O Supremo Tribunal Federal está debatendo, e regime processual de repercussão geral, o tema 942, cuja tese proposta pelo exmo. ministro relator Luiz Fux é a seguinte:
“A Constituição Federal não autoriza a averbação no assentamento funcional de servidor público de tempo de serviço prestado em atividades prejudiciais à saúde, com a conversão em tempo comum, mediante contagem diferenciada, para obtenção de benefícios previdenciários”
A relevância e complexidade do tema motivam a elaboração da presente nota técnica, cuja finalidade é procurar elucidar alguns pontos polêmicos do tema e quem sabe contribuir para o bom desenlace desse julgamento, na perspectiva do desenvolvimento e efetivação do Direito Previdenciário no Brasil.
O primeiro ponto a ser considerado reside no fato de que no ordenamento jurídico brasileiro é assegurada a contagem recíproca do tempo de contribuição, prevista nos artigos 40, § 9º, e 201, § 9º e 9º-A:
Art. 40. (...)
§ 9º O tempo de contribuição federal, estadual, distrital ou municipal será contado para fins de aposentadoria, observado o disposto nos §§ 9º e 9º-A do art. 201, e o tempo de serviço correspondente será contado para fins de disponibilidade.
Art. 201. (...)
§ 9º Para fins de aposentadoria, será assegurada a contagem recíproca do tempo de contribuição entre o Regime Geral de Previdência Social e os regimes próprios de previdência social, e destes entre si, observada a compensação financeira, de acordo com os critérios estabelecidos em lei.
§ 9º-A. O tempo de serviço militar exercido nas atividades de que tratam os arts. 42, 142 e 143 e o tempo de contribuição ao Regime Geral de Previdência Social ou a regime próprio de previdência social terão contagem recíproca para fins de inativação militar ou aposentadoria, e a compensação financeira será devida entre as receitas de contribuição referentes aos militares e as receitas de contribuição aos demais regimes.
À medida em que esse direito é contemplado na Constituição Federal, torna-se verdadeiro direito fundamental e, assim, não pode ser indevidamente restringido, pela legislação infraconstitucional ou mesmo por interpretação.
Por outro lado, deve-se considerar que para que ocorra a conversão de tempo de atividade especial em tempo de atividade comum, no âmbito do RGPS, e seu aproveitamento para fins previdenciários, o sistema previdenciário estabelece uma série de medidas relativas ao custeio, as quais são suficientes a atender a necessidade de prévia fonte de custeio (art. 195, § 5º, da Constituição Federal).
Nesse sentido, deve-se atentar para as disposições contidas no art. 22, inciso II, da lei 8.212/91:
Art. 22. A contribuição a cargo da empresa, destinada à Seguridade Social, além do disposto no art. 23, é de:
(...)
II - para o financiamento do benefício previsto nos arts. 57 e 58 da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991, e daqueles concedidos em razão do grau de incidência de incapacidade laborativa decorrente dos riscos ambientais do trabalho, sobre o total das remunerações pagas ou creditadas, no decorrer do mês, aos segurados empregados e trabalhadores avulsos:
a) 1% (um por cento) para as empresas em cuja atividade preponderante o risco de acidentes do trabalho seja considerado leve;
b) 2% (dois por cento) para as empresas em cuja atividade preponderante esse risco seja considerado médio;
c) 3% (três por cento) para as empresas em cuja atividade preponderante esse risco seja considerado grave.
Da mesma forma, merece atenção o conteúdo do art. 57, §§ 6º e 7º, da lei 8.213/91:
§ 6º O benefício previsto neste artigo será financiado com os recursos provenientes da contribuição de que trata o inciso II do art. 22 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991, cujas alíquotas serão acrescidas de doze, nove ou seis pontos percentuais, conforme a atividade exercida pelo segurado a serviço da empresa permita a concessão de aposentadoria especial após quinze, vinte ou vinte e cinco anos de contribuição, respectivamente.
§ 7º O acréscimo de que trata o parágrafo anterior incide exclusivamente sobre a remuneração do segurado sujeito às condições especiais referidas no caput.
Diante do disposto no art. 22, inciso II, da lei 8.212/91, C.C. art. 57, §§ 6º e 7º, da lei 8.213/91, vislumbra-se que há respaldo contributivo satisfatório à conversão do tempo de atividade especial em tempo comum, no âmbito do RGPS.
Considerando que os sistemas previdenciários se comunicam, sobretudo a partir da perspectiva da contagem recíproca do tempo de contribuição, não se pode desprezar que esse tempo de atividade especial convertida em tempo de atividade comum possa produzir efeitos também no RPPS, processando-se, em momento oportuno e posterior, a compensação financeira entre os distintos regimes, nos moldes da lei 9.796/99.
É que, existente prévia fonte de custeio que propicie a conversão do tempo de atividade especial em tempo de atividade comum, não estará caracterizado o famigerado tempo ficto, instituto que já foi repelido pelo Direito Previdenciário nacional. Nesse tocante, veja-se o art. 40, § 10, da Constituição Federal:
§ 10 - A lei não poderá estabelecer qualquer forma de contagem de tempo de contribuição fictício.
A conversão do tempo de atividade especial em tempo de atividade comum não corresponde ao conceito de tempo ficto. Esta ideia se relacionava à averbação ou aproveitamento, normalmente em dobro, de vantagens funcionais dos servidores não usufruídas oportunamente e que era levadas ao tempo necessário à aposentadoria, tal como períodos de férias ou licenças-prêmio.
A conversão de tempo de atividade especial em tempo de atividade comum equivale, mais exatamente, a uma forma de adaptação e flexibilização que o ordenamento jurídico franqueia àqueles que não trabalharam durante toda sua carreira em atividades em que estejam expostos a agentes nocivos, privando-os do direito à aposentadoria especial, assegurando, porém, uma compensação previdenciária parcial diante da exposição aos agentes insalubres.
À medida em que a aposentadoria especial por exposição a fatores prejudiciais à saúde é reconhecida no RGPS e também no RPPS (ainda que pendente de regulamentação), não há razão para se impedir o aproveitamento do tempo de atividade especial convertido em tempo de atividade comum; não se trata de óbice expresso previsto pelo ordenamento jurídico, mas de caso de lacuna normativa que deve ser compreendida em favor dos servidores públicos vinculados ao RPPS, com respaldo nos diversos argumentos apresentados acima.
Assim, espera-se que o Excelso Pretório firme tese no sentido de que seja autorizada a averbação no assentamento funcional de servidor público de tempo de serviço prestado em atividades prejudiciais à saúde, com a conversão em tempo comum, mediante contagem diferenciada, para obtenção de benefícios previdenciários.
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*Marco Aurélio Serau Junior é diretor Científico do IEPREV – Instituto de Estudos Previdenciários.
*Roberto de Carvalho Santos é presidente do IEPREV – Instituto de Estudos Previdenciários.