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Pandemia e seguro de vida: notas sobre a abusividade da cláusula limitadora do risco

A cláusula que limita o risco em contratos de seguro de vida no caso de pandemia, embora amplamente utilizada e ainda não analisada pelos tribunais, é abusiva porque esvazia a finalidade do contrato.

24/7/2020

A pandemia do novo coronavírus faz surgir a cada dia maiores desafios para os profissionais do direito, chamados a buscar soluções para conflitos inéditos, os quais, em um cenário de angústias e persistente incerteza, impõem novos olhares sobre questões antes consolidadas na prática jurídica. Uma dessas questões é o controle sobre o conteúdo de contratos de seguro, notadamente aqueles cujo bem segurado é a vida ou a saúde, ameaçados de forma direta e grave, primeiro pela doença, e em seguida pela má técnica empregada na elaboração de respostas, em geral assistemáticas, veiculadas por medidas provisórias e por interpretações equivocadas do texto legal.

Embora seja um contrato típico, disciplinado pelo CC, por lei especial e regulamentado por um cipoal de normas administrativas da SUSEP, o CDC é a base legal para análise dos conflitos envolvendo esses contratos, nos quais a presença da pessoa física como segurado afasta qualquer dúvida sobre a sua incidência, como regulamento de proteção do vulnerável. Assim, os contratos de seguro de vida estão submetidos à disciplina da proteção contratual contida no Capítulo VI da lei consumerista.

O rápido avanço da doença e o crescente número de óbitos tornam urgente uma reflexão sobre a validade das cláusulas de exclusão utilizadas nesses contratos, as quais são comuns, padronizadas e há muito utilizadas por quase todas as seguradoras. No afã de proteger o mercado, as empresas excluem do risco segurado “os eventos relacionados a ou ocorridos em consequência, direta ou indireta, de (...) epidemias e pandemias declaradas por órgão competente”1, com beneplácito do órgão regulador2.

Embora o controle da abusividade em contratos de consumo seja um tema frequente nos repertórios de jurisprudência, ante o ineditismo da situação atual nos deparamos com um completo silêncio das cortes sobre a validade desta cláusula. Porém, observadores atentos já alertam para uma “nítida tendência de que, nos próximos meses, o assunto ganhe protagonismo no mercado e no Judiciário.”3 

O cenário se completa com dois fatos aparentemente dissonantes: noticia-se no mercado segurador um movimento liderado pela Federação Nacional dos Corretores de Seguros (Fenacor) “para que se ignore a cláusula de exclusão por pandemia para os seguros de vida”4, enquanto segue em tramitação no Congresso Nacional um projeto de lei destinado a proibir a “restrição de cobertura a qualquer doença ou lesão decorrente de emergência de saúde pública”5. A controvérsia que se anuncia será grande, pois o próprio mercado registra um aumento de 136%6 nas vendas desses contratos.

A lei permite o controle do contrato de consumo desde o momento anterior à contratação (adesão), quando cria uma série de deveres de informação para o fornecedor do serviço (CDC art. 31) e fulmina com a ineficácia as cláusulas que não puderem ser previamente conhecidas e compreendidas pelo consumidor (CDC art. 46). Além disso, o Código impõe deveres formais ao contratado, tornando obrigatório o destaque das cláusulas restritivas de direitos do consumidor (CDC art. 54 §4º.), tais como as de exclusão de risco nos contratos de seguros. Descumprido este especial dever de informar, a disposição não vincula o consumidor, isto é, não pode ser a ele oposta.

O CDC é lei de ordem pública e concretiza a intervenção na autonomia privada através de instrumentos potentes, como ocorre no controle da abusividade das cláusulas contratuais. Identificada uma cláusula qualificada pela lei como abusiva, a consequência prevista é a mais grave, a nulidade de pleno direito, absoluta, declarável de ofício, insanável, invalidade que torna a disposição insuscetível de produzir qualquer efeito desde sua gênese. A norma do art. 51 traz uma lista exemplificativa de cláusulas abusivas, e dentre elas encontramos a chamada “cláusula geral de boa fé”, no inciso IV, que proíbe as disposições que “estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade”.

Não há dúvida de que é abusiva a cláusula inserida em contrato de seguro de vida que, ao limitar o risco do segurador, pretende afastar sua responsabilidade pelo pagamento da indenização quando o evento morte ocorrer em razão da COVID 19, durante a pandemia.     

A disciplina dos limites ao exercício da autonomia privada nos contratos de consumo é pautada pela ideia de abuso do direito, que se revela como a conduta antijurídica, praticada em desvio de finalidade. Como corolário da livre iniciativa, a liberdade de contratar será legítima se e quando observados os princípios da ordem econômica, dentre os quais, a defesa do consumidor (CF art. 170, V). Quando essa mesma liberdade é exercida em desvio de finalidade, isto é, de modo a impedir ou criar obstáculos à realização do objeto contratual, estará caracterizado o abuso.

