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Criminalização do não pagamento de ICMS declarado

Estamos diante de uma nova onda punitiva que visa atingir os crimes econômicos, onde o Poder Legislativo, assim como o Poder Judiciário vêm demonstrando forte tendência em criminalizar cada vez mais essas condutas, a fim de acabar com a ideia de que, no Brasil, os afortunados não respondem por crimes.

24/7/2020

É possível observar que durante os últimos anos os crimes de colarinho branco passaram a receber uma atenção maior dos órgãos de investigação e controle, o que intensificou o rigor imposto a punição dessas práticas delituosas no mundo todo, e também no Brasil.

Estamos diante de uma nova onda punitiva que visa atingir os crimes econômicos, onde o Poder Legislativo, assim como o Poder Judiciário vêm demonstrando forte tendência em criminalizar cada vez mais essas condutas, a fim de acabar com a ideia de que, no Brasil, os afortunados não respondem por crimes.

Um demonstrativo dessa situação ocorreu em dezembro de 2019, quando o STF, ao julgar o RHC 163.334/SC, decidiu, por maioria dos votos, pela criminalização do não pagamento do ICMS próprio declarado pelo contribuinte.

Assim, prevaleceu o entendimento de que esse imposto cobrado do consumidor jamais integrou o patrimônio do comerciante. Por sua vez, para não incorrer em ilicitude, deve o empresário depositar o valor, devidamente compensado, aos cofres estaduais e municipais.

As investigações realizadas pelos órgãos competentes se intensificaram de forma significativa e é possível observar reflexos práticos do supracitado julgamento, por exemplo, na midiática prisão temporária de Ricardo Nunes, fundador da empresa Ricardo Eletro, no início do mês.

A operação denominada “Direto com o Dono” foi realizada pela Receita Estadual de Minas Gerais, o Ministério Público e a Polícia Civil, e apura exatamente essa conduta ora criminalizada, haja visto que o empresário teria deixado de efetuar os pagamentos de ICMS próprio declarado, pelo período aproximado de 5 anos, o que supostamente gerou um prejuízo de R$ 387 milhões aos cofres públicos.

É importante ressaltar que anteriormente ao julgamento do citado RHC 163.334/SC, a apropriação indébita de ICMS era caracterizada como mero inadimplemento fiscal, não havendo, portanto, efeitos penais.1

O crime de apropriação indébita, já se encontrava tipificado no art. 2º, inciso II, da lei 8.137/90, com a seguinte redação:

Art. 2°. Constitui crime da mesma natureza:

II - deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos;

Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.2

Não houve alteração legislativa, mas apenas uma nova interpretação do tipo penal já existente, de modo a inserir o ICMS, no rol dos tributos sobre os quais a simples ausência de pagamento, e não a ocultação, configura ilícito penal.

Essa nova interpretação do STF, ao seu turno, não delimitou algumas balizas necessárias quanto aos elementos indispensáveis para que essa conduta seja digna de persecução penal.

Uma das questões pacificadas no referido julgado, em concordância com a atual jurisprudência do STJ3, é a necessidade da comprovação do dolo do empresário em se apropriar indevidamente dos valores de ICMS próprio, fixando, assim, o entendimento de que a nova interpretação não deve atingir o devedor eventual que deixou de recolher o tributo em virtude da insuficiência no fluxo de caixa de sua empresa, por exemplo.

A discussão de como se dará a comprovação do dolo, do ponto de vista dogmático, vai longe, havendo, inclusive, parte da doutrina que acredite ser essa uma obrigação dos próprios órgãos fiscalizadores, que precisam demonstrar, na denúncia, uma efetiva vontade de lesar antes mesmo da instrução criminal.

Um dos critérios estipulados pelo STF, a fim de comprovar a existência do dolo, é que a conduta deve ser praticada por devedor contumaz, conforme o entendimento do ministro Fux de que a criminalização seria "medida extrema para o devedor contumaz, para o grande fraudador, que vive às custas do erário”.

Sendo assim, o dolo se faz presente nas condutas praticadas assiduamente pelo devedor contumaz que age intencionalmente a fim de obter vantagens ilícitas a partir do não pagamento dos tributos declarados.

