“(…) Ele restituir-nos-á à nossa natureza original e curar-nos-á e tornar-nos-á felizes e abençoados (…).” Platão (Banquete, 193d)
Ações coletivas, na Europa, são um fenômeno recente, se comparado à experiência estadunidense e à nossa. Não há uma legislação comum ali a tutelar esse microssistema – para usar o jargão dos scholars. O que há de certo é que a collective redress visa proteger o mercado, de modo a corrigir distorções; sua perspectiva é concorrencial, a de eliminar barreiras ao livre trânsito de produtos e serviços que maculem a liberdade do consumidor1. Afinal, numa economia aberta, the consumer rules; ele escolhe e decide quem fica e quem sai. É a democracia do indivíduo, do plebiscito diário. Ali, a função punitiva das indenizações não é regra, nem de modo geral é aceita. Há casos em que já se rejeitou execuções de punitive damages vindas do Poder Judiciário norte-americano2.
In terrae brasilis, a situação é bem diferente. Não há, aqui, nem nunca houve, economia de mercado, mas (i) mercantilismo atávico – o Estado a promover riquezas e a conduzir de algum modo a economia; (ii) gerador de patrimonialismo feroz – o Estado sempre a obter algum benefício com essa condução, por dentro ou por fora; e (iii) cartorialismo hereditário – grupos de interesses de dentro ou de fora do Estado, mas sempre jungidos a este, a administrar in bonam partem essa repartição de benefícios. No plano jurídico, o coletivismo segue essa trilha. Ele não nasceu com a Constituição de 1988. Já tínhamos, v.g., a experiência das leis 4.717/65 e 7.347/85. Mas com a Carta Babilônica ele ganhou impulso e direção: uma direção acadêmica e antiempresarial, na linha do (já então desintegrado) western marxism; na linha, enfim, do nosso tribalismo cultural.
Mas o problema de todo tribalismo é que há sempre muitos índios para poucos caciques. E estes desde cedo se arvoram na condição de entidades tutelares e salvadoras do coletivo. E desde cedo se põem a pensar, e a querer, e a decidir por todos. Depois, e já não muito tarde, opera-se um afastamento da tribo, ou, mais precisamente, os caciques passam a se autotutelar, sempre a pretexto de tutelarem o coletivo. O coletivo, na verdade, é pretexto teórico, assim como na luta de classes, os operários serviram de motivo intelectual para a verborragia profético-dogmática, e seus interesses (bem materialistas), dos sumos reformadores da humanidade. E a Inglaterra, berço e destino das cogitações salvíficas, logo cometeu a descortesia de transformar bons trabalhadores em maus burgueses. Nesse sentido, são altamente questionáveis – e aqui se fala com uma experiência direta e diária de mais de 20 anos –, os resultados práticos em termos de utilidade e eficiência das ações coletivas no Brasil. São altamente questionáveis a aderência real dos substituídos a essas demandas. São altamente questionáveis a efetiva satisfação de seus interesses. Haverá casos, é certo, em que isso ocorreu; e poderão nem ser tão poucos assim; mas serão certamente exceções que confirmam a regra.
Atualmente, segundo o CNJ, há 100 milhões de processos, aproximadamente, em curso perante o Poder Judiciário; só em 2017, foram ajuizadas 62.210 ações coletivas (41.686 ações civis públicas, 14.119 ações de improbidades administrativa, 4.211 ações civis coletivas e 2.194 ações populares)3. Números substanciais que revelam uma constatação muito séria: a de que o coletivismo molda e domina o pensamento jurídico entre nós; e, se não o molda e domina, o influencia decisivamente. Com efeito, miríades e miríades de demandas são propostas e julgadas por publicistas, sob a ótica publicista, permeada de dogmas e preconceitos publicistas – para falar aqui apenas das ações coletivas propriamente ditas, sem considerar as ações diretas de controle concentrado, com sua multi-pluralidade de legitimados, notadamente por conta da infinidade de partidos políticos, cuja nota comum é a inexistência ou a indigência de conteúdos programáticos. Demandas com primazia no foro; é o acadêmico fenômeno da objetivação do direito, quer dizer, o direito é definido pelo coletivismo. Demandas que, já na largada, contam com o benefício da certeza; e mais do que isso, com o benefício da própria verdade; a rigor, os autores não precisam nem provar o que alegam, esse ônus é do indivíduo, e fica (ope iudicis4, e às vezes até ope legis, por simples inferência, após a interpretação de princípios5) invertido. Até o direito civil, faz tempo, não é mais direito civil: é direito civil acadêmico-constitucional; também ele, portanto, foi tragado pelo publicismo.
