Em 26/6/20, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu o julgamento virtual do RE 784.439, sob o regime de repercussão geral, do caráter taxativo da lista de serviços sujeitos à incidência do Imposto sobre Serviços (ISS), a que se refere o art. 156, inciso III, da Constituição Federal (tema 296). Por maioria de votos, vencidos os ministros Gilmar Mendes, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski no que tange à tese sugerida pela ministra Rosa Weber, Relatora, e, no mérito, o ministro Marco Aurélio, o Tribunal assentou a seguinte proposição:
“É taxativa a lista de serviços sujeitos ao ISS a que se refere o art. 156, III da Constituição Federal, admitindo-se, contudo, a incidência do tributo sobre atividades inerentes aos serviços elencados em lei em razão da interpretação extensiva”.
A discussão sobre a natureza, taxativa ou exemplificativa, da lista de serviços, e também da forma de sua interpretação, analógica ou extensiva, é antiga, e permeia inúmeras controvérsias envolvendo autoridade fiscais municipais e contribuintes. Por isso é muito importante a análise e compreensão da decisão proferida pelo STF, inclusive sob a perspectiva do histórico jurisprudencial das Cortes Superiores, para que se possa extrair qual o entendimento foi pacificado e avaliar a sua capacidade de finalizar, ou pelos menos reduzir substancialmente, as dúvidas e os conflitos decorrentes da aplicação da lista anexa à lei complementar prevista no art. 156, II da Constituição Federal.
O tema 296 foi submetido à repercussão geral por meio de manifestação da ministra Ellen Gracie, em agosto de 2010, no julgamento do RE 615.680, em que figurava como Recorrente o UNIBANCO S/A. Após o reconhecimento da repercussão geral, o Recorrente desistiu do recurso interposto, sendo que o mesmo ocorreu com os dois outros recursos extraordinários alçados à representativos de controvérsia antes do RE 784.439.
Embora todos recursos representativos de controvérsia destacados pela Corte versassem sobre atividades bancárias, o tema 296 ao caráter taxativo da lista de serviços sujeitos ao ISS a que se refere o art. 156, III, da Constituição Federal, o que implica que a tese fixada no julgamento delimita a questão constitucional de forma abrangente.
No caso concreto analisado pelo STF, o município de Maceió exigiu o recolhimento de valores de ISS do Banco Sudameris, referente a fatos geradores ocorridos entre outubro de 1999 a dezembro de 2003, sob a égide do decreto-lei 406/68, mas já com a redação da lista de serviços dada pela lei complementar 56/87. Para o município o tributo incidiria sobre as receitas de “rendas de adiantamento a depositante”, “rendas de empréstimo/rendas de financiamento comissão de abertura de crédito/tarifas compensação de cheque”, “recuperação de encargos e despesas”? e “rendas outros serviços – outras rendas”, atividades bancárias enquadradas pela Fiscalização nos itens 95 e 96 da lista da LC 56/87:
“95. Cobranças e recebimentos por conta de terceiros, inclusive direitos autorais, protestos de títulos, sustação de protestos, devolução de títulos não pagos, manutenção de títulos vencidos, fornecimentos de posição de cobrança ou recebimento e outros serviços correlatos da cobrança ou recebimento (este item abrange também os serviços prestados por instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central);
96. Instituições financeiras autorizadas a funcionar pelo Banco Central: fornecimento de talão de cheques; emissão de cheques administrativos; transferência de fundos; devolução de cheques; sustação de pagamento de cheques; ordens de pagamento e de crédito, por qualquer meio; emissão e renovação de cartões magnéticos; consultas em terminais eletrônicos; pagamentos por conta de terceiros, inclusive os feitos fora do estabelecimento; elaboração de ficha cadastral; aluguel de cofres; fornecimento de segunda via de avisos de lançamento de extrato de contas; emissão de carnês (neste item não está abrangido o ressarcimento, a instituições financeiras, de gastos com portes do Correio, telegramas, telex e teleprocessamento, necessários à prestação dos serviços);”
O Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas manteve a exigência do imposto sobre as receitas decorrentes de “rendas de outros serviços, incluída a compensação de cheques”? e “recuperação de encargos e despesas”, sob o entendimento de que as demais atividades estariam sujeitas à incidência do IOF, nos termos do art. 153, inciso V da CF.
Ao analisar o Recurso Especial interposto pelo contribuinte, o Superior Tribunal de Justiça reafirmou a taxatividade da lista de serviços anexa do decreto-lei 406/68, para afastar a exigência do imposto também sobre a atividade de “compensação de cheque”, arguindo que essa atividade somente veio a ser prevista como sujeita à incidência do ISS a partir da LC 116/03 (item 15.15), mantendo-se o acórdão recorrido em relação às demais rubricas.
