso praticado pelos detentores de crédito ao exercitá-lo indevidamente.

Pois bem, primeiramente insta salientar que, diferentemente do Código Civil e da lei 6.404/76, a lei 11.101/05 não prevê expressamente as hipóteses do exercício abusivo do direito de voto, bem como não estabelece eventuais sanções. Em razão disto, coube à doutrina e à jurisprudência, ao longo desses anos, moldar um entendimento acerca do tema.

Como sabido, o procedimento de Recuperação Judicial visa criar um ambiente favorável à negociação entre o devedor e seus credores. Dessa forma, resta examinar em que momento o conflito de interesses deixa de ser mero desentendimento e passa a ser um ato ilícito revestido de abusividade. Nesse sentido, assegura Manoel Justino Bezerra Filho3:

O credor não tem qualquer obrigação de concordar com o plano, se este não atende suas expectativas empresariais. Claro que, se fundamentar o voto, terá melhores condições de se posicionar em eventual alegação de abusividade de voto. Continuando o pensamento, ao credor não há obrigação de fundamentar o voto; ao devedor, ou mesmo a terceiro credor interessado é que caberá, se for o caso, alegar tratar-se de voto abusivo e comprovar tal alegação.

Observa-se, portanto, a partir da leitura do trecho supra colacionado, que na teoria os credores, no âmbito da AGC, poderão exercer seu direito de voto sem a necessidade de justificá-lo, pois não há nenhum dispositivo previsto na lei 11.101/05 que os obrigue a fazê-lo.

Assim, o credor deve votar com o fito de otimizar a satisfação de seu crédito, de modo a minimizar ao máximo seus prejuízos, considerando evidentemente a capacidade econômico-financeira da Recuperanda para realizar esse pagamento, bem como a classe de seu crédito, o valor total do passivo sujeito ao processo de recuperacional, as condições de pagamento propostas no Plano de Recuperação Judicial (PRJ) e a possibilidade de recebimento de alguma quantia caso seja decretada a falência do devedor.

Como se vê, a lei 11.101/05 não impõe ao credor a obrigatoriedade de votar no interesse da Recuperanda, pois, caso fosse esta a intenção, o legislador teria encarregado única e exclusivamente o magistrado acerca da concessão da Recuperação Judicial, nos moldes da antiga concordata, cabendo ao julgador apenas a apuração de regularidade dos documentos instrutórios do pedido.

Logo, indubitavelmente é legal o exercício do direito de voto pelo credor no sentido de rejeitar o Plano de Recuperação Judicial, acarretando na improcedência do pedido recuperatório, sempre que realizado em conformidade com a legítima expectativa de otimizar a satisfação de seu crédito. Isto porque, o credor pode entender que aquela sociedade empresária não é mais viável, ou desconfia da exequibilidade da proposta de pagamento apresentada pelo empresário, ou até mesmo porque confia que o pagamento de seu crédito no âmbito da Recuperação Judicial será inferior ao que se espera apurar em caso de decretação da falência.

Ocorre que o credor, em diversas ocasiões, é um empresário, que deve nortear seu voto de maneira a eleger uma alternativa que resulte na potencialização de seu crédito, seja por meio da aprovação da Recuperação Judicial ou da decretação da falência do devedor, permitindo-lhe mitigar seus prejuízos.

No tocante a esta questão, Wald e Waisberg posicionam-se do seguinte modo4:

O voto do credor na assembleia geral também se sujeita, de certa forma, aos princípios comentados. Nesse ponto, é bom notar que o credor vota considerando o seu interesse em receber o crédito. Esse o interesse que legitima seu voto. Não se pode impor a ele a obrigação de aprovar o plano. Mas pode ocorrer eventual abuso no exercício do voto ou conflito de interesses, e esses serão confrontados com as diretrizes da lei.

Por outro lado, a jurisprudência recente, em alguns casos, vem entendendo este ponto em sentido contrário, interpretando que o voto de rejeição ao Plano de Recuperação Judicial deverá ser justificado pelo credor, de maneira que este explicite os critérios objetivos que o levaram a agir de tal modo5 6.

Considerando este entendimento revelado em alguns julgados, constata-se que o voto do credor pode ir no sentido oposto aos interesses da empresa, desde que a manifestação de vontade deste titular de direito seja lógica e racional, de modo a satisfazer seu interesse enquanto credor. Caso contrário, um eventual voto de rejeição ao PRJ deverá ser justificado pelo credor, de maneira que este especifique os motivos que o levaram a agir de tal modo.

Neste raciocínio, o titular de crédito não deverá atender somente ao seu interesse pessoal, aquele enquanto credor, de acordo com a viabilidade econômico-financeira da sociedade empresária, mas também obedecer e cumprir os princípios fundamentais da Recuperação Judicial, qual seja promover a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.

Justamente pelo fato de o direito de voto do credor não ser absoluto, sendo este limitado pelos bons costumes, a boa-fé e pela função social e econômica, como preconizado pelo artigo 187 do Código Civil. Todavia, a dedução de um eventual exercício irregular de direito jamais pode ocorrer puramente com estes conceitos abertos, que servirão apenas como disposições limitativas, mas sim a partir da análise do caso concreto.

Como é de se esperar, deste modo, a jurisprudência veda categoricamente esta abusividade, de modo a proteger a coletividade por meio da preservação da empresa, salvaguardando sua função social, mantendo a fonte produtora e os interesses dos demais credores7.

