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Ainda sobre o covid-19 – O projeto de lei 2.113/20

A notícia de que o coronavírus “pode” ter efeitos positivos para as seguradoras é apenas isto: uma notícia, sem base científica e que se vale de uma possibilidade (“pode”) imaginada para definir seu título.

30/7/2020

Aprovado pelo Senado Federal, foi remetido para apreciação da Câmara dos Deputados projeto de lei que acrescenta, à lei 13.979/20, o dispositivo seguinte:

“Art. 6º – E. O seguro de assistência médica ou hospitalar, bem como o seguro de vida ou de invalidez permanente, não poderá conter restrição de cobertura a qualquer doença ou lesão decorrente da emergência de saúde pública de que trata esta Lei.”

Apenas para contextualizar, a lei 13.979/20 fixa diretrizes para o enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do covid-19, gerador da pandemia que ora o mundo enfrenta.

Então, voltando ao projeto objeto de nossa atenção, tem-se que não é possível haver restrição de cobertura “a doença ou lesão” decorrente do covid-19.

Impressiona a ausência de mínimo rigor com a técnica redacional, mas uma dose a mais de boa vontade leva-nos a compreender, por exemplo, que o dispositivo não será aplicável tão só ao seguro de assistência médica ou hospitalar, mas também, porque este o sentido da norma projetada, aos planos de assistência médica e ou hospitalar, estes que, mesmo não sendo contratos de seguro, cumprem a mesma finalidade – basta ver que ambos, os contratos de seguro de assistência médica e ou hospitalar e os planos de assistência médica e ou hospitalar são regulados pela mesma lei (lei 9.656/98).

Também parece certo intuir que, ao referir-se a invalidez permanente, o texto remete o intérprete a considerar exclusivamente a invalidez permanente decorrente de doença, porque, seja uma doença, seja uma lesão, decorrentes da covid-19, jamais terão ocorrido em razão de acidente, considerado o conceito de acidente pessoal estabelecido como padrão nos contratos de seguro brasileiros. Assim, obviamente que, mesmo não havendo restrição à cobertura de evento decorrente da covid-19, necessário que ele se enquadre nas condições da cobertura de invalidez por doença observadas as regras nela estabelecidas. Dito de outra forma, a invalidez decorrente de doença, mesmo que consequente do covid-19, apenas se caracterizará se preenchidos os requisitos da cobertura, consideradas as espécies invalidez laborativa e invalidez funcional, as duas únicas oferecidas pelo mercado segurador brasileiro. A ausência de cláusula expressa de exclusão destes riscos não os tornam cobertos sempre e sempre, portanto.

Parece-nos igualmente que contratos celebrados a partir da promulgação da lei – se isto acontecer – é que serão por ela alcançados, mas não aqueles celebrados anteriormente e que tenham cláusula expressa de exclusão de riscos pandêmicos1. Admitir o contrário seria admitir ofensa ao ato jurídico perfeito, embora nos dias de hoje se cogite a possibilidade de ter, uma lei nova, efeitos retroativos em homenagem aos princípios de ordem pública e interesse social.

Esta retroatividade da lei, se admitida, viria, de certo modo, ao encontro do comportamento adotado por parte do mercado segurador. É que algumas seguradoras, mesmo tendo em seus clausulados previsão expressa de exclusão para os riscos decorrentes de pandemia, apressaram-se em considerá-la não escrita, assumindo o compromisso de pagamento dos capitais segurados em caso de morte ou invalidez de seus segurados.

Não nos convence a tese propagada por alguns de que as seguradoras, sabendo da possibilidade – que seria significativa – de ser a cláusula de exclusão considerada abusiva pelo judiciário, adiantaram-se para evitar a litigiosidade que a discussão certamente geraria. A exclusão, devidamente destacada, não é abusiva.

De fato, a doutrina – mormente a estrangeira, muito bem representada por nossos hermanos argentinos – costuma afirmar que risco excluído é o chamado “NÃO SEGURO”; risco que a seguradora jamais quis garantir e que, portanto, jamais teve taxa de prêmio calculada e, consequência, para o qual jamais terá recebido, enquanto vigorar o contrato, o valor do prêmio correspondente.

Assim, se a seguradora, de forma clara e transparente, fixa em seus contratos que não pretende cobrir determinado risco, ou, dito de outra forma, se ela limita o risco que pretende garantir, não há, em princípio, razão jurídica razoável para desconsiderar tal limitação – esta que se dá pelo exame do objeto da garantia contratual em consonância com as cláusulas de exclusão de risco.