O STJ aplicou o entendimento da 1ª Seção no REsp 1.111.234/PR1, julgado sob o rito repetitivo, no sentido de que “é taxativa a Lista de Serviços anexa ao decreto-lei 406/68, para efeito de incidência de ISS, admitindo-se, aos já existentes apresentados com outra nomenclatura, o emprego da interpretação extensiva para serviços congêneres”.
Quando a 1ª Seção do STJ julgou o mencionado repetitivo, em setembro de 2009, ela já havia se debruçado sobre o tema em outras oportunidades, sendo relevante citar o EREsp 916.7852, em que o relator, ministro Humberto Martins, consignou que a lista de serviços comporta “interpretação extensiva, a fim de abarcar serviços correlatos àqueles previstos expressamente, uma vez que, se assim não fosse, ter-se-ia, pela simples mudança de nomenclatura de um serviço, a incidência ou não do ISS.”
No âmbito do STF, localizam-se antigos precedentes que trataram de serviços realizados por estabelecimentos bancários, cuja análise se deu em termos da diferenciação entre atividade meio e atividade fim (cite-se o RE 71.2133 e o RE 105.8444). Essa discussão é inclusive trazida na inicial do leading case do tema 296.
Todavia, a partir do momento que grande parte das chamadas atividades meio foram inseridas na lista de serviços, a discussão se fixou no exame da taxatividade ou não da lista e da possibilidade de sua interpretação extensiva ou compreensiva. O segundo termo foi adotado pelo ministro Celso de Mello no julgamento do RE 450.3425 e nos parece mais adequado, na medida em que denota uma atividade que esteja contida no mesmo gênero do serviço listado, na linha do entendimento da doutrina que sustenta a verticalidade da lista quanto ao gênero de serviços, associada a horizontalidade das espécies descritas, formando a ideia de conjunto.
No julgamento do leading case, a ministra Rosa Weber, após revisitar os dispositivos constitucionais e legais aplicáveis ao caso, recordou o histórico da Corte a respeito da matéria, reafirmando o entendimento de que a lista de serviços sujeitas ao ISS, nos termos previstos no art. 156, inciso III, da Constituição Federal, é taxativa, embora comporte uma interpretação extensiva dos seus itens. Essa extensão interpretativa, no entender da ministra, estaria limitada à mera variação do aspecto material de serviços previstos na lista.
Esse ponto está elucidado no trecho do voto condutor, no qual é trazido o Parecer apresentado pela Procuradoria Geral da República, tendo a ministra Rosa Weber ressaltado que “...há de se reconhecer que a lista de serviços sujeitos ao ISS é taxativa; todavia, quando as características da atividade que se pretende tributar não são estranhas às características das atividades próprias dos serviços listados em lei, mas inerentes à natureza desses serviços, ou seja, constituam mera variação do aspecto material da hipótese de incidência”.
Aliás, o termo "inerente”, adotado pela ministra Rosa Weber na fixação da tese e que nunca havia sido utilizado nos precedentes STJ e do STF sobre a matéria, surge no parecer apresentado pelo Procurador Geral da República com o sentido que pode ser extraído dos trechos abaixo:
“Constatando-se que a atividade que se pretende tributar é da essência necessária do serviço incluído na lista anexa à lei complementar, a incidência do imposto decorrerá não de analogia ou de interpretação extensiva, mas de uma relação de inerência, sendo, portanto, constitucional.
(...)
Conclui-se, assim, que apesar do caráter taxativo, há de ser admitida a verificação dos elementos inerentes à atividade prestada, com o intuito de abranger serviços passíveis de inclusão no mesmo gênero já disciplinado em lei, por configurarem mera variação do aspecto material da hipótese de incidência, como ocorre no caso do presente recurso” (grifos do autor).
Ocorre que a ministra relatora não tomou o cuidado de conceituar ou em dar sentido ao termo “inerente” que, repetimos, é inédito em decisões das Cortes Superiores, e também na legislação de regência do ISS.
Exatamente a vinculação da intepretação da lista ao termo “inerente” é o que vem gerando estranhamento e preocupação com a forma como será compreendida e aplicada a tese fixada pelo STF.
A palavra inerente comporta sentidos diferentes, a depender do contexto em que é utilizada. Entre os sentidos possíveis, destacam-se os de “intimamente unidos”, “que é atributo ou propriedade de algo ou alguém = INTRÍNSECO” ou “que faz parte de (pessoa ou coisa) = INSEPARÁVEL”.6
A leitura solitária do texto da tese pode levar ao entendimento de que a interpretação extensiva da lista de serviços poderia dar a natureza de serviço tributável a atividade que se apresente como meio ou pressuposto da consecução de uma efetiva prestação de serviço.
