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Conversão de flagrante em preventiva: Novas reflexões

É cedo para extrair conclusões definitivas sobre a conversão da prisão em flagrante em preventiva, antes que o STF, em seu colegiado maior, decida o alcance de todos os dispositivos da lei 13.964/19.

11/8/2020

Além de já termos analisado um dos aspectos jurídicos do art. 310, II, do Código de Processo Penal, na nota 49 de nosso Código de Processo Penal comentado, também o fizemos em artigo publicado no site Migalhas (Clique aqui, acesso em 7/8/20), em 10 de julho de 2020.

Porém, vamos renovar os argumentos, acrescentando outros relevantes.

Em breve recapitulação, reconhecemos  que a prisão cautelar pode originar-se de flagrante delito ou de ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente (art. 5º, LXI, CF). A prisão em flagrante pode ser concretizada por qualquer pessoa, por expressa autorização constitucional, constituindo autêntica e legítima medida de cautela, sem qualquer eufemismo de ser uma simples pré-cautela ou algo similar, pretendendo diminuir a sua força prisional inata à defesa da sociedade. 

Antes do advento da lei 12.403/11, a regra, no Judiciário, era analisar o auto de prisão em flagrante e, considerando-o em ordem, proferir o despacho: “flagrante em ordem; aguarde-se a vinda dos autos principais”, referindo-se ao inquérito. Por vezes, essa decisão de mantença da prisão em flagrante perdurava por todo o processo, até o trânsito em julgado, sem que se exigisse, efetivamente, do juiz, ao menos, que a fundamentasse, com base nos requisitos da prisão preventiva (art. 312, CPP).

A lei 12.403/11 aperfeiçoou o controle da legalidade e duração da prisão cautelar, advinda do flagrante. Modificou o conteúdo do art. 310 do Código de Processo Penal, para deixar claro haver, para a autoridade judiciária, três opções ao receber o auto de prisão em flagrante: a) relaxar a prisão, se a considerar ilegal; b) converter o flagrante em preventiva, se presentes os requisitos do art. 312 do CPP e não forem adequadas outras medidas cautelares alternativas; c) conceder liberdade provisória, com ou sem fiança. Poderia optar por uma dessas alternativas tão logo recebesse o referido auto de prisão em flagrante, sem passar previamente pelo Ministério Público ou por órgão de defesa.

A partir dessa alteração legislativa, parcela da doutrina passou a entender que, tendo a lei 12.403/11 vedado ao juiz decretar a prisão preventiva de ofício, durante a fase investigatória, a conversão do flagrante em preventiva dependeria de representação da autoridade policial ou de requerimento do Ministério Público. Do contrário, seria o equivalente a determinar a prisão preventiva de ofício, o que tinha sido proibido.1

Entretanto, outra parcela considerável da doutrina processual penal entendeu válida a conversão da prisão em flagrante em preventiva, de ofício, desde que presentes os requisitos do art. 312 do CPP.

Analisando o art. 310 e todas as suas hipóteses, sem mencionar a necessidade de representação da autoridade policial ou requerimento do Ministério Público, Gustavo Badaró menciona: “não sendo o caso de concessão de liberdade provisória, poderá aplicar medidas cautelares alternativas à prisão, incluindo a fiança (CPP, art. 310, caput, II, 2ª parte), isolada ou cumulativamente (CPP, 282, § 2º). Por fim, poderá decretar a medida mais gravosa, isto é, a prisão preventiva (CPP, art. 310, caput, II, 1ª parte). (...) Assim, ante as alterações promovidas pela lei 12.403/11, não basta mais que o juiz conclua que ‘o flagrante está formalmente em ordem, aguarde-se a vinda dos autos principais’. Se assim o fizer, sem indicar concretamente o motivo pelo qual a prisão em flagrante deverá ser convertida em prisão preventiva (art. 310, caput, II, primeira parte), a manutenção do acusado preso caracterizará constrangimento ilegal, por ausência de motivação para a prisão. No entanto, isto ainda não basta. Para converter a prisão em flagrante em prisão preventiva será necessário justificar, concretamente, serem ‘inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão’ (art. 310, caput, II), bem como não ser o caso de concessão de ‘liberdade provisória, com ou sem fiança’ (art. 310, caput, III)”.2

Ainda sobre o tema, explica Paulo Rangel: “o entendimento de que a manifestação judicial sem a intervenção do MP é inconstitucional é desarrazoada. Não há essa exigência na lei e não se pode extrair do art. 127 da CR tal conclusão, porque senão o MP deveria falar em todos os processos e ninguém, de bom senso até hoje, sustentou isso. Destarte, o juiz ao converter a prisão em flagrante em prisão preventiva o faz sem que haja, obrigatoriamente, manifestação do MP sobre, especificamente, a conversão porque já há denúncia, ou seja, provocada está a jurisdição. (...) Todavia, sustentar que a falta de manifestação do MP é inconstitucional é jogar a barra da interpretação longe demais. (...) O que se veda é a decretação da prisão preventiva autônoma, ou seja, como primeira razão de ser (art. 313) com o escopo de evitar perseguições políticas, em especial em cidades do interior onde a relação do juiz com a classe política acaba sendo um pouco mais próxima quebrando, às vezes, sua imparcialidade”.3

