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Reforma tributária estadual e o fundo devolve ICMS

Proposta gaúcha traz à tona discussões sobre o financiamento dos Fundos Estaduais.

14/8/2020

Em meio as discussões de uma Reforma Tributária Nacional, o governo do Estado do Rio Grande do Sul formulou e apresentou proposta com intenção de dar início a uma reforma estadual. A proposta é apresentada com objetivo de simplificar o modelo tributário, padronizá-lo com os de outros Estados e se aproximar dos sistemas mais modernos do mundo. Em que pese o discurso que justifica as mudanças soe agradável e ambicioso, muitos são os pontos que merecem uma análise pormenorizada e atenção, dentre os quais destaca-se o seguinte: A Criação do Fundo Devolve ICMS.

Segundo o governo do Estado do Rio do Sul, o fundo será formado com recursos proporcionais aos benefícios concedidos pelo Estado. O objetivo é obter recursos para a política de devolução do ICMS para famílias de baixa renda, para investimentos em infraestrutura relacionados à atividade agropecuária, para incentivo à inovação e à pesquisa científica e tecnológica e para o equilíbrio das finanças públicas.

A tentativa de instituição desse fundo vem na esteira dos desdobramentos decorrentes do Convênio Confaz no 42/2016. Em suma, por esse Convênio, houve autorização para Estados e o Distrito Federal  condicionarem a fruição de incentivos e benefícios fiscais, financeiro-fiscais ou financeiros, inclusive os decorrentes de regimes especiais de apuração (que resultem em redução do valor ICMS a ser pago), ao depósito, pelas empresas beneficiadas, de montante equivalente a, no mínimo, dez por cento do respectivo incentivo ou benefício.

Na proposta gaúcha1 o fundo será financiado a partir de duas fontes principais, que serão exigidas da seguinte forma:

I - 10% sobre o valor de Créditos Presumidos não contratuais (exceto os oriundos de contratos de investimento);

II - 10% sobre o valor do ICMS isento nas saídas de insumos agropecuários.

Ocorre que, sob o argumento de promoção do equilíbrio fiscal, desenvolvimento econômico e justiça social através do Fundo Devolve ICMS, o governo do Estado do Rio Grande do Sul propõe, em verdade, uma nova exação que, quando analisada, caracteriza-se claramente como tributo. Veja-se que a cobrança que se pretende instituir nada mais é que prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitui sanção de ato ilícito.

A instituição da chamada “contribuição”, nos termos da proposta apresentada,  acaba por trazer à tona, novamente, possíveis problemas decorrentes dessa exigência, os quais passa-se a analisar, diga-se desde já, sem a intenção de esgotar o tema.

A princípio, cumpre destacar que, ao definir a sistemática de financiamento do Fundo Devolve ICMS, o Estado do Rio Grande do Sul acaba, como visto, por instituir novo tributo. Nesse contexto, faz-se necessário analisar tal proposição a luz das regras de competência tributária. Assim, da análise do texto constitucional pode-se apontar possível inconstitucionalidade da proposta apresenta pelo Governo Estadual, uma vez que essa cobrança, salvo melhor juízo, não se encontra no rol de impostos previstos nas competências tributárias dos estados e do DF e, tampouco, pode ser vista como taxa ou contribuição de melhoria.

O alargamento da competência estadual outorgada pela Constituição da República afrontaria diretamente a segurança jurídica e, sem dúvidas, seria objeto de questionamento pelos contribuintes. A controvérsia gerada por esse sistema, dos chamados Fundos Estaduais de Equilíbrio Fiscal (FEEF’s), em que pese recente, já vem sendo levada à análise do Supremo Tribunal Federal.  Como é o caso, por exemplo, da sistemática criada no Rio de Janeiro pela Lei 7.428, que é objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn no 5635).

Acerca da necessária observância das regras constitucionais de competência tributária e da impossibilidade de extensão das mesmas, imperioso referir lição de Humberto Ávila2:

“A interpretação dos dispositivos constitucionais relativos à atribuição de poder de tributar e a aplicação de regras de competência tributária não podem produzir resultados extensivos ou analógicos, pois estes, conquanto eventualmente permitidos nos âmbitos em que os direitos fundamentais são promovidos pelos particulares, não podem ser admitidos nos âmbitos em que os direito fundamentais dos cidadãos são restringidos pelo exercício do poder estatal.

