Muitas perguntas e dúvidas já existem em decorrência da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, qual seja, se a covid-19 foi reconhecida ou não como acidente de trabalho.
A então medida provisória 927, de 22 de março de 2020, que dispunha sobre as medidas trabalhistas para enfrentamento do estado de calamidade pública, em seu artigo 29 preceituava que: “os casos de contaminação pelo coronavírus (covid-19) não serão considerados, exceto mediante comprovação do nexo causal”.
Diante disso, foram ajuizadas algumas ações diretas de inconstitucionalidade1, pois, como se sabe, a referida Medida Provisória estava sujeita ao controle de constitucionalidade para verificação de que seu conteúdo encontra-se de acordo com a Constituição Federal, norma maior e informadora das demais.
Como se sabe, o artigo 373 do Código de Processo Civil2, em seus incisos I e II, traz a regra geral quanto ao ônus da prova. Todavia, uma novidade trazida com o novo diploma legal foi a positivação da teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova contida nos §§ 1º e 2º3 do artigo acima citado.
A partir da leitura do artigo 29 da citada medida provisória, o qual exigia a comprovação efetiva do trabalhador em relação ao nexo de causalidade para constatação da contaminação, fica claro que estaríamos diante de uma prova diabólica para o trabalhador, que é aquela prova extremamente difícil de ser produzida, ou, ainda, impossível.
Vale ressaltar que o meio de ambiente de trabalho é uma proteção constitucional garantida ao trabalhador. E, mais, o Direito do Trabalho possui princípios informadores, de forma que não pode existir contradição entre esses e os preceitos legais, uma vez que estão acima do direito positivo, além do que a relação entre empregado e empregador é totalmente distinta daquela que acontece no Direito Civil.
Sendo assim a decisão do Supremo Tribunal Federal não quer dizer que foi reconhecido o direito à indenização e à estabilidade provisória no emprego, mas apenas que afastou o ônus do trabalhador de comprovar que a infecção por covid-19 foi ocupacional, ou seja, cada caso será analisado de forma pontual.
É importante ressaltar que o acidente de trabalho ocorre de forma inesperada, provocando uma lesão ou perturbação funcional, originando a morte, perda ou redução da capacidade laborativa, nos termos do artigo 19 da lei 8.213/914. Já com relação à doença profissional, em observância do artigo 20, incisos I e II, da referida lei5, está ocorre em virtude da atividade desenvolvida e que tenha relação direta com o trabalho, sendo, portanto, a regra geral, de forma que podemos entender que com a suspensão da eficácia do artigo 29, da então medida provisória 927, deve esta regra prevalecer.
Dito isso, não há que se dizer que o Supremo reconheceu a covid-19 como doença ocupacional, e, por conseguinte, o direito à estabilidade mínima de doze meses prevista no artigo 118 da lei 8.213/916. O que ficou estabelecido foi que os casos de contaminação não seriam considerados doença ocupacional, e, portanto, dependeria da comprovação do nexo de causalidade com a atividade laboral, prova essa de extrema dificuldade, quiçá impossível, razão pela qual a análise será feita de forma casuística.
Imaginemos os trabalhadores que estão desempenhando as suas atividades em home office previsto no artigo 6º da Consolidação das Leis do Trabalho7, o quais se mantêm em completo isolamento social, não havendo motivos para que este isolamento seja interrompido. Caso este trabalhador contraia o vírus, seria correto e razoável o reconhecimento automático como doença ocupacional e, portanto, conferir estabilidade no emprego? Ou então suponhamos que estes mesmos trabalhadores em home office, vez ou outra, necessitem comparecer na empresa. Neste novo cenário, poderia haver o reconhecimento no nexo de causalidade?
Note-se que, enquanto no primeiro cenário nos parece que não haveria qualquer responsabilização da empresa, no segundo caso deve ser feita uma análise pontual da situação, como, por exemplo, se o funcionário foi de transporte público; se na empresa havia outros trabalhadores contaminados; quais foram as medidas de proteção e segurança implementada pela empresa, dentre diversos outros fatores.
O trabalhador poderá até propor uma reclamatória nesse sentido para o reconhecimento como doença ocupacional alegando a responsabilidade da empresa. Entretanto, deverá comprovar as suas assertivas de que o seu empregador foi negligente e imprudente quanto às medidas preventivas de segurança.