Essa posição tornou-se pacífica nos julgados do C. Superior Tribunal de Justiça. Por todos:

“1. O Juiz, mesmo sem provocação da autoridade policial ou da acusação, ao receber o auto de prisão em flagrante, poderá, quando presentes os requisitos do art. 312 do Código de Processo Penal, converter a prisão em flagrante em preventiva, em cumprimento ao disposto no art. 310, II, do mesmo Código, não havendo falar em nulidade” (RHC 120.281/RO, rel. ministro Ribeiro Dantas, 5ª turma, julgado em 5/5/20, DJe 15/5/20).

Assim também sempre nos pareceu correto, pois o magistrado não estaria decretando a prisão preventiva, durante a investigação, no tocante a um suspeito ou indiciado que estivesse solto (esta seria a determinação vedada de prisão preventiva de ofício pela lei 12.403/11). Havendo a prisão em flagrante, por força de mandamento constitucional, o que não se deve simplesmente olvidar ou menoscabar,  cabia ao magistrado, de pronto, se fosse o caso, validar essa prisão cautelar, em bases mais concretas, convertendo-a em preventiva, obrigado a fundamentar com alicerce nos requisitos do art. 312 do CPP.

Editou-se a lei 13.964/19, com algumas alterações no Código de Processo Penal, dentre as quais a vedação de o juiz decretar a prisão preventiva, de ofício, também durante a fase de instrução criminal. Somente essa modificação teria sido capaz de alterar todo o entendimento supra exposto de que a conversão do flagrante em preventiva passaria a ser vedado, se feito de ofício? Como regra, não nos parece, mas é essencial especificarmos as balizas nas quais nos pautamos, trazendo mais elementos a essa temática.

Independentemente do mérito da existência da audiência de custódia – se relevante direito fundamental ou não; se produtiva ou não, dentre outros aspectos – o fato jurídico é que ela foi incorporada em lei, no art. 287 do CPP e, igualmente, no art. 310, caput, e seu § 4º. Passou a ter significado no cenário da formalidade da prisão cautelar e sua validade; em outros termos, tornou-se obrigatória: “após receber o auto de prisão em flagrante, no prazo máximo de 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, o juiz deverá promover audiência de custódia com a presença do acusado, seu advogado constituído ou membro da Defensoria Pública e o membro do Ministério Público, e, nessa audiência, o juiz deverá, fundamentadamente: (...)” (art. 310, caput CPP, grifamos). A continuidade permaneceu inalterada: relaxar a prisão ilegal; converter o flagrante em preventiva se presentes os requisitos do art. 312 do CPP e não for adequada outra medida cautelar; conceder liberdade provisória.

Resta, então, o questionamento: e se porventura não for realizada essa audiência de custódia no prazo fixado em lei? Responde a indagação o § 4º do art. 310: “transcorridas 24 (vinte e quatro) horas após o decurso do prazo estabelecido no caput deste artigo, a não realização da audiência de custódia sem motivação idônea ensejará também a ilegalidade da prisão, a ser relaxada pela autoridade competente, sem prejuízo da possibilidade de imediata decretação de prisão preventiva”. Optou a lei pela proclamação da ilegalidade da prisão à falta da realização da audiência de custódia, embora tenha aberto a viabilidade de imediata decretação da preventiva.

Pois bem. Caso esse mencionado parágrafo estivesse em vigor, a audiência de custódia seria obrigatória, sob pena de gerar ilegalidade da prisão em flagrante, a merecer relaxamento. E, realizando a audiência de custódia, parece-nos mesmo contraditório o cenário no qual o juiz, analisando o auto de prisão em flagrante, com a presença obrigatória do Ministério Público, pudesse converter a prisão em flagrante em preventiva, sem representação da autoridade policial e sem o requerimento do órgão acusatório e, somente para argumentar, caso o MP se pronunciasse contra a prisão preventiva. Eis o ponto faltante de nossa anterior argumentação.

Pode-se, então, ingressar em dois cenários diversos, realizando-se a audiência de custódia: a) no primeiro, todo o debate acerca da conversão da prisão em flagrante em preventiva tornar-se-ia integralmente inócuo, porque o membro do Ministério Público expressamente requer a referida conversão e o juiz a defere; b) no segundo, a complexidade emerge, caso inexista representação da autoridade policial pela decretação da preventiva e o representante do Parquet, presente à audiência, requeira, de modo expresso, o relaxamento ou a concessão de liberdade provisória ao indiciado. Nesta hipótese, de fato, somos obrigados a concluir ser vedado ao magistrado ignorar o pleito e converter o auto de prisão em flagrante em preventiva. Nesta exclusiva situação, estaria agindo de ofício em fase de investigação, o que lhe é vedado.