Além disso, outro ponto que relaciona-se com o anterior – na definição da espécie tributária – e merece destaque, é a vinculação de receitas de ICMS ao Fundo. Nesse ponto, cumpre colacionar o art. 167, IV da Constituição da República3, que assim dispõe:

“Art. 167. São vedados:
IV - a vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, ressalvadas a repartição do produto da arrecadação dos impostos a que se referem os arts. 158 e 159, a destinação de recursos para as ações e serviços públicos de saúde, para manutenção e desenvolvimento do ensino e para realização de atividades da administração tributária, como determinado, respectivamente, pelos arts. 198, § 2º, 212 e 37, XXII, e a prestação de garantias às operações de crédito por antecipação de receita, previstas no art. 165, § 8º, bem como o disposto no § 4º deste artigo;”.

Nesse sentido, é vedado pela Constituição da República a vinculação das receitas de impostos a fundo. Da leitura da proposta apresentada, o que se vê é que o financiamento do fundo seria realizado com uma parcela de receitas que, caso não houvesse a instituição benefícios, seriam devidas a título de ICMS. Portanto, resta claro que há, por parte do Estado do Rio Grande do Sul a vinculação de receita de imposto ao Fundo Devolve ICMS, em total dissonância com a disposição constitucional supracitada.

Ou seja, com a proposta de Reforma Tributária Estadual destina-se as receitas oriundas da “contribuição” incidente sobre os créditos presumidos e insumos agropecuários ao Fundo Devolve ICMS. Cumpre referir que já houve análise de casos semelhantes no Supremo Tribunal Federal quando do julgamento, em 1997, dos Recursos Extraordinários 172.153 e 183.906, oportunidade em que a majoração de alíquota do ICMS destinada ao aumento de capital da Caixa Econômica do Estado de São Paulo para financiamento de programas habitacionais de interesse da população foi julgada inconstitucional  em face do disposto no art. 167, IV, da CRFB.

Além disso, na já mencionada ADIn 5635 houve, inclusive, parecer favorável da Procuradoria Geral da República à tese da requerente (Confederação Nacional da Indústria) para fins de reconhecer a inconstitucionalidade da cobrança instituída com base no Convênio Confaz 42/2016. Nessa oportunidade, segundo a PGR, restou verificada a vinculação de receitas de imposto ao FEEF, o que afrontaria o texto constitucional.

A situação calamitosa do Estado do Rio Grande do Sul, ou de qualquer outro estado, não pode, por melhor que possam soar as justificativas, flexibilizar regramento constitucional para fins de superar as dificuldades enfrentadas pelo ente federativo. Entendimento contrário, promove a insegurança jurídica, concedendo ao Estado a possibilidade de, discricionariamente, instituir novas exações em total desacordo com as normas constitucionais, afetando, sobremaneira a cognoscibilidade, estabilidade, confiabilidade e efetividade do Direito.

Em um momento “reformador” do Direito Tributário, mostra-se essencial que os legisladores e cidadãos estejam atentos às mudanças colocadas em pauta, a fim de que não haja uma subversão da ordem jurídica. O que, caso não observado, acarreta instabilidade social, tendo em vista a necessidade de um direito sólido para que sejam promovidos princípios fundamentais como a igualdade e liberdade. Nesse contexto, é indispensável que estejamos atentos, de fato, ao conteúdo das propostas de reforma apresentadas e, assim, não nos deixemos levar simplesmente pelo discurso, muitas vezes agradável, de quem as propõe.

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1- Reforma Tributária do Estado

2- ÁVILA, Humberto. Competências Tributárias: um ensaio sobre a sua compatibilidade com a noção de tipo e conceito. 1 ed. São Paulo: Malheiros, 2018.

3- BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). Disponível em: Clique aqui. Acesso em: 27 de jul. 2020.

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*Igor Kubaski é advogado no Koch Advogados Associados. Pós-Graduando em Direito Tributário pelo IBET/RS. Graduado em Direito pela PUCRS.

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