É da essência do contrato de seguro a limitação do risco e por isso as cláusulas que estabelecem tais limites, a priori, são válidas. A análise de sua validade, porém, exige um esforço interpretativo das várias fontes normativas, normas gerais e especiais, que incidem sobre a relação securitária num diálogo de complementariedade.

Ao disciplinar o seguro, o Código Civil define o objeto deste contrato, em seu art. 757, dispondo que “o segurador se obriga, mediante o pagamento do prêmio, a garantir interesse legítimo do segurado, relativo a pessoa ou a coisa, contra riscos predeterminados”. Portanto, embora seja admissível o estabelecimento de limites ao risco assumido pelo segurador, que evidentemente repercutirá sobre o valor do prêmio, tais limites somente serão válidos se não conflitarem com o interesse legítimo do consumidor, ficando assim protegida a confiança que este deposita no vínculo contratual.

Muito antes de se falar em direitos do consumidor, o decreto-lei 73, editado em 1966 e ainda vigente, também impõe limites à liberdade contratual do segurador ao dispor, em seu art.13, que “as apólices não poderão conter cláusula que (...) por qualquer modo subtraia sua eficácia e validade além das situações previstas em Lei.”  E quais são estas situações? Aquelas previstas no Código Civil, a saber: “risco proveniente de ato doloso do segurado” (art. 762); “mora no pagamento do prêmio” (art. 763); “inexatidão ou omissão nas declarações (...) do segurado” (art. 766) e o agravamento intencional do risco objeto do contrato (art. 768). Portanto, nos termos da lei civil, qualquer outra exclusão é abusiva por subtrair a eficácia do contrato, impedindo a realização de seu objeto.

O Código Civil, ao regular especificamente o seguro de pessoas, estabelece que “é nula a cláusula contratual que exclui o pagamento do capital por suicídio” (CC art. 798, PU). Mesmo se tratando de hipótese de agravamento do risco7, a lei impede a exclusão para proteger o interesse do segurado, como afirmado em reiteradas decisões do STJ8 que superaram o debate sobre a premeditação do suicídio para afastar de vez a possibilidade de limitação por este fundamento, ultrapassados os primeiros dois anos da celebração do contrato.   

A exclusão não é válida porque cria desvantagem exagerada, a qual, nos termos da lei, “restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato” (CDC art. 51 §1º, II). A lei consumerista, portanto, está em perfeita sintonia com as normas especiais que, embora tutelem as relações paritárias, convergem para a conclusão no sentido da invalidade da cláusula.  

O agravamento do risco decorrente do descontrole e da dimensão global da doença não pode ser imputado ao segurado, evidentemente, e a pandemia tampouco é a causa da morte, mas apenas sua ocasião.

Ainda que a SUSEP, órgão regulador do mercado securitário que possui a atribuição de “zelar pela defesa dos interesses dos consumidores dos mercados supervisionados”9, tenha editado circular relacionando a morte ocorrida durante uma pandemia dentre os riscos que podem ser excluídos do contrato de seguro de vida10, a jurisprudência há muito rechaçou a aplicação de normas que tais, editadas ao arrepio da lei11, sobre a qual não podem prevalecer.  

A multiplicação dos sinistros causados pela covid-19, que levará as seguradoras à obrigação de indenizar em grande número de contratos, será compensada pela sua não ocorrência em outros contratos, o que é estimado por cálculos que permitem que a atividade securitária seja viável economicamente. De fato, o aumento no número de óbitos vem sendo compensado por uma notável redução nos riscos relativos a roubos, colisão de veículos e acidentes pessoais, que diminuíram consideravelmente em virtude da política de distanciamento social12.

Em demandas judiciais sobre seguros é frequente a alegação de risco de solvência das companhias, diante de inesperado aumento do número de indenizações a pagar, que afetaria também a massa dos segurados. Esta, porém, não é a realidade atual, mesmo durante a pandemia, como se verifica em estudos atuariais recentes, os quais apontam inclusive para uma tendência de “alteração e expansão de determinados produtos vigentes, e ainda, a criação de produtos de seguros novos"13.

A atividade securitária se estrutura a partir de provisões e cálculos atuariais, como condição para o mutualismo que a caracteriza. Portanto, a situação se insere no risco do empreendimento, o qual, ao se concretizar, deve ser absorvido pelas seguradoras, que certamente dispõe dos recursos técnicos para diluir o impacto causado pela pandemia entre outras carteiras, com outros grupos de segurados, menos expostos aos riscos neste momento. O impacto do imponderável tem que ser administrado pelas seguradoras, pois “é da atividade delas a utilização de tal estratégia”14, como ensinam os especialistas no tema. 

Os seguros de vida são contratos relacionais, cativos, de longa duração, razão pela qual neles se identifica e espera “um permanente e contínuo agravamento do risco segurado”15. Com efeito, excluir a cobertura do seguro de vida nesses casos, significa esvaziar completamente a finalidade do contrato, que é a de garantir ajuda financeira aos beneficiários indicados pelo segurado, quando este lhes faltar.  Diferente seria a conclusão se estivéssemos tratando do seguro de dano, no qual não é a pessoa, mas sim a coisa o objeto segurado.

