Migalhas de Peso

O fato e a percepção do fato - Uma breve reflexão sobre o controle do ato administrativo

O Brasil já perdeu muito com a corrupção, não merece perder ainda mais apenas por criar meios eficientes de combatê-la.

20/7/2020

No campo do Direito, estamos sempre em débito com nossas pretensões de leitura; afinal, o universo do conhecimento jurídico parece não ter fim. Nos últimos tempos, talvez pela curiosidade mais acurada, tenho me interessado pelos temas mais inéditos. Foi assim que, recentemente, me deparei com o livro “Manual de sobrevivência do administrador público: 10 passos para a excelência de sua gestão”, de autoria de Valdir Moysés Simão. Instigante, objetivo, verdadeiro manual prático que orienta gestores e candidatos a gestores públicos a obterem êxito em suas administrações, ele enumera os 10 passos que devem ser seguidos para o sucesso da jornada.

Essas virtudes já seriam suficientes, mas o que chamou mesmo a minha atenção, curiosamente, não foi o objeto do livro, propriamente, mas algo apenas referido de forma aparentemente periférica, a saber, os riscos da responsabilização do gestor público, seja no âmbito administrativo, cível ou penal.

Eis algumas passagens do livro que gostaria de destacar:

“São várias as armadilhas que se apresentarão no decorrer da gestão e que podem catapultar prematuramente o gestor de sua posição de comando ou implicá-lo em um enredo de prestações de contas e processos de responsabilização que podem durar anos, mesmo que os atos administrativos escrutinados pelo aparato de controle estatal tenham sido praticados de boa-fé.”(Simão, 2020, l.100)

“Se, por um lado, maior controle pode inibir práticas danosas ao erário público, por outro, quando em excesso, gera sensação de insegurança para o administrador, que, recorrentemente, encontra diante de si uma situação concreta não prevista em norma abstrata. Nesses casos, decidir pode ser um risco, inclusive pessoal.”(Simão, 2020, l.201)

“Logo, pode ser comum o administrador público que tomou determinada decisão de boa-fé ter que responder a diversos corpos de controle ordinariamente ou em situações específicas. Quando aparecem os questionamentos, geralmente o administrador público não contará com apoio jurídico ou administrativo para responder aos pedidos de solicitações e explicações. Se já deixou o cargo público, poderá ter dificuldade em obter documentos e informações que subsidiem a sua defesa. Dependendo da gravidade da situação investigada, terá que desembolsar uma boa quantia em honorários advocatícios para defender os seus atos.”(Simão, 2020, l.201)

“O foco do controle nos atos do administrador, somado ao notável aprimoramento das instituições de controle, pode causar certa paralisia na gestão pública, decorrente do medo de decidir ou inovar.”(Simão, 2020, l.1434)

O autor possui larga experiência no serviço público como gestor, como bem demonstra sua biografia, tendo sido Ministro da CGU e do Planejamento, portanto, é bastante familiarizado como o tema do controle dos atos administrativos.

A este respeito, o controle dos atos administrativos,tanto interno como externo, é inegável que o país teve, especialmente a partir da Constituição de 1988, expressivo desenvolvimento legislativo, administrativo e operacional. Leis, decretos, atos infralegais, novos órgãos, novos controles, nunca, é certo, a administração pública e seus agentes tiveram seus atos tão escrutinados, tão verificados, tão investigados.E tão punidos.

Esta circunstância, sem dúvida, é bem-vinda, eis que a administração pública, como atividade meio que busca, em última análise, a concretização dos direitos fundamentais inscritos na Constituição, não pode se afastar, sob nenhuma hipótese, dos limites a ela impostos pela Lei Maior: os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

Mas se este controle mais efetivo e presente dos atos administrativos, a verificação permanente da sua efetiva aderência a aqueles princípios constitucionais referidos é fundamental e importante, e se essa presença da fiscalização dos atos administrativos e mesmo da conduta dos agentes públicos possui uma desejável função inibitória de possíveis e/ou eventuais ilícitos, qual a percepção deste controle mais efetivo que tem impregnado o conjunto dos agentes públicos que, em última análise, é quem efetivamente pratica o ato administrativo?

É aqui que o título destas linhas faz a sua aparição – o fato e a versão do fato, ou o fato e a sua percepção.