Portanto, apesar de não previsto expressamente na legislação falimentar, o exercício abusivo deste direito de manifestação é fortemente vedado no âmbito da Recuperação Judicial, justamente pelo fato de violar o princípio da boa-fé e os bons costumes, que regem nosso ordenamento, bem como norteiam este instituto em outras legislações.

Ora, afinal, deve-se sempre analisar o ordenamento jurídico de uma maneira sistêmica, através de uma perspectiva macro, restando patente que, embora não exista dispositivo legal na lei 11.101/05 contemplador do exercício irregular deste direito, a sua prática indevida fere o ordenamento, devendo, portanto, ser repelida pelo Direito.

Como se não bastasse, em circunstâncias deste exercício irregular, é flagrante a violação ao fim econômico inerente ao direito de voto, tendo em vista que a condição de credor assegura ao indivíduo, na Assembleia Geral de Credores, o direito de se manifestar em conformidade com sua particular convicção no tocante a melhor forma de recebimento do crédito, ainda que no processo falimentar após eventual rejeição do PRJ. Caso contrário, estará presente a hipótese do artigo 187 do Código Civil, restando nítido o ato ilícito cometido.

Isto dado que, a partir do momento que o titular do crédito exerce o direito de voto com finalidade diversa à melhor satisfação de seu crédito, procedendo motivado com o fito de atingir interesses outros, sejam estes próprios ou de terceiros, é provável que esta preferência manifestada esteja encoberta de abusividade.

Isto porque, a motivação econômica para justificar a abusividade, neste caso, deriva da distorção que a execução do voto pode ocasionar ao destino da empresa em crise, pois, como exposto, o objetivo do processo de Recuperação Judicial é permitir a criação de um ambiente favorável à negociação entre o devedor e seus credores. Logo, se a decisão tomada pelo credor não se fundamenta, essencialmente, em buscar a melhor forma e a melhor moeda para satisfação da obrigação inadimplida pelo empresário, será violado o objetivo econômico da lei 11.101/05.

Destaque-se novamente que não haverá abuso de direito na hipótese do voto manifestado por credor contra o Plano de Recuperação Judicial ter se embasado na suposição de que na falência seu crédito será melhor satisfeito, seja por qualquer motivo, igualmente quando crer que a empresa em questão não é mais viável, dentre outros motivos que podem fundamentar plausivelmente sua decisão. Neste sentido, João Pedro Scalzilli intenta estabelecer parâmetros para a análise de um eventual voto abusivo8:

Na tentativa de sistematizar a questão, entende-se que são possíveis critérios para averiguar o abuso do voto de credor na deliberação acerca do plano de recuperação judicial: (I) a exequibilidade dos seus termos e condições e, a partir daí, a probabilidade de superação da crise; (II) a comparação entre a posição do credor na recuperação judicial e em uma eventual falência da recuperanda (best-interest-of-creditors test, na expressão utilizada nos Estados Unidos).

Cumpre destacar, por fim, que se anteriormente à pandemia do covid-19 já existia uma concepção relativa à necessidade de fundamentação do voto desfavorável ao PRJ, no contexto pós-pandêmico este entendimento estará cada vez mais estabelecido, eis a temerosa previsão da quantidade de pedidos de Recuperação Judicial que devem ser realizados este ano.

De outro modo, indubitavelmente observaremos diversas empresas colapsarem e rumarem à falência por exercício irregular do direito de voto, o que obviamente é um grave risco sistêmico, considerando a importância da empresa para a manutenção da ordem econômica-social de nossa sociedade, devendo-se evitar ao máximo que sua extinção ocorra, pois este extermínio, por meio da decretação de sua falência, representa uma agressão à sociedade e, diante desta situação, o Estado não pode ser omisso.

Como pontuado, então, o titular do crédito pode e deve privilegiar seus interesses, enquanto credor, de forma a mitigar seus prejuízos. Todavia, na ocasião em que o credor demonstrar entendimento diverso ao melhor pagamento do valor que tem a receber, cabe a este motivar sua manifestação, apesar da lei 11.101/05 não impor a fundamentação do voto, caso contrário evidente será a possibilidade de controle judicial do voto, procedendo-se com a invalidação deste com fundamento no que dispõe o artigo 187 do Código Civil.

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1 Clique aqui. Acesso em 3/08/20 às 12:59

2 Clique aqui. Acesso em 3/8/20 às 13:11

3 BEZERRA FILHO, Manoel Justino. O abuso do direito de voto em Assembleia Geral de Credores. Revista IBAJUD, Ano 1. 2ª ed., p. 32.

4 WALD, Arnoldo; WAISBERG, Ivo. Comentários aos artigos 47 a 49 da Lei de Falência e Recuperação de Empresas In: LIMA, Sérgio Mourão Corrêa; LIMA, Osmar Brina (Orgs.). Comentários à Lei de Falência e Recuperação de Empresas. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 321.

5 Agravo de Instrumento 0106661-86.2012.8.26.0000, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial TJSP, Des. Rel. Francisco Loureiro, julgado em 3/7/16

6 Processo 1037133-31.2015.8.26.0100, 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais do TJSP, juiz de direito Marcelo Barbosa Sacramone, proferida em 21/3/16

7 TJSC. AI 2015.045438-8, Des. Rel. Ronaldo Moritz Martins da Silva, Terceira Câmara de Direito Comercial, julgado em 18/2/16

8 SCALZILLI, João Pedro et. al., Recuperação de empresas e falência. São Paulo: Almedina, 2016. p. 324.

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*Guilherme Santos Macêdo é bacharel em Direito pela PUC/RJ. Sócio do escritório Marcello Macêdo Advogados.

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