De acordo com as previsões da ciência16, a pandemia do novo coronavírus não será a última, o que torna urgente a adoção de novos comportamentos, menos destrutivos e mais solidários. O seguro de vida projeta um desejo de segurança e proteção dos beneficiários do consumidor, que confia na máxima boa fé, que rege esses contratos (CC art. 765). Ainda que neste momento as seguradoras tenham deixado de lado a sua aplicação, certamente por razões de compliance, para evitar o dano reputacional e aumentar a credibilidade no produto, cabe aos intérpretes do texto legal não permitir que o princípio jurídico seja apenas uma promessa vazia e concretizá-lo com a proibição da cláusula de limitação de risco pela pandemia.

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1 Cláusula 4.1 G das Condições Gerais do Seguro de Vida em Grupo oferecido pelo Banco do Brasil S/A, disponível aqui, acessado em 25/6/20.  

2 O art. 12, I, d da Circular SUSEP nº 440, de 27/6/12, que regula os planos de microsseguro de pessoas, autoriza expressamente a exclusão de riscos causados por “epidemia ou pandemia declarada por órgão competente”.

3 Clique aqui.

4 A existência de um “acordo” entre as seguradoras que representam 95% do mercado brasileiro foi noticiada no Jornal O Globo, edição de 12/4/20, em matéria intitulada “Seguro pode não garantir cobertura em caso de pandemia”, na qual se colhe a inusitada afirmação: “O Itaú diz que apenas a cobertura de morte, por liberalidade, será garantida nos seguros de vida e reforça que a medida pode ser revista.” Clique aqui.

5 O PL 2.113/20, da senadora Mara Gabrilli, já aprovado no Senado Federal (clique aqui).

6 Clique aqui.

7 A jurisprudência do STJ é firme em exigir a comprovação da má fé do segurado nos casos de negativa de coberturas por agravamento de risco. Cite-se, por todos, aresto do qual se extrai a seguinte conclusão: “A legitimidade de recusa ao pagamento do seguro requer a comprovação de que houve voluntário e consciente agravamento do risco por parte do segurado, revestindo-se seu ato condição determinante na configuração do sinistro...” (REsp 780.757/SP, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, QUARTA TURMA, julgado em 01/12/2009, DJe 14/12/2009)

8 A seguradora será obrigada a indenizar depois do período de carência de dois anos, “mesmo diante da prova mais cabal de premeditação” (REsp 1.334.005), inclusive porque é “irrelevante a discussão a respeito da premeditação da morte, de modo a conferir maior segurança jurídica à relação havida entre os contratantes” (AgRg nos EDcl nos EREsp 1.076.942). O novo enunciado do verbete n. 61 da Súmula do STJ recebeu o número 610 e tem a seguinte redação: “O suicídio não é coberto nos dois primeiros anos de vigência do contrato de seguro de vida, ressalvado o direito do beneficiário à devolução do montante da reserva técnica formada”.

9 Clique aqui.

10 CIRCULAR SUSEP N. 440, de 27/6/2012, art. 12, I, d.

11 “O fato de ter sido aprovada a cláusula abusiva pelo órgão estatal instituído para fiscalizar a atividade da seguradora não impede a apreciação judicial de sua invalidade.” (STJ, REsp 229.078/SP, Rel. Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, QUARTA TURMA, julgado em 09/11/1999, DJ 07/02/2000, p. 167)

12 Brenda Trajano. COVID-19 e seus reflexos no mercado segurador. Acesso em 10/7/20.

13 No mesmo estudo, Brenda Trajano conclui: “Em maio/2020, a situação inicial foi revertida, de forma que o montante de patrimônio líquido ajustado total do mercado retornou aos patamares anteriores à pandemia.” Op. cit. p. 16.

14 “Seria indigno, se não puder ser mantida a permanência do segurado no referido programa. As seguradoras podem e devem criar novos programas de coberturas e para novos aderentes, com preços diferenciados, de modo a compensarem eventuais desalinhamentos pontuais com grupos segurados ao longo de suas operações. É da atividade delas a utilização de tal estratégia, entre outras, de cunho técnico atuarial.” (Polido, Walter A. Da limitação da autonomia privada nas operações de seguros: coletivização dos interesses – nova perspectiva social e jurídica do contrato de seguro. Revista de Direito do Consumidor n. 74, São Paulo: Revista dos Tribunais, abr-jun 2010, p.322)

15 Em decisão recente, o STJ afirmou que “as cláusulas restritivas do dever de indenizar no contrato de seguro de vida são mais raras, visto que não podem esvaziar a finalidade do contrato, sendo da essência do seguro de vida um permanente e contínuo agravamento do risco segurado.” (AgInt no REsp 1728428/SC, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 25/02/2019, DJe 01/03/2019)

16 Clique aqui

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*Heloisa Carpena é advogada e professora de Direito do Consumidor na PUC-Rio.

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