Nesse ponto, merece destaque o fato de não existir um conceito objetivo de devedor contumaz. A decisão do STF determinou que o crime estará consumado, portanto, se houver uma conduta reiterada e sistemática, contudo, infelizmente, não fixou as balizas necessárias para conceituar a contumácia.

A ausência de uma delimitação desse conceito gera um grande problema, e até mesmo insegurança jurídica.

No Brasil, apenas o Estado de São Paulo traz um conceito de devedor contumaz. A lei complementar 1.320/18, em seu art. 194, delimitou requisitos necessários para configuração dessa situação, o que até pode vir a ser utilizado como um novo parâmetro para que os demais Estados, mais não é possível, nesse momento, fazer tal afirmação.

 No entanto, essa opção legislativa não é óbvia para os demais entes da federação, visto que, a decisão do STF, além de não conceituar o devedor contumaz, como mencionado anteriormente, deixou também de fixar quem teria competência para legislar sobre o assunto.

Algo que também entrará nas pautas de discussão é o enriquecimento ilícito, enquanto uma das possíveis elementares do dolo específico, devendo ser feita uma análise sobre o patrimônio do contribuinte para verificar se a ação comissiva foi proposital em desfavor do Fisco.

Diante dessas lacunas, entendemos ser necessária a fixação de limites à nova interpretação que, ao acionar a esfera penal, equiparou o não pagamento de ICMS próprio declarado ao crime de apropriação indébita tipificado no art. 2º, inciso II, da lei 8.137/90.

Se o intuito da decisão do STF era conscientizar a sociedade por meio da força estatal penal, ultrapassando a esfera administrativa, a criminalização dessa conduta, em verdade, terá efeitos práticos pouco eficientes, visto que essa nova interpretação coincide com a introdução do acordo de não persecução penal.

Ainda, é importante considerar que a nova interpretação pode até mesmo induzir a prática de crime mais gravoso, visto que, para fugir do Fisco, talvez pela insegurança jurídica, muitos empresários em situação de instabilidade financeira, ainda assim, vão deixar de repassar os valores ao Estado, sem dolo específico e poderão ser investigados por crime mais grave tipificado no art. 1º da lei 8.137/90.

Para finalizar, acreditamos que o crime de apropriação indébita configurado pelo não pagamento do ICMS próprio será pouco aplicado, em razão das lacunas apontadas, bem como por existirem alternativas mais eficientes no Direito Penal brasileiro.

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1 Anteriormente, o não pagamento dos tributos declarados poderia incidir em multa relativa à mora, fixada em até 20% do valor devido, conforme o art. 43, parágrafo único, da Lei 9.430/96. As medidas adequadas para a recuperação dos tributos devidos são, na verdade, o ajuizamento da Execução Fiscal ou medidas cautelares fiscais.

2 Lei dos Crimes Contra a Ordem Tributária. Disponível clicando aqui

3 “O sujeito ativo do crime de apropriação indébita tributária é aquele que ostenta a qualidade de sujeito passivo da obrigação tributária, conforme claramente descrito pelo art. 2º, II, da Lei n. 8.137/1990, que exige, para sua configuração, seja a conduta dolosa (elemento subjetivo do tipo), consistente na consciência (ainda que potencial) de não recolher o valor do tributo devido. A motivação, no entanto, não possui importância no campo da tipicidade, ou seja, é prescindível a existência de elemento subjetivo especial.” HC 399.109-SC, Voto do Min. Rogério Schietti; disponível clicando aqui

4 Artigo 19 – Ficará sujeito a regime especial para cumprimento das obrigações tributárias, na forma e condições previstas em regulamento, o devedor contumaz, assim considerado o sujeito passivo que se enquadrar em pelo menos uma das situações:

I – Possuir débito de ICMS declarado e não pago, inscrito ou não em dívida ativa, relativamente a 6 (seis) períodos de apuração, consecutivos ou não, nos 12 (doze) meses anteriores; disponível clicando aqui

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*Mariana Zopelar é advogada da Fenelon | Costódio Advocacia.






*Giulia Rios é colaboradora da Fenelon | Costódio Advocacia.

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