A moral da uva vai para muito além de números e estatísticas: ela revela que o Estado-Administração subjuga e controla o mundo da vida, e que a ótica que prevalece é a burocrática, não das relações espontâneas. Democracia é a velha democracia do Poder Público – populista e permeada de intermediários. Mas democracia só faz algum sentido, dizia Tocqueville, se for o espaço do indivíduo. É fácil, entre nós, engendrar teorismos intervencionistas; é fácil, com eles, invadir a economia de contratos. Difícil é firmá-los; e mais difícil ainda é empreender e sustentar atividades; difícil, enfim, entre nós, é fazer. Essa nefasta inversão dá bem o tom do estado da arte do nosso atraso.
No entanto, dentro da vastidão desse universo de ações coletivas, o que se constata, muitas vezes – definitivamente não são poucas – é que:
(a) elas vão amiúde contra os próprios interesses dos seus substituídos6; isso sob a (velha e) soberba presunção (platônica), que atravessa a nossa tradição professoral, de que os iluminados (no caso, os autores coletivos) sabem o que é melhor para todos, a partir de suas convicções pessoais de mundo7;
(b) o que muitas vezes ainda acontece – e também aqui não são poucas – são ações coletivas propostas de modo seletivo, dentro de um determinado setor econômico,8 apenas contra determinadas empresas, que adotam práticas reguladas comuns9;
(c) o que amiúde acontece são ações coletivas sem nenhuma dimensão coletiva, nas quais o autor se vale da legitimação extraordinária como um cheque em branco que a lei lhe atribuiu para ostensivamente advogar em defesa de pequeno grupo10, às vezes de uma pessoa só11, e às vezes até de pessoa nenhuma, mas de um mero pseudônimo incógnito12; demandas propostas a partir de conjecturas teóricas como trampolins para teoremas sociais;
(d) o que também sói se apresentar são ações coletivas para a defesa de interesses privados dos próprios autores coletivos13 ou dos substituídos14; ou, por fim,
(e) ações coletivas simultâneas, por autores coletivos distintos, acerca do mesmo bem da vida, com superposição de condenações contra o mesmo réu15.
Na prática, as ações coletivas presta(ra)m-se a três finalidades:
(i) servir de laboratório para teses acadêmicas que culminaram por vingar no mundo jurídico, tais como a do dano moral coletivo – uma anomalia jurídica, porque se traduz numa super-multa discricionária e sem previsão em lei; e, ainda, a da eficácia nacional da sentença coletiva – um atentado, antes de mais nada, contra a federação e, portanto, contra a sua lógica de limitação do poder. E o fato é que o Poder Judiciário foi complacente com esses experimentos jurídicos, dando-os de comer e beber, e fazendo-os crescer, ganhar corpo e dar cria (o STF julgará ainda, com repercussão geral já reconhecida, a eficácia nacional da sentença coletiva no RE 1.101.937);
(ii) expandir, a partir de teses de laboratório, de modo silencioso e paulatino, em escala sempre crescente de ousadia e avanço, a legitimidade dos autores coletivos, implicando, na prática, na expansão de seus poderes a latere da lei e por mero constructum judiciário; nesse sentido, assistiu-se, e ainda assiste-se hoje cada vez mais, a autores coletivos a pretenderem implementar políticas públicas per se por meio de ações coletivas, bem como a legislar para além da normativa editada pelo Poder Público, notadamente das agências reguladoras16; e o Poder Judiciário também não coibiu esse inchaço silencioso, o que repercutiu no aumento da judicialização e do criacionismo jurídico; e, sobretudo, como um amálgama perfeito e até finalístico de (i) e (ii),
(iii) elas serviram e servem para arrecadar recursos para a arca dos misteriosos fundos públicos do Tesouro a partir de condenações em danos morais e multas processuais nada reversíveis ao consumidor e nada influentes na melhoria do serviço ou na excelência do produto; ou seja, aqui fica claro, com cores bem vivas, o descolamento a que se aludiu acima entre interesses de tutores e tutelados; é que, bem vistas as coisas, as ações coletivas, entre nós, não ostentam finalidade curativa, nem corretiva do ambiente concorrencial; elas, ao fim e ao cabo, são fontes de receitas públicas.
