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Considerações sobre a sanção da lei 14.010/20 – Regime jurídico emergencial e transitório das relações de direito privado

A lei 14.010/20 aporta ao ordenamento soluções emergenciais e transitórias para, de forma geral, regular impactos da pandemia no âmbito das relações jurídicas privadas.

24/7/2020

Foi publicada em 12.06.20 a lei 14.010/20, que dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do coronavírus (covid-19). A lei trata de questões no âmbito do Direito Privado afetadas neste período de crise sanitária e calamidade pública.

A adoção de medidas legislativas similares, criadas para períodos de crise excepcionais e transitórios não é novidade, sendo o exemplo mais célebre a lei Faillot, de 21/1/19181, aprovada na França no último ano da Primeira Guerra Mundial, que se estendeu até 11/11/1918. Tratava-se de uma lei de guerra, com caráter transitório (seus efeitos se estenderiam por um prazo de três meses a partir da cessação das hostilidades), mas que aportou ao ordenamento jurídico francês suporte normativo para a resolução de conflitos decorrentes de contratos de caráter comercial que consistissem em obrigações de fornecimento de mercadorias ou de gêneros, ou ainda, outras prestações, sucessivas ou apenas diferidas, contraídas antes de 1º/8/1914 (início da Primeira Guerra)2.

No cenário da atual pandemia, o parlamento alemão aprovou, em 23/3/20, um pacote de medidas legislativas para atenuação dos efeitos da pandemia da covid-19 no Direito Civil, Falimentar e Recuperacional3.

No Brasil, contudo, a sanção da lei 14.010/20 se deu com aposição de veto presidencial a vários dispositivos do projeto de lei 1.179/20. Observa-se que ainda está pendente a análise do veto pelo Congresso Nacional, que tem o prazo de 30 dias a partir da protocolização da mensagem de veto para deliberação e poderá rejeitá-lo por maioria absoluta dos votos de deputados e senadores, ou seja, 257 votos de deputados e 41 votos de senadores, computados separadamente (arts. 57, § 3º, IV, e 66, § 4º da CF).

Inobstante, pretende-se neste breve artigo analisar o panorama geral das questões de Direito Civil4 tratadas na lei 14.010/20, inclusive dos dispositivos vetados.

O art. 1º explicita que as normas instituídas são de caráter transitório e emergencial, bem como estabelece o dia 20/3/20, data da publicação do decreto legislativo 6, como marco inicial dos eventos derivados da pandemia. A suspensão da aplicação das normas referidas na lei não implica na sua revogação ou alteração, conforme dispõe o art. 2º.

O art. 3º trata do impedimento ou suspensão, conforme o caso, da fluência dos prazos prescricionais e decadenciais a partir da entrada em vigor da lei até 30/10/20, considerado pelos legisladores como marco final provável do período excepcional causado pela pandemia. Consta, ainda, que o dispositivo não se aplica enquanto perdurarem hipóteses específicas de impedimento, suspensão e interrupção dos prazos prescricionais previstas no ordenamento jurídico.

O art. 5º autoriza às pessoas jurídicas a realização de assembleia geral por meios eletrônicos até 30/10/20, independentemente de previsão nos atos constitutivos, bem como dispõe que a manifestação dos participantes também poderá ocorrer por meio eletrônico e produzirá os efeitos legais de assinatura presencial.

Foi vetado o art. 4º5, que previa que as associações, sociedades e fundações deveriam observar as restrições à realização de reuniões e assembleias presenciais até 30/10/20, observadas as determinações sanitárias das autoridades locais. Nas razões de veto, constou que a matéria estaria em desacordo com a recente edição da medida provisória 931/206, que prorrogou a data limite para realização de assembleia pelas sociedades anônimas, limitadas e cooperativas cujo exercício social se encerre entre 31/12/19 e 31/3/20 para sete meses após o término do exercício social, bem como permitiu a participação e votação à distância em assembleias.

A potencial divergência reside na possibilidade de realização de assembleias digitais em sociedades anônimas de capital aberto e fechado. Nesse aspecto, cabe ressaltar que há dissenso interpretativo inclusive acerca da medida provisória 931/20, na medida em que do seu texto (art. 9º) se depreende que restou autorizada a realização de assembleia digital apenas nas sociedades anônimas de capital aberto, ao passo que o Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração da Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do Ministérios da Fazenda (DREI), ao regulamentar a questão, editou a instrução normativa 79, de 14 de abril de 2020, que permite a realização de assembleia digital em sociedades cooperativas, limitadas e anônimas fechadas7.

