No momento em que só se fala em pandemia e o mundo depende unicamente de uma vacina, a humanidade sente-se acuada pelas garras do coronavírus, que já impediu a comemoração de alguns eventos familiares, com a severa restrição de aproximação entre as pessoas.
As notícias mais trágicas vão povoando os jornais e, como um desmanche de esperança, vão acumulando como mofo em nossas vidas. O terreno é movediço, perigoso. Dá até a impressão de que o vírus vai se agigantando e cada vez mais fazendo novas vítimas. Assim, como a posse violenta não dura, o domínio do mal também é passageiro.
Com a aproximação do dia dos pais, sem a comemoração merecida, lembrei-me de um fato relacionado com a data, ocorrido no início da minha carreira de promotor de justiça, na comarca de Palestina. Encontrava-me na promotoria quando fui procurado por um senhor, que se fazia acompanhar por dois adolescentes, entre 14 e 15 anos. Explicou, com seu jeito simples de falar, que tinha uma pequena propriedade rural e dela extraia o sustento da família e, na sequência, apontando para os dois jovens, orgulhosamente apresentou-os como filhos de criação. Esclareceu que uma moça que trabalhava na propriedade vizinha teve dois filhos com pais diferentes, ambos de paradeiro ignorado. Foi quando ela, sozinha e passando por sérias dificuldades, resolveu entregá-los a ele, que acabara de perder a esposa. Mesmo assim, entendendo que o mundo é feito de paradoxos, incumbiu-se do encargo. Quinze anos se passaram e precisava regularizar a situação documental dos adolescentes, que ainda portavam o nome da mãe. Como presente do dia dos pais.
A breve entrevista que tive com os jovens foi suficiente para constatar que tratavam aquele senhor com muito carinho, muitas vezes repetindo a palavra pai e, sem qualquer exagero, guardavam os traços físicos, o jeito de falar e de expressar do pretenso pai. E quando os três deixaram a promotoria, pelo modo de andar, tive certeza da paternidade.
A legislação menorista da época era completamente diferente da atual. Mas uma situação é coincidente: o tempo de convivência que consolidou uma guarda de fato por pessoa não aparentada e a transformou em uma convivência pacífica e harmoniosa, criando todos os vínculos afetivos, sentimentos e promessas de uma continuidade inquebrantável.
Aprendi naquela oportunidade que o afeto que se estabelece na guarda de fato em nada se difere daquele concedido judicialmente. Até mesmo pela ausência da chancela judicial os detentores desta guarda vão demonstrar um comprometimento maior de dedicação, proteção, bondade, apego, ternura, transversalizando e privilegiando a relação interpessoal construída em base sólida. É como se estivesse transitando pelo pensamento de Foucault quando trata do cuidado do outro, fazendo ver a existência de uma ação ética visando aproveitar as interações e relações emanadas de um ambiente em que se busca a educação, a emancipação e a liberdade do outro.
O interessante é que tanto a lei da época como a atual nada mencionam a respeito do afeto que, se for analisado profundamente, fala mais alto do que a própria lei. É a voz que brada do coração e contamina todos os labirintos levando a mensagem do bem querer. E, principalmente, quando se trata de uma criança, a carga efusiva é difusa e contagiosa.
O afeto é um sentimento que brota do calor humano e nenhuma lei tem o poder de revelá-lo por meio de suas palavras frias e distantes da realidade. Cabe ao julgador fazer a correta adequação do sentimento humano e torcer o braço férreo da lei para ampará-lo. Couture já apontava em seus mandamentos que a justiça deve ser o destino natural do direito: “Tu deber es luchar por el derecho; pero el día que encuentres en conflicto el derecho con la justicia, lucha por la justicia.”
O que se leva em consideração nos casos de adoção é justamente o afeto, o pertencimento, o envolvimento emocional que impulsiona as pessoas que participam do relacionamento familiar afetivo. O tempo de convivência, por menor que seja, estabelece uma coexistência toda especial. Tamanha é sua força que se encarrega de romper todas as regras previamente estabelecidas. É o caso típico da menina Marcela, diagnosticada com anencefalia, que viveu durante um ano e oito meses, contrariando as previsões médicas. Este tempo de vida pode ser compatível com o de qualquer outra criança sem a malformação. Afinal, em um momento se vive uma vida, na fala de Al Pacino, no filme Perfume de Mulher.
Mas, retornando ao caso narrado, poucos dias antes da comemoração da data dos pais, encontrei-me com o senhor que tinha acabado de receber a comunicação judicial de que seu nome tinha sido inserido nos assentos de nascimento dos adolescentes, agora legalmente filhos. Transbordava de alegria. Olhou-me com gratidão, enlaçou os filhos, como se abraçasse o mundo sem pandemia, e seguiu seu caminho.
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