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O resgate do homem lombrosiano na Justiça Criminal Pátria: o caso do homem "Negrinho" condenado por sua raça no Paraná

Recomendo à defesa do acusado que, em seu embate nos tribunais superiores, utilize-se dos importantes estudos do professor Adilson Moreira sobre a hermenêutica ("Pensando como um negro: ensaio de hermenéutica jurídica, editora Contracorrente, 2019), que nos impõem a reflexão sobre a relevância da raça no processo interpretativo jurídico.

12/8/2020

A principal contribuição de Cesare Lombroso à Criminologia foi sua abjeta teoria sobre o "homem delinquente", desenvolvida no campo da "caracterologia", na tentativa de relacionar a tendência inata de certos indivíduos a um comportamento criminal.

A abordagem de Lombroso é descendente direta da "frenologia" (estudo da configuração externa do crânio como indicativo do desenvolvimento da faculdade cerebral) e da "fisiognomia" (estudo das propriedades mentais a partir da fisionomia do indivíduo).

Em síntese, após o estudo de milhares de casos de reclusões em prisões europeias, entrevistas com seis mil presos vivos e exames de resultados de 400 autópsias, Lombroso elaborou um rol de características físicas e psicológicas, que, a seu ver, comprovariam a irresistível propensão de certos indivíduos à criminalidade.

Para ele, o crime era um "fenômeno biológico" e não um ente jurídico, como afirmavam os clássicos. O criminoso seria um indivíduo distinto dos demais, um subtipo humano, um selvagem que - presentes as tais características físicas e psicológicas - já teria nascido delinquente.

Assim, certos indivíduos padeceriam de um "atavismo" (reaparição de características que foram apresentadas somente em ascendentes distantes) de tipo hereditário, reminiscente de estágios mais primitivos da evolução humana. Tais anomalias, denominadas de "estigmas" por Lombroso, poderiam ser expressas em termos de formas anormais ou dimensões do crânio e mandíbula, assimetrias na face e outras partes do corpo.

A teoria de Lombroso foi cientificamente desacreditada, mas, infelizmente, em meio ao racismo estrutural que nos permeia, parece ter sido recentemente resgatada em julgado proferido pela 1ª Comarca Metropolitana de Curitiba/PR, no último dia 19 de junho, ao condenar um homem - cujo apelido é “Negrinho” - a 14 anos e 2 meses de prisão por integrar uma organização criminosa e praticar furtos, levando em consideração, explicitamente, sua raça.

Escreveu a juíza Inês Marchalek Zarpelon na página 107 de sua sentença condenatória no Processo 0017441-07.2018.8.16.0013:

“Sobre sua conduta social nada se sabe. Seguramente integrante do grupo criminoso, em razão da sua raça, agia de forma extremamente discreta os delitos e o seu comportamento, juntamente com os demais, causavam o desassossego e a desesperança da população, pelo que deve ser valorada negativamente”.

Em outros dois trechos, nas páginas 109 e 110, a magistrada repete a mesma afirmação ao se referir ao acusado: 

“Sobre sua conduta social nada se sabe. Seguramente integrante do grupo criminoso, em razão da sua raça.” 

Ou seja, fosse o acusado de outra raça, fosse ele conhecido por "Branquinho", podemos inferir que sua sorte seria outra?

É cediço que ao magistrado cabe cuidar da correção da motivação de sua decisão judicial, a partir de elementos intrínsecos (a inexistência de contradição lógica do julgado e a correta exposição do convencimento judicial) e extrínsecos (a fundamentação dos arrazoados das partes). Assim, palavras importam!

Não se tratou de um descuido, um erro de digitação, mas da escolha repetida e renitente de uma mesma expressão ("raça") como componente de sua ratio decidendi. 

O uso da raça como elemento caracterizador da automática responsabilidade criminal expressa o olhar discriminatório de quem não se identifica no outro, configura ausência de alteridade e empatia. E é nesse caminho, da escancarada reprovação intrínseca e particular a determinadas características físicas, que o lombrosianismo ressurge e encontra-se com o racismo estrutural. Uma combinação injusta e explosiva a ser combatida sempre!

Há notícia de que além de recurso de apelação a defesa do réu também se apresentará perante o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Acertada a medida tomada pelo CNJ de pedido de providências para esclarecimentos: a resposta ao racismo estrutural deve ser sempre clara, rápida e efetiva.

Recomendo à defesa do acusado que, em seu embate nos tribunais superiores, utilize-se dos importantes estudos do professor Adilson Moreira sobre a hermenêutica ("Pensando como um negro: ensaio de hermenéutica jurídica, editora Contracorrente, 2019), que nos impõem a reflexão sobre a relevância da raça no processo interpretativo jurídico. 

Com Tribunal de Justiça do Paraná (TJ/PR) e o CNJ fica a nossa esperança de que também sejam considerados com acuidade tais estudos e, assim, sejam obstados o ressurgimento de teorias eugenistas, o resgate da abjeta figura do "homem delinquente lombrosiano" e a aceitação pacífica de um racismo estrutural por nossos tribunais.

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*Júlio César Bueno é sócio do escritório Pinheiro Neto Advogados.








*Este artigo foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico. 
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