O capítulo IV, que tratava da resilição, resolução e revisão dos contratos foi integralmente vetado. Em síntese, previa que as consequências decorrentes da pandemia do covid-19 nas execuções dos contratos não terão efeitos jurídicos retroativos (art. 6º), bem como que não se consideram fatos imprevisíveis, para fins dos arts. 317, 478, 479 e 480 do Código Civil, o aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou a substituição do padrão monetário (art. 7º).

A razão de veto justifica que o ordenamento já dispõe de mecanismos apropriados para modulação das obrigações contratuais em situações excepcionais. O art. 7º de fato refletia posição já consolidada na jurisprudência para relações contratuais paritárias, no sentido de que eventos macroeconômicos não são considerados eventos imprevisíveis para fins de ensejar revisão contratual em países de economia instável8. Quanto ao art. 6º, embora o dispositivo pudesse, como regra geral, conferir segurança jurídica e orientação à jurisprudência no sentido de coibir demandas oportunistas que invoquem a pandemia como justificativa para descumprimento de obrigações vencidas em momento pretérito, há que se ponderar que existem atividades que foram afetadas em razão da pandemia antes de março de 2020 e dos decretos de calamidade pública que se seguiram, como por exemplo o setor de turismo, companhias aéreas, assim como setores produtivos que foram impedidos de trabalhar em razão da falta de insumos importados da China ou de outros países. Assim, existem exceções razoáveis, de forma que a apreciação judicial de toda forma não poderia prescindir da análise do caso concreto.

No que se refere às relações de consumo, o art. 8º da lei estabelece que até 30/10/20 fica suspenso o direito de arrependimento previsto no art. 49 do CDC nas hipóteses de delivery de produtos perecíveis ou de consumo imediato e de medicamentos. O dispositivo se justifica9 porque em relação a tais produtos o consumidor tem condições de verificar ao receber a entrega eventual imperfeição ou desacordo e se recusar a recebê-los, não havendo que se aguardar os 07 dias para exercício de direito de arrependimento em relação a tais produtos.

Foi vetado o art. 9º, que previa, até 30/10/20, a impossibilidade de concessão de liminar para desocupação de imóvel urbano nas ações de despejo a que se refere o art. 59, § 1º, incisos I, II, V, VII, VIII e IX, da lei 8.245/91, ajuizadas a partir de 20/3/20. Nas razões de veto, apontou-se que a propositura legislativa contraria o interesse público por suspender um dos instrumentos de coerção ao pagamento por um prazo substancialmente longo, conferindo “proteção excessiva ao devedor em detrimento do credor, além de promover o incentivo ao inadimplemento”.

Embora não se desconheça a situação de locadores que contam com os locatícios como forma de sustento, há que se ponderar que, sobretudo em face das circunstâncias atuais, a adoção de medidas de difícil reversão exige cautela adicional. Veja-se que uma família que não teve condições de arcar com o aluguel, ao ser despejada, provavelmente acabará em situação de precariedade em um momento de crise sanitária. Da mesma forma, na locação comercial, o fechamento do estabelecimento certamente agravará a crise da empresa, podendo levar à falência, o que, à toda evidência, não é desejável e afronta o princípio da preservação da empresa. Por outro lado, a medida não onera em demasia o locador, tendo em vista que a vedação ao despejo liminar se limita estritamente ao período de 06 meses abarcado no art. 9º, o que não significa que o pedido não possa ser reavaliado após o transcurso do prazo previsto. Ainda, cabe relembrar que o impedimento da concessão de liminar de despejo não inviabiliza que o credor busque outras formas coercitivas de pagamento, tais como penhora em dinheiro, protesto judicial, dentre outras. Assim, em razão da excepcionalidade da situação, o dispositivo vetado atende ao princípio da proporcionalidade10.