A citação do Parecer da PGR demonstra que o que foi chamado de “inerente”, na verdade é o já conhecido serviço “congênere”, considerado como mera variação da mesma materialidade, conforme fica claro nessa passagem: “verificação dos elementos inerentes à atividade prestada, com o intuito de abranger serviços passíveis de inclusão no mesmo gênero já disciplinado em lei, por configurarem mera variação do aspecto material da hipótese de incidência, como ocorre no caso do presente recurso”
Quando se trata de definição de tese, em repercussão geral que pretende pacificar as relações jurídicas, é melhor que os termos adotados estejam bem definidos no voto, para que fique clara e precisa para os aplicadores todos os aspectos apreciados pela Corte.
Os votos proferidos pelos ministros Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes seguiram a conclusão do voto condutor quanto ao mérito. No entanto, sugeriram outra redação para a tese de repercussão geral, mais aderente aos precedentes anteriores das Cortes Superiores sobre o tema. O ministro Alexandre de Moraes sugeriu tese com a utilização de termo adotado pela legislação, atribuindo como legítima, “a incidência do tributo sobre serviços correlatos aos previstos”.
Já a sugestão de tese do ministro Gilmar Mendes era ainda mais restritiva, e certamente conferia maior conforto em termos de segurança jurídica, na medida em que admitiu a interpretação extensiva “apenas naqueles casos em que há essa abertura textual, no correspondente item anexo à lei complementar federal”, ou seja, naquelas hipóteses em que consta, expressamente, a possibilidade de tributação de serviços correlatos ou congêneres.
Melhor seria se uma das duas teses sugeridas pelos ministros dissidentes tivesse prevalecido. Entretanto, o próprio julgamento em sessão virtual não beneficia o diálogo entre os votos e o olhar atento às minúcias, que nos leading cases tributários representam um diferencial relevante.
De toda forma, entendemos que a correta e sistemática interpretação da tese fixada para o tema 296, pelo Pleno do STF, determina que se reconheça que foi reiterada exclusivamente a possibilidade de interpretação extensiva da lista de serviços do ISS, para abranger atividades que seja congêneres ou correlatas a serviço listado, por se constituir em mera variação da mesma materialidade tributável.
A decisão da Suprema Corte não autoriza a já conhecida prática de se buscar “atomizar” atividades meio, para lhes outorgar, artificialmente, a natureza de fato gerador do ISS. Um exemplo é a questão julgada pelo STJ no AREsp 669.755/RJ7, quando, corretamente, o Tribunal reconheceu que a tarifa de “excesso de limite”, quando cobrada por instituições financeiras, tem a natureza de mera atividade meio, vinculada à operação de aprovação de crédito. Apesar de “inerente” ao serviço de “avaliação de crédito”, item 15.08 da lista anexa à LC 116/03, esse vínculo não outorga à referida tarifa a natureza de fato gerador do ISS, quando executada pela própria instituição financeira (situação diferente quando um terceiro é contratado para tanto). Decisão correta que reconheceu a ilegalidade da exigência do ISS por parte do município que era parte do processo, em face de atividade meio, que inegavelmente é inerente à outra atividade (atividade fim).
Nesse contexto, concluímos que a decisão do STF, apesar de não ter adotado a melhor redação para a tese, uma vez corretamente interpretada, dirimiu a controvérsia com relação à interpretação da lista de serviços, ao pacificar a possibilidade de interpretação extensiva, na linha do que já tinha decidido o Superior Tribunal de Justiça.
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1 REsp 1.111.234/PR, Rel. Ministra ELIANA CALMON, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 23/9/09, DJe 8/10/09.
2 EREsp 916.785/MG, Rel. ministro HUMBERTO MARTINS, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 23/4/08, DJe 12/5/08
3 RE 71.213, Relator(a): DJACI FALCAO, Primeira Turma, julgado em 11/5/71, DJ 10-09-1971 PP-04762 EMENT VOL-00846-01 PP-00311
4 RE 105.844, Relator(a): ALDIR PASSARINHO, Segunda Turma, julgado em 6/10/87, DJ 17-09-1993 PP-18929 EMENT VOL-01717-02 PP-00293
5 RE 450.342 AgR, Relator(a): CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 5/9/06, DJe-072 DIVULG 02-08-2007 PUBLIC 03-08-2007 DJ 03-08-2007 PP-00114
7 AREsp 669.755/RJ, Rel. ministro GURGEL DE FARIA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 5/6/18, DJe 22/8/18
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*Alessandro Mendes Cardoso é sócio do escritório Rolim, Viotti & Leite Campos Advogados.
*Tatiana Zuconi Viana Maia é coordenadora de contencioso tributário no escritório Rolim, Viotti & Leite Campos Advogados.
*Petrina Rodrigues de Mello é advogada sênior no escritório Rolim, Viotti & Leite Campos Advogados.