Lembro-me de quando cursava Engenharia Civil e indaguei ao professor de Estruturas de Concreto Armado se era possível aumentar a segurança de um pilar aumentando-se as suas dimensões mínimas obtidas por meio do cálculo estrutural. Sua resposta foi de que não existe “mais segurança” a partir de 100%, ou seja, não existe 120 ou 200% de segurança. O que pode existir, isso sim, é uma percepção de maior segurança... Semanas mais tarde, voltei a questioná-lo acerca da razão da norma técnica exigir medidas mínimas para um pilar, ou seja, em um pilar retangular, nenhum lado, ou ao menos um deles, poderia ser inferior a 12 cm, mesmo quando o cálculo apontava para 100% de segurança com medidas inferiores. Novamente a resposta me surpreendeu: embora 100% seguro, um pilar com medidas inferiores a aquelas previstas na Norma Técnica provocaria uma percepção de fragilidade, de vulnerabilidade, de insegurança, como fosse se romper a qualquer momento.

A segurança e a percepção da segurança

Retornando. Em que pese toda a necessidade, conveniência e oportunidade de crescentes controles sobre o ato administrativo, de modo a inibir qualquer prática que o afaste dos preceitos constitucionais, será que a percepção dos destinatários acerca desses controles e de seu incessante crescimento nas últimas décadas está correta, ou será que pode estar equivocada? E se estiver dissociada da realidade, ainda que parcialmente, isso acarreta custo para a administração e, por conseguinte, para a sociedade?

Receio que os agentes públicos dos três níveis do Executivo possam ter desenvolvido uma percepção um tanto quanto afastada da realidade. Involuntária e inconsciente, certamente. E receio, também, que essa percepção se materialize em uma ideia de que sua atividade é de alto risco, que qualquer decisão que tenham que tomar pode redundar em questionamentos, investigações e punições, cíveis, penais e administrativas.

Na verdade, qualquer ato do agente público está sujeito a controle, investigação e eventualmente, punição, mas a questão central é se essa percepção acarreta, de alguma forma, dano e consequentemente custo ao Estado e à sociedade, ou não.

Tomemos o exemplo de um prefeito. Ele pode simplesmente deixar de tomar uma medida necessária e urgente, que dispensa o procedimento licitatório, por temor de estar fazendo algo ilegal e ser responsabilizado e punido pelos órgãos de controle. Ou mesmo postergar a decisão por um certo tempo. Isto certamente tem um custo para a cidade que administra, mas quem percebe isso? A avaliação do prefeito e da sua procuradoria jurídica está imune à percepção equivocada dos riscos causados pela crescente estrutura de controle?

Diversos outros exemplos podem ser citados, tais como, apenas para ilustrar, um benefício fiscal que pode demorar a ser concedido, uma interpretação mais gravosa ao administrado de um dispositivo legal ou infralegal, uma licença que demora muito mais que o razoável para ser aprovada ou então é negada etc.

Ressalte-se que não se está aqui a defender a impulsividade irresponsável, não, até porque os agentes públicos devem sempre agir com cautela e responsabilidade. O que se está a fazer é indagar se a percepção do controle dos atos administrativos causa, de algum modo, uma atitude involuntária e inconsciente de hesitação na tomada de decisões necessárias e benéficas e/ou de restrição a direitos dos administrados. E se isso de fato acontece, a que custo?

O crescimento da importância e da estrutura dos órgãos de controle interno e externo e a necessidade de controle social dos atos administrativos, imperativos de um estado democrático de direito, deve promover a rigorosa apuração e punição de ilícitos, mas também deve ter por escopo promover uma percepção adequada de seu funcionamento. Aos agentes públicos não basta saber que as controladorias, corregedorias, tribunais de contas etc. têm também a função de protegê-los quando os isenta de quaisquer imputações infundadas de prática de ilícito ou ao afastar aqueles cuja conduta os incompatibiliza ao serviço público, eles têm que ter essa percepção.

Se a percepção for de uma ameaça a sua atuação, isso pode gerar, ou mesmo já estar gerando, um custo indesejável à sociedade. E a extensão desse custo, infelizmente, talvez não seja desprezível.

Mas se a circunstância acima narrada corresponde à verdade dos fatos, cabe perquirir os porquês de sua ocorrência, ainda que de forma tópica, para que se possa propor ou projetar uma possível solução.

