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Moralização nas recuperações judiciais

Nos tempos atuais, a Recuperação Judicial se mostra como um dos principais mecanismos para auxílio às empresas em crise. Porém, o Judiciário deve estar atento para o uso correto, coibindo eventuais fraudes.

17/8/2020

Em tempos de crise como o que atualmente estamos vivenciando, salta-nos ainda mais aos olhos a importância de mecanismos para a preservação de empresas, como a lei 11.101/05

Porém, é sempre importante termos em mente que tal diploma visa, para os casos específicos de Recuperação Judicial, a preservação da sociedade empresária e todos os benefícios advindos da atividade empresarial, como os empregos gerados, a circulação de riquezas, o recolhimento de tributos etc., não se confundindo, em absoluto, com a preservação do empresário e do seu patrimônio pessoal. 

Obviamente que os bons resultados financeiros para o empresário, advindos da atividade empresarial, podem ser considerados mais do que justos, diante dos benefícios sociais que ela traz, com a geração de empregos, por exemplo, bem como diante do grande risco que ela engloba, principalmente em nosso país, cuja carga tributária é elevadíssima, bem como diante de outros fatores que reduzem sobremaneira a margem de lucros. 

Dessa forma, diferentemente do olhar crítico acerca do patrimônio dos empresários, mostra-se coerente o olhar de justiça acerca disso, pois os empresários honestos que atingem o sucesso certamente percorrem caminhos tortuosos, sendo que tais caminhos, quando bem seguidos, em observância ao aspecto da lisura, da eficiência e da competência, trazem inúmeros benefícios para o país, como os já citados. 

Porém, o que se percebe, em outros determinados casos, é o uso da atividade empresarial de forma desvirtuada, ineficiente e fraudulenta, com o objetivo de enriquecimento puro, em detrimento, muitas vezes, do país, dos colaboradores e dos credores. 

Felizmente isso não é a regra; porém, quando nos deparamos com esse cenário, somado ao uso do mecanismo da Recuperação Judicial, faz-se necessário agir, como forma de inibir tal prática, sendo o papel do Judiciário apurar as condutas ilícitas, retirar o sócio fraudador da gestão da sociedade empresária e puni-lo, com os rigores da lei.

Diante disso, faz-se necessária a ação do juiz da causa, subsidiado, principalmente, pelo Administrador Judicial, que é quem fiscaliza as atividades da sociedade em recuperação e tem o dever de identificar as práticas ilícitas.

Sobre a figura do Administrador Judicial, vê-se, com certa frequência, críticas à sua remuneração, vista algumas vezes como elevada. Porém, parece-nos que esse não deve ser o caminho.

Muito pelo contrário: o Judiciário deve zelar pela boa remuneração do seu Auxiliar, pois, para que o Administrador Judicial consiga identificar todas as eventuais práticas ilícitas de empresários fraudadores, faz-se necessários robustos investimentos em contratação de colaboradores seniores e muito qualificados, que atuem com poucos processos (para conseguir analisar todos os detalhes), bem como investimentos em treinamentos, tecnologia e gestão eficiente.

Dessa forma, o Judiciário deve fixar boa remuneração, adequada aos investimentos necessários, porém também cobrar que tais investimentos sejam feitos, analisando a estrutura do seu Auxiliar e também o cobrando pela máxima eficiência do seu trabalho.

Assim, cada vez mais, será possível que o Administrador Judicial (e, por consequência, o Judiciário), traga eficiência financeira ao Processo de Recuperação Judicial, evitando-se desvios de recursos, práticas fraudulentas de aprovação de planos etc.

Atendo-nos, mais especificamente, aos desvios de recursos, infelizmente vários são os exemplos de sua prática, como pro-labores de valor ínfimo indicados aos sócios e administradores da sociedade em recuperação, o que demonstra falta de realidade sobre o real recurso destinado a eles, além de fraude ao fisco.

Sobre esses mesmos recursos aos sócios e administradores, vê-se também valores muito além da prática de mercado, por várias vezes também maquiados como “empréstimos aos sócios”, “despesas administrativas”, “pagamentos de mútuos anteriores” etc.

Sendo assim, por vezes se vê que os valores destinados aos sócios e administradores, além de não estarem sendo lançados da forma devida (lesando o fisco), ainda estão muito além dos valores que devem ser recebidos por eles, gerando desvios de recursos, pois não se contesta que o empresário deva receber pelo seu trabalho frente à empresa (pro-labore justo e de mercado – quando possível), porém, em uma sociedade devedora em prejuízo contábil, não se admite a distribuição de resultados/dividendos (posto que inexistentes), podendo tal prática ser enquadrada como desvio de valores em detrimento do próprio soerguimento da empresa e do pagamento dos credores.

Outros pontos que seguem a mesma linha são as atividades não faturadas, bem como as faturadas em outros CNPJs, que não os que compõem o polo ativo da Recuperação Judicial.

Nesse ponto, falta à lei vigente disciplinar melhor como se trabalhar com os grupos empresariais; porém, a jurisprudência cada vez mais se aprofunda na questão, visando equacionar tal lacuna legislativa.

E isso se mostra de suma importância, pois se vê muitos casos nos quais grande parte do faturamento do grupo passa pelos CNPJs não constantes do processo recuperacional, não se demonstrando, portanto, a realidade financeira, sendo também tal prática uma enorme fonte de desvios, razão pela qual o Administrador Judicial também deve sempre estar atento, apontando ao Judiciário tal circunstância.

E muitos são, infelizmente, os outros exemplos de fraudes identificadas, o que deve sempre levar à ação do Judiciário para coibir tais práticas, com o uso do artigo 64 da Lei 11.101/2005, valendo-se de ferramentas como o watchdog (que, em nossa visão, pode ser usado apenas para casos muito específicos, diante da grande influência da permanência do empresário fraudador na operação), e do Gestor Judicial, figura adequada quando nos deparamos com tais fraudes, retirando-se os sócios e/ou administradores fraudadores da operação, substituindo-os pelo gestor, que seguirá com a gestão da sociedade em recuperação, visando sua manutenção, nos termos do artigo 47 da lei, posto que, como dito no início, a Lei 11.101/2005 visa a preservação da sociedade empresária, e não da figura do empresário, principalmente do empresário fraudador.

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Fernando Pompeu Luccas é advogado, Administrador Judicial, Presidente da Comissão de Estudos em Falência e Recuperação Judicial da OAB/Campinas, Sócio-Diretor da Brasil Trustee Administração Judicial e da Mangerona & Pompeu Advogados. Especialista em Direito Processual Civil pela PUC/Campinas, em Direito Empresarial pela Escola Paulista de Direito/SP e em Recuperação de Empresas e Falências pela FADISP. Professor dos cursos de extensão e pós-graduação da Escola Paulista de Direito/SP e da FADISP. 

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