A violência doméstica e familiar no Brasil é um tema por demais constrangedor, eis que os registros deste tipo de ilícito posicionam nosso país num quadro de desalento, na medida em que ostentamos a triste marca de 5° país do mundo com maior número de feminicídios.
Ademais, outros fatores negativos podem ser enunciados, sobretudo nestes tempos de pandemia, visto que os dados apontam que somente no primeiro mês de quarentena, as denúncias de agressões contra mulheres tiveram uma alta de 40% em relação ao mesmo período de 2019; no mês de março, período que demarcou o início do isolamento social, esse tipo de violência teve um avanço de quase 18% e o ápice da violência contra mulheres, assim identificado como o feminicídio, teve alta de 22% durante a quarentena.
Não há dúvida que, a despeito dos fatores negativos em relato, há aspectos positivos que merecem destaque, no que podemos citar, especialmente, o advento da lei 11.340 de 2006, cuja alcunha recebe o nome de “Lei Maria da Penha”, reconhecida no âmbito da Organização das Nações Unidas como a 3ª melhor legislação de combate à violência doméstica do mundo, a criação de centenas de delegacias da mulher e de varas judiciais especializadas no processamento e julgamento de crimes de violência doméstica e familiar, a criação de casas abrigo em todo o país, a imposição de milhares de medidas protetivas, dentre outras ações que confirmam terem havido avanços, tanto no campo preventivo, como na seara repressiva.
Contudo, seguimos como país, enfrentando um grande desafio de ordem cultural, assim considerado o retrógrado senso comum de profundo e disseminado desrespeito aos direitos fundamentais das mulheres que se torna uma realidade factual, quando passamos a analisar os dados estatísticos correlatos.
Destarte, e à guisa de ilustração, deve ser mencionado que, considerando-se somente os registros em unidades policiais, mais de 1,6 milhão de mulheres sofreram espancamento em 2018, onde 76,4% das vítimas conheciam o agressor, que mormente é alguém do convívio e da intimidade da vítima, sendo certo, ainda, que 42% dos crimes ocorreram em ambiente doméstico.
Já em 2019, registrou-se a instauração de 563 mil novos processos, um aumento de 10% em comparação a 2018; por seu turno o feminicídio registrou uma alta de 5% em relação a 2018, com quase 2.000 registros de morte de mulheres.
De ser observado que, no plano mundial, a taxa anual de feminicídios é de 2.3 mortes para cada grupo de 100 mil mulheres; já no Brasil, se registra praticamente o dobro deste índice, ou seja, 4.5 mortes para cada grupo de 100 mil mulheres.
No território brasileiro, a cada 3 vítimas de feminicídio, 2 são mortas em casa; segundo estudos do Ministério Público do Estado de São Paulo, em apenas um mês, durante a pandemia, teria havido aumento de 30% dos casos de violência contra a mulher.
Em março de 2020, foram determinadas e impostas 2.500 medidas protetivas em caráter de urgência, contra 1.934 do mês anterior; foram ainda registradas 177 prisões em flagrante do mês de fevereiro, contra 268 somente no mês de março, tudo a indicar que a pandemia teve mesmo um efeito criminógeno potencializador.
Não se olvida que fatores conexos, tais como o alcoolismo, o uso de drogas, o abalo emocional que acompanha a expectativa de desemprego, a incerteza quanto aos resultados econômicos do período, o convívio forçado de pessoas em casas ou apartamentos durante as vinte e quatro horas do dia, terminam por gerar um estado acendrado de tensão nos relacionamentos familiares.
Ademais, e até para que não se afirme de forma equivocada que a questão do incremento da violência doméstica e familiar no período de pandemia é um assunto circunscrito às fronteiras brasileiras, deve ser lembrado que esse mesmo fenômeno ocorreu, em números expansivos, igualmente em outros países da América do Sul e do Norte e igualmente se fez presente de forma expressiva no continente europeu.