Enumero três possíveis causas, que atuam de forma sinérgica e se retroalimentam: a primeira, o estigma que lamentavelmente ainda acompanha os agentes públicos, aos quais a sociedade, com a reverberação da mídia, classifica, em uma generalização equivocada e injusta, como malandros, preguiçosos, corruptos, privilegiados e outros adjetivos depreciativos. Chegamos ao absurdo de ver um presidente de república se referir a agentes públicos aposentados como “vagabundos” e um ministro da economia, o atual, rotulá-los todos, ativos e aposentados, de “parasitas” e “inimigos”.

Isso cria um caldo de cultura, uma percepção (novamente!), de que os agentes públicos são, todos, infratores, para não dizer criminosos em potencial, apenas esperando a oportunidade aparecer. Evidentemente que num universo de centenas de milhares, alguns certamente cometerão infrações de menor ou maior grau de reprovabilidade. A generalização, contudo, provoca injustiças e turva a capacidade de se compreender o quadro geral.

A segunda causa atribuo à legislação. Em que pese haver avanços recentes, especificamente me refiro às leis nº 8.429/92, da improbidade administrativa, e nº 8.112/90, estatuto dos servidores públicos federais. A primeira, de aplicação geral, e a segunda apenas aos agentes federais, merecem uma revisão, uma atualização, eis que a sua estrutura normativa impõe aos aplicadores uma verdadeira camisa de força, obrigando-os a aplicar penas duríssimas, v.g. a demissão, em casos concretos em que a gravidade da infração, pelo senso comum, mereceria, possivelmente, uma punição menos gravosa.

Não se trata de advogar relaxamento das punições, mas de melhor adequá-las às condutas infracionais, uma melhor sintonia fina, por assim dizer. Não nos esqueçamos que o processo legislativo que culminou com a aprovação desses diplomas legais tem mais de trinta anos, e o contexto da época era muito diferente do atual.

Felizmente, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 10.887, de autoria do deputado Roberto de Lucena (PODE/SP), relatoria do deputado Carlos Zarattini (PT/SP), que propõe mudanças na Lei de Improbidade Administrativa. Seu texto vai ao encontro do diagnóstico feito acima, e propõe, por exemplo, a extinção da modalidade culposa da improbidade administrativa e a dosimetria das penas. É muito bem-vindo.

Quanto à Lei 8.112/90, formo ao lado daqueles que defendem que toda a parte relativa ao regime e ao processo disciplinar dos servidores públicos federais (Títulos IV e V) seja dela retirado, e que uma lei específica seja aprovada, com toda a atualização e modernização necessária, especialmenteno que concerne às condutas, penas e sua dosimetria.

Finalmente, a terceira causa atribuo, com muito cuidado, à situações eventuais em que os aplicadores da legislação de controle têm pouca experiência prática na seara de atividades dos agentes públicos escrutinados ou investigados. Embora não imprescindível, a considero oportuna e altamente recomendável, quando menos por facilitar a auditoria – a interpretação equivocada das rotinas ou práticas administrativas pode levar a uma punição severa (vide causa anterior) - e mais por evitar o discurso de quem, merecidamente punido, empunha o discurso da injustiça por ter sido auditado por alguém que não possui experiência prática no assunto. E esse tipo de discurso, é sabido, tem alto poder de alastramento.Desejável, portanto, quiçá necessário, que os órgãos de controle sejam cada vez mais providos de pessoas com vivência e experiência nas atividades sob auditoria.

A essas três causas acima descritas, que se interconectam e se reforçam, atribuo a percepção dos agentes públicos de que a onipresença dos órgãos de controle remete, ou pode remeter, sim, a uma ameaça. A primeira delas independe da atuação do poder público, mas as outras duas podem, devem e merecem a sua atenção.

A toda sociedade interessa uma administração pública cada vez mais íntegra e mais aderente aos princípios constitucionais. Aos próprios agentes públicos, especialmente.

Enfim, o Brasil já perdeu muito com a corrupção, não merece perder ainda mais apenas por criar meios eficientes de combatê-la.

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Simão, V. M. (2020). Manual de sobrevivência do Administrador público - 10 passos para a excelência da sua gestão. São Paulo: Trevisan Editora Edição Kindle.

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*Getúlio José Uba Filho é graduado em Direito, Engenharia Civil e Administração de Empresas, Auditor-Fiscal da Receita Federal do Brasil e Diretor Jurídico Adjunto do Sindifisco Nacional.

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