A Consolidação das Leis do Trabalho dispõe que as empresas devem instruir os empregados, através de ordens de serviço, quanto às precauções a tomar no sentido de evitar acidentes do trabalho ou doenças ocupacionais. Nesse caso, é importante que a empresa adote todas as medidas de proteção e higiene. Vale destacar que, diante da pandemia assim como da necessidade de isolamento social, caso o empregador tenha que continuar com as suas atividades juntamente com os seus funcionários, em tese, este empregado permanece sujeito à contaminação, como, por exemplo, ao ter que se utilizar o transporte público.
Outro ponto importante a se destacar é que existe uma diferença entre os motivos de afastamento por doença em observância à regra geral da Previdência Social, o que também causa inúmeras confusões por erro de interpretação. Quando ocorre o afastamento por auxílio-doença (B31), não há direito a estabilidade, ao passo que quando o afastamento se dá por auxílio-acidente (B91), pode haver a estabilidade mínima de doze meses.
O afastamento pelo código B31, a que se refere ao benefício previdenciário comum, é aquele em que ocorre sua concessão quando não existe uma ligação propriamente relacionada com o trabalho; diferente do afastamento pelo código B91, que é o benefício previdenciário acidentário, em que o de fato houve algum acidente de trabalho ou quando o trabalhador é acometido de alguma doença profissional.
Não há dúvidas de que o posicionamento do Supremo Tribunal Federal traz inúmeras controvérsias, tendo em vista que a contaminação pode ocorrer em qualquer lugar, inclusive por outros familiares contaminados, e, nesse sentido, diversos podem ser os entendimentos judiciais.
É preciso que as empresas verifique as alternativas possíveis para minimizar quaisquer riscos de contágio, promovendo um estudo analítico afim de viabilizar uma maior proteção ao trabalhador além de proporcionar os meios básicos de proteção, tais como utilização de máscaras, fornecimento de álcool gel, distanciamento dos trabalhadores, higienização frequente do local de trabalho, informativos para que haja uma conscientização da doença etc. Não basta apenas fornecer esses meios para proteção e orientar, pois é preciso que haja também uma fiscalização efetiva por parte do empregador, podendo inclusive aplicar penalidades em caso de desrespeito a essas normas a acarretar a resolução do contrato de trabalho.
Por fim, nos parece ser incontroverso de que esta situação vivida, não só pelo Brasil, mas pelo mundo inteiro, nem sequer foi imaginada. Por isso, é importante que neste momento de pandemia todos devam tentar agir com razoabilidade, adequando-se a situação e a realidade enfrentada, para que possamos atravessar essa fase da maneira menos trágica possível.,
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1 ADIn 6.342, ADIn 6.344, ADIn 6.346, ADIn 6.352 e ADIn 6.354.
2 Art. 373. O ônus da prova incumbe:
I - Ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito;
II - Ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.
3 § 1º Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído.
§ 2º A decisão prevista no § 1º deste artigo não pode gerar situação em que a desincumbência do encargo pela parte seja impossível ou excessivamente difícil.
4 Art. 19. Acidente do trabalho é o que ocorre pelo exercício do trabalho a serviço de empresa ou de empregador doméstico ou pelo exercício do trabalho dos segurados referidos no inciso VII do art. 11 desta Lei, provocando lesão corporal ou perturbação funcional que cause a morte ou a perda ou redução, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho.
5 Art. 20. Consideram-se acidente do trabalho, nos termos do artigo anterior, as seguintes entidades mórbidas:
I - Doença profissional, assim entendida a produzida ou desencadeada pelo exercício do trabalho peculiar a determinada atividade e constante da respectiva relação elaborada pelo Ministério do Trabalho e da Previdência Social;
II - Doença do trabalho, assim entendida a adquirida ou desencadeada em função de condições especiais em que o trabalho é realizado e com ele se relacione diretamente, constante da relação mencionada no inciso I.
6 Art. 118. O segurado que sofreu acidente do trabalho tem garantida, pelo prazo mínimo de doze meses, a manutenção do seu contrato de trabalho na empresa, após a cessação do auxílio-doença acidentário, independentemente de percepção de auxílio-acidente.
7 Art. 6º Não se distingue entre o trabalho realizado no estabelecimento do empregador, o executado no domicílio do empregado e o realizado a distância, desde que estejam caracterizados os pressupostos da relação de emprego.
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