Nem se diga ser a mesma situação que a existente antes da obrigatoriedade da audiência de custódia, visto que, em nossa visão, sem esta audiência, o auto de prisão em flagrante não passava pelo crivo do MP, seguindo direto ao magistrado e a lei lhe exigia uma posição imediata: soltar ou manter o indiciado preso cautelarmente. Mas, havendo a audiência, com a presença do representante do Ministério Público, torna-se impossível que não se colha a sua manifestação sobre a prisão cautelar. Logo, requerendo este a conversão do flagrante em preventiva, cai por terra todo o debate sobre atuar – ou não – o juiz de ofício.

Além disso, a obrigatoriedade da realização da audiência de custódia, em 24 horas após a realização da prisão, sob pena de tornar ilegal a prisão cautelar, não entrou em vigor, pois liminar do STF suspendeu a eficácia do art. 310, § 4º, do CPP (decisão proferida pelo ministro Luiz Fux, em 22 de janeiro de 2020, ADIn 6299 MC/DF). Então, se a audiência de custódia não realizada não acarretaria a ilegalidade da prisão cautelar, o procedimento continuaria o mesmo (o juiz analisa o auto de prisão em flagrante, podendo convertê-lo em preventiva, de ofício) até que o Plenário do Pretório Excelso pudesse decidir a respeito, como bem pronunciou o ministro Luiz Fux: “entendo que, uma vez oportunamente instruído o processo quanto à realidade das audiências de custódia em todo o país, o Plenário poderá decidir o mérito, inclusive, sendo o caso, fornecendo balizas interpretativas mais objetivas para as categorias normativas nele incluídas. Por ora, a eficácia do dispositivo deve ser suspensa para se evitarem prejuízos irreversíveis à operação do sistema de justiça criminal, inclusive de direito de defesa”.

Por conta disso, também, o Conselho Nacional de Justiça emitiu a recomendação 62, de 17 de março de 2020, onde se lê, no art. 8º: “Recomendar aos Tribunais e aos magistrados, em caráter excepcional e exclusivamente durante o período de restrição sanitária, como forma de reduzir os riscos epidemiológicos e em observância ao contexto local de disseminação do vírus, considerar a pandemia de covid-19 como motivação idônea, na forma prevista pelo art. 310, parágrafos 3º e 4º , do Código de Processo Penal, para a não realização de audiências de custódia”.

Se a realização da audiência de custódia, por ora, em época de pandemia, não é obrigatória, o juiz pode continuar a receber o auto de prisão em flagrante e, sendo o caso, converter esse flagrante em preventiva, nos termos do art. 310, II, do CPP. E essa realização da audiência não seria obrigatória não apenas por conta da recomendação 62/20, que não tem força legal, mas sobretudo porque o § 4º do art. 310 do CPP encontra-se com a sua eficácia suspensa. Logo, se não se realizar a referida audiência, s.m.j., não poderia gerar nenhuma ilegalidade à prisão em flagrante, que pode ser convertida em preventiva pelo juiz, até que o Plenário do STF decida se (e como) esse parágrafo teria vigência.

Em suma, parece-nos muito cedo para extrair conclusões definitivas sobre o alcance da conversão da prisão em flagrante em preventiva, sobretudo a respeito da geração de ilegalidade caso não realizada a audiência de custódia, antes que o Pretório Excelso, em seu colegiado maior, decida exatamente o alcance de todos os dispositivos da lei 13.964/19 que, hoje, estão com a eficácia suspensa, por força de decisão liminar do próprio Supremo Tribunal Federal.

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1 Renato Marcão, Curso de processo penal, 2ª ed., p. 685; Aury Lopes Jr., Direito processual penal, 10ª ed., p. 807.

2 Processo penal, 4a ed., p. 1021. No mesmo prisma: Renato Brasileiro de Lima, Código de Processo Penal comentado, p. 848-849; Demercian e Maluly, Curso de processo penal, p. 196; Guilherme Madeira Dezem, Curso de processo penal, 2ª ed., p. 747. Essas posições foram colhidas após a edição da Lei 12.403/11 e antes da Lei 13.964/19.

3 Direito processual penal, 24ª ed., p. 912-913. Deixando bem clara a possibilidade de atuação de ofício do juiz para a conversão do flagrante em preventiva, desde que não fundamentado em conveniência da investigação ou da instrução criminal: Eugenio Pacelli, Curso de processo penal, 20ª ed. P. 575. Essas posições foram colhidas após a edição da lei 12.403/2011 e antes da lei 13.964/19.

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*Guilherme de Souza Nucci é desembargador na seção criminal do TJ/SP. Livre-docente em Direito Penal, doutor e mestre em Direito Processual Penal pela PUC/SP. Professor da PUC/SP nos cursos de graduação e pós-graduação.

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