O art. 10º versa sobre usucapião e dispõe a suspensão da fluência dos prazos de aquisição de propriedade a partir da entrada em vigor da lei 14.010/20 até 30/10/20

O Capítulo VIII trata dos condomínios edilícios. Foi vetado o art. 11, que conferia poderes ao síndico para restringir a utilização das áreas comuns, bem como a realização de reuniões, festividades e o uso das vagas de veículos por terceiros, inclusive nas áreas de propriedade exclusiva dos condôminos, para evitar a propagação do coronavírus. Nas razões de veto, apontou-se que tais medidas retiram a autonomia e a necessidade de deliberação em assembleia, limitando a vontade coletiva dos condôminos. No entanto, diante da excepcionalidade do período e da necessidade de isolamento social decorrente de problemas sanitários, é razoável a previsão e a restrição a alguns direitos individuais por lei, na medida em que a realização de reuniões e festividades acarreta aglomeração e maior circulação de pessoas no condomínio, aumentando, por consequência, as chances de contágio. Igualmente, a deliberação por meio presencial para propor restrição a aglomerações seria contraditória à proposta e o uso de meios virtuais para votações pode não ser de fácil acesso à parte dos interessados.

O art. 12 foi mantido e autoriza a realização e votação em assembleia condominial por meios virtuais até 30/10/20; caso não seja possível a realização de assembleia na forma virtual, os mandatos de síndico vencidos a partir de 20/3/20 ficam prorrogados até 30/10/20. O art. 13 dispõe sobre a obrigatoriedade de prestação de contas regular pelo síndico.

Por fim, o capítulo X trata do Direito de Família e Sucessões. O art. 15 dispõe que a prisão civil por dívida alimentícia deverá ser cumprida em regime domiciliar até 30.10.20, sem prejuízo da exigibilidade das respectivas obrigações. Por sua vez, o art. 16 trata do prazo para instauração de processo de inventário e partilha, dilatando, para sucessões abertas a partir de 1º/2/20, o termo inicial do prazo de 02 meses previsto no art. 611 do CPC para 30/10/20. O parágrafo único do art. 16 prevê, ainda, que o prazo de 12 meses para ultimar-se o inventário, previsto no art. 611 do CPC, caso iniciado antes de 1º/2/20, ficará suspenso a partir da entrada em vigor da lei até 30/10/20, abatendo-se o período já decorrido. Tais medidas se justificam em razão da dificuldade de reunião e obtenção de documentos neste período de isolamento social e de atendimento restrito em diversos órgãos públicos e privados.

A lei 14.010/20 aporta ao ordenamento soluções emergenciais e transitórias para, de forma geral, regular impactos da pandemia no âmbito das relações jurídicas privadas. No entanto, dada a multifacidade dos casos que certamente se apresentarão, caberá à doutrina e à jurisprudência a construção de soluções para a crise que se apresenta e cujos efeitos serão sentidos por longo período.

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1 Referência legislativa clique aqui. Acesso em 19/6/20

2 Conforme: RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Revisão judicial dos contratos: Autonomia da vontade e teoria da imprevisão. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 29-30.

3 A este respeito, recomenda-se a leitura dos artigos recentemente publicados:

RODRIGUES JR., Otávio Luiz. Alemanha aprova legislação para controlar efeitos jurídicos da Covid-19.

FRITZ, Carina Nunes. Alemanha aprova pacote de mudanças legislativas contra a crise do coronavírus. Disponível clicando aqui. Acesso em 19/6/20.

4 Uma vez que o art. 14 da Lei 14.010/20 trata de questões de Direito Concorrencial, não será objeto deste artigo.

5 Art. 4º As pessoas jurídicas de direito privado referidas nos incisos I a III do art. 44 do Código Civil deverão observar as restrições à realização de reuniões e assembleias presenciais até 30 de outubro de 2020, durante a vigência desta Lei, observadas as determinações sanitárias das autoridades locais.

6 Disponível clicando aqui. Acesso em 19/6/20

7 Acerca do tema, vide: ADAMEK, Marcelo Vieira Von. Companhias abertas à parte, assembleias virtuais são realidade no Brasil? Acesso em 30/6/20.

8 Vide, exemplificativamente: REsp 1321614/SP, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, Rel. p/ Acórdão Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 16/12/14, DJe 3/3/15

9 Conforme se verifica no Parecer da Relatora do PL 1.179/20, Senadora Simone Tebet, disponível em: clicando aqui. Acesso em 24.06.20 

10 Sobre o princípio da proporcionalidade, vide: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de.; SARMENTO, Daniel. Direito constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. 2 ed. Belo Horizonte: Fórum, 2014. p. 467 et seq.

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*Celiana Diehl Ruas é mestre em Direito pela PUC/RS. Sócia do escritório Estevez Advogados.

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