E, de outro lado, a cláusula de exclusão referida tem objetivo e sentido claros: eliminar, em razão de uma pandemia, a possibilidade de insolvabilidade das seguradoras diante da obrigação de pagar numerosos sinistros cujas ocorrências não eram previstas e sequer previsíveis – convenha-se, jamais vivemos e arrisca-se dizer que poucos viveram algo como a crise provocada pelo coronavírus.

Nem mesmo nos convence a tese de que essas seguradoras, baseadas em estudos atuariais encomendados especialmente para a ocasião, estariam realizando o pagamento desses sinistros porque isto não afetaria a sinistralidade esperada das apólices em vigor.

Compreendemos que, havendo cláusula de exclusão expressa, ela há de ser considerada para a regulação de sinistros sem o que os interesses da mutualidade serão afetados. As seguradoras são gestoras de recursos alheios, pertencentes à mutualidade, pelo que não lhes cabe decidir por vontade própria a destinação desses recursos. Ademais, uma pandemia começa sem que se tenha a dimensão dos danos que causará. Uma pandemia, sabe-se como se inicia, jamais como terminará e o volume de danos que causará.

Por oportuno, e a pretexto do que vimos de defender, faremos breve incursão nas justificativas perfiladas pela senadora Mara Gabrilli, autora do projeto, para sua propositura.

Diz ela:

“O presente projeto de lei tem por objetivo obrigar as seguradoras a manter a cobertura a qualquer doença ou lesão decorrente da pandemia do novo Coronavírus, abrangendo a assistência médica ou hospitalar e o contrato de seguro de vida ou de invalidez permanente.

O enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional responsável pelo surto do Coronavírus requer medidas que impliquem solidariedade social, inclusive no âmbito do caráter garantidor do contrato de seguro. 

Eventual negativa de cobertura pela seguradora encontra óbice no adequado dever de informação dos termos do contrato pela fornecedora, bem como na abusividade de cláusula de exclusão contratual que afaste a responsabilidade da seguradora, em negócio no qual o consumidor somente adere às cláusulas impostas pela fornecedora.”

Nos tempos que correm parece mesmo não haver clareza entre o papel de cada um dos poderes constituídos em nosso país, de sorte que o legislativo propõe uma lei baseada no seu convencimento de que (I) as seguradoras faltam com seu dever de bem informar os consumidores, e que (II) cláusulas impostas por estas, já que se trata de contrato de adesão, são abusivas, exames que nos parecem açodados, levianos até, posto que caberiam ao judiciário fazê-los diante de determinado caso concreto e das provas que em seu âmbito fossem produzidas.

Tem mais:

“Vale destacar que possível aumento nos gastos da seguradora decorrente da pandemia de coronavírus pode ser atenuado pela diminuição da sinistralidade em outros ramos securitários, como o seguro de automóvel, colaborando para que as seguradoras que atuam em diversos ramos não sejam significativamente impactadas pelas disposições decorrentes da presente proposição.

Ademais, conforme demonstrado em reportagem de 14 de abril deste ano, do jornal O Estado de S. Paulo, com título "Crise do Coronavírus pode ter efeito positivo para as seguradoras", diferentemente do que se vê na maioria dos setores econômicos, o efeito do coronavírus é ameno para as seguradoras. As medidas adotadas para conter a pandemia estão reduzindo a sinistralidade em vários segmentos.”

De novo, diga-se que a redução de sinistralidade em outros ramos securitários, com a citação expressa do seguro de automóvel, é mera ilação da nobre senadora.

A notícia de que o coronavírus “pode” ter efeitos positivos para as seguradoras é apenas isto: uma notícia, sem base científica e que se vale de uma possibilidade (“pode”) imaginada para definir seu título.

Há os que afirmam existir, por exemplo, uma sinistralidade represada em vários ramos – sinistros ocorridos e ainda não levados ao conhecimento das seguradoras -, inclusive no seguro de automóvel, represamento ocorrido pelos efeitos que a quarentena a que fomos submetidos nos impôs.

Por enquanto, para lá ou para cá, certo mesmo é que as afirmações sobre sinistralidade nos diversos ramos de seguro são chute.

Afinal, qual experiência temos em enfrentar pandemias com esse grau de ferocidade do covid-19?

_________

1 Oportuno o registro de que o projeto não afasta a possibilidade de exclusão de riscos decorrentes de pandemias, mas apenas riscos decorrentes da pandemia originada do coronavírus.

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*Adilson José Campoy é advogado do escritório Pimentel e Associados Advocacia.

*Marcio Alexandre Malfatti é advogado do escritório Pimentel e Associados Advocacia.

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