Nos dias atuais, não pairam dúvidas sobre a funcionalização dos institutos fundamentais do Direito Civil, e do sistema jurídico como um todo, à luz dos valores e princípios consagrados na Constituição Federal de 1988.
Consolidando o ser humano como valor maior do ordenamento e a dignidade humana como princípio fundamental do Estado Democrático de Direito, a Constituição Federal garantiu, como objetivo fundamental da República, a promoção de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, inciso IV), além de estabelecer a igualdade, em direitos e obrigações, entre homens e mulheres (art. 5º, inciso I).
No âmbito do Direito Civil, notadamente no Direito das Famílias, o princípio da igualdade provocou uma série de repercussões jurídicas relevantes, algumas delas também previstas no próprio texto constitucional, a exemplo do art. 226, §5º, que estabelece que “os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher”.
Não se pode negar que o caminho percorrido em busca da igualdade entre mulheres e homens foi pavimentado por longos anos de luta e marcado pela forte resistência do conservadorismo e do patriarcado, tampouco ignorar a influência destes, até hoje, nas bases estruturadoras das relações sociais e políticas.
Apesar dos importantes e necessários avanços, em termos legislativos, que ocorreram ao longo da história, como o Estatuto da Mulher Casada (Lei nº 4.121/1962) e a Lei do Divórcio (Lei nº 6.515/1977), e da significativa mudança de paradigma de diversos institutos e categorias presentes no Código Civil de 1916, adequando-os à nova ordem constitucional, o Código Civil de 2002 ainda guarda certos vestígios do modelo tradicional patriarcal.
Toma-se como exemplo o seu art. 1.736, inciso I, que, reproduzindo parcialmente a previsão contida no art. 414, inciso I, do Código anterior, estabelece que as mulheres casadas podem se escusar do exercício da tutela.
Resgatando as premissas iniciais sobre a igualdade de gênero garantida pela Constituição Federal, é possível afirmar que essa regra não subsististe (ou não deveria subsistir) no ordenamento jurídico vigente. Nesse sentido, Gustavo Tepedino e Ana Carolina Brochado Teixeira afirmam que “em face do princípio da igualdade, tanto formal, quanto substancial – o art. 1.736, I, do Código Civil é inconstitucional”1.
Não por outro motivo, o Enunciado 136 da I Jornada de Direito Civil do CJF propôs a revogação do inciso I do art. 1.736 do Código Civil, sob o fundamento de que “não há qualquer justificativa de ordem legal a legitimar que as mulheres casadas, apenas por essa condições, possam se escusar da tutela”.
A supressão do referido dispositivo do Código Civil também é objeto do Projeto de Lei nº 3.610/2019, que tramita na Câmara dos Deputados e, atualmente, aguarda parecer do(a) relator(a) na Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher (CMULHER).
Como se vê, a luta pela igualdade entre mulheres e homens segue sendo uma tarefa constante. Longe de esgotar as discussões sobre o tema, a reflexão que aqui se propõe é a de questionar, para muito além das normas jurídicas vigentes e suas bases, o papel que é reservado às mulheres nos espaços de criação e discussão do direito, sob pena de se reproduzir, continuamente, regras, práticas e discursos discriminatórios.
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1 TEPETINO, Gustavo e TEIXEIRA, Ana Caroline Brochado. Fundamentos do Direito Civil – Vol. 6: Direito de Família, 1ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 398.
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*Ana Caroline dos Santos Accioli é advogada (UERJ). Pós-graduanda em Direito das Famílias e das Sucessões pela PUC-Rio.