Assim é que em países como Espanha, França e Itália, mulheres vítimas de violência foram, com o suporte do governo, levadas para hotéis, para cumprir o isolamento social, bem como aplicativos de celular (apps) normalmente empregados para denúncias de bullying e venda de drogas, passaram a ser utilizados para informar eventos de violência doméstica.
Em nosso país, além da criação de programas governamentais voltados para a prevenção desse ilícito, apresenta-se como uma ferramenta adicional de auxílio à profilaxia social, o projeto de lei 2.510 de 2020, de autoria do Senador Luiz do Carmo, onde o parlamentar propugna a alteração da lei 4.591/64, o Estatuto dos Condomínios” e do Código Civil, na parte que se refere ao condomínio edilício, para estabelecer o dever de condôminos, locatários, possuidores e síndicos, informar às autoridades competentes os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher de que tenham conhecimento, no âmbito do condomínio, de modo a propiciar a repressão e a investigação destes mesmos fatos.
Descumprida a obrigação, pode o síndico ou o administrador ser destituído da função e penalizado com multa o condomínio. O mesmo projeto de lei admite a possibilidade de o síndico vir ainda a ser processado criminalmente como incurso no crime do art. 135 do Código Penal – omissão de socorro – criando para a pessoa do gestor condominial, uma causa de aumento de pena da ordem de um terço, para as situações em que a conduta negativa do responsável legal do condomínio possa guardar relação com a situação de violência doméstica ou familiar praticada contra a mulher.
Uma vez vigente tal novel disposição legal, passaremos a ter mais um mecanismo para auxiliar no processo de rompimento daquilo que a pesquisadora e psicóloga Lenore Walker denomina de “ciclo da violência do relacionamento abusivo”, denominação esta que se apresentou como resultante da realização de estudos dos quais fizeram parte mais de 1.500 mulheres que confirmaram terem sido vítimas de abuso psicológico ou de agressões físicas em ambiente conjugal, em 1979.
Segundo este estudo, o citado ciclo da violência é permeado por fases ou etapas, assim delineadas:
Fases |
Características |
Fase 1 |
Encantamento |
Fase 2 |
Início da Tensão Psicológica |
Fase 3 |
Aumento da Tensão |
Fase 4 |
Atos Efetivos de Violência |
Fase 5 |
Arrependimento e Comportamento Carinhoso |
No Brasil, pesquisas realizadas sobre este tema demonstram que, segundo a opinião pública, as mulheres ficam na relação e não abandonam o lar por “gostarem de apanhar” (65%); já quando se ouvem as mulheres, vítimas de agressões, a maioria afirma que permanece junto ao cônjuge agressor pelo fato de temerem pela prática de atos de vingança e de represália, contra ela mesma e/ou contra os filhos.
A ONU Mulheres adverte sobre o erro frequente de empregar o termo "violência de gênero" como idêntico à expressão “violência contra a mulher”; deve ser observado que a definição de violência de gênero é mais abrangente e aponta para o aspecto do caráter de subordinação da mulher no seio social e sua imanente condição de pessoa vulnerável diante dos atos de violência, que são empregados contra qualquer pessoa que deixe de acatar os papéis que um núcleo social específico impõe aos integrantes desta mesma sociedade.
A possível alteração da legislação civil, vem, portanto, em boa hora, também porque, diversos estados da federação já vinham criando leis regionais, estabelecendo multas aplicáveis a condomínios quando da inércia de seu responsável legal – o síndico - em levar o fato abusivo, a notitia criminis, ao conhecimento das autoridades públicas.
Espera-se assim, que o conjunto destas normas de índole administrativa, civil e penal, aplicadas conjuntamente, tenha o condão de contribuir com a redução deste perverso estado de coisas em que mulheres seguem sendo vítimas de violência moral, física, sexual, psicológica e patrimonial, atos estes, indiscutivelmente, atentatórios e vilipendiadores da dignidade da pessoa humana.
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