Disfunções de mercado, portanto, convêm ao Poder Público; ele se alimenta delas – para se pagar. Certamente, os 35% de participação da arrecadação tributária no PIB nacional (percentual digno das guildas medievais) não são suficientes, porque o publicismo é muito caro; Brasília é muito cara. Em 2016, o Distrito Federal – onde praticamente nada se produz em termos de riquezas econômicas – foi o maior PIB per capita por Estado no Brasil, ao atingir R$79.099,7717. A partir daí, então, do peso da gravidade publicista, nascem os desvios. E a ação coletiva se tornou um grande desvio. Do limão o Poder Público faz uma limonada, e bebe ela toda, quer dizer, cada tentáculo do Poder quer uma jarra só para si; e assim, com sua vasta (i) superposição de esferas – a pretexto de serem independentes, embora a coisa seja a mesma – e (ii) pulverização de legitimados (MP, Defensoria, União, Estados, Municípios e seus Procons, autarquias, órgãos ambientais, agências, TCU, TCEs, TCMs, etc), ele ganha com as disfunções. Assim o coletivismo ajuda a manter firme o cabresto, dita a paz e a unidade na aldeia global, e fixa o pensamento uniforme de cartilha, difundido e aparelhado aos quatro ventos como mantra ideológico. O coletivismo produz e reproduz razões de estado e sela a ética publicista, na qual os fins sempre justificam os meios – a negação da moral.
A encimar tudo isso, a cereja do bolo: o CDC, o fetiche e a arma letal dos scholars contra a livre iniciativa, contra a produção, e contra a mercadoria, que aliena, é diabólica, visa a fins egoísticos e blá blá blá – outro preconceito de origem platônica. O CDC vende livro, engendra mais razões de estado, e sustenta o discurso ideológico da vulnerabilidade e da dominação – dominação por quem o sustenta. O CDC é mais do que isso: é fundamento da República. Quer dizer, não para todos: ao Estado, o regime público (de prerrogativas e cláusulas exorbitantes e extorsivas): à livre iniciativa, o CDC (com suas cláusulas abertas). Porque o CDC não se aplica ao Poder Público. Não, na prática. Ou, se se aplica, é de modo soft, no modo avião. Na realidade, o Poder Público está infenso a seus efeitos devastadores. A primeira coisa que se fez – a lei irmanada com a jurisprudência –, foi excluir os tributos da sua linha de frente (MP 2.180-35/2.001), justamente o interesse mais difuso que pode haver, que alcança invariavelmente a todos, como a morte. Na arca do Poder Público ninguém pode bulir; nem ela poderia ficar sujeita a tão feroz artilharia. De mais a mais, como cobrar danos morais coletivos e astreintes e quejandos do Poder Público? Por precatório? Mas precatórios, por definição, foram feitos para não serem pagos – precatórios são calotes públicos institucionalizados.
Um exemplo na saúde suplementar. À luz da Constituição Federal (art. 23, II, 196 e 198, I), não cabe a ela substituir a saúde pública. Embora atividade regulada (Lei 9.961/00, arts. 1º e 4º), seu regime é de mercado, sob o signo da concorrência, materializada em contratos. Mas hoje é o campo mais fértil para políticas públicas judiciárias. A fórmula mágica é simples, também já banal:
(a) o autor coletivo concebe, em seu gabinete, de lege ferenda, o que, a seu juízo, entende que seria melhor para a saúde pública; para dar forma e conteúdo a seu desejo, invoca princípios, soltos e pródigos, como há tantos – e o CDC está aí para isso;
(b) depois ele coloca no papel, na forma de uma demanda, no corpo de uma petição inicial em ação coletiva, seu plano regulatório; e, por fim,
(c) ele pede ao Poder Judiciário que sua política pública, por ele mesmo concebida, sem contar com nada – nenhum estudo, nenhuma fonte de custeio, nenhum respaldo técnico-econômico, nenhum debate, enfim, sem nada –, vire realidade, por meio de um comando judiciário, no que, as mais das vezes, é atendido;
(d) o mais curioso, e sintomático, e trágico, disso tudo é a nossa situação sócio-política: esse procedimento, já na largada, isenta e ignora o Poder Público; como a saúde pública não funciona, e isso é um fato da vida, direcionam-se, imediatamente, todas as pretensões contra a saúde suplementar; o que o Estado prometeu, e não cumpriu, deve ser suprido pelo particular; aí está o vício congênito, origem de todas as distorções em sequência, mas que passa em branco, como premissa inquestionada; o Estado, justamente o segurador coletivo, fica imune a ataques; o CDC não foi talhado para ele. E com o CDC, e todo o seu explosivo arsenal teórico-normativo, transfere-se, na prática, a responsabilidade pela saúde pública do Estado para o particular; aquele sai do foco da mídia e das notícias bombásticas, e dá lugar a este.
Cite-se, nessa linha, um exemplo à luz da pandemia (o tema momentoso): a ANS já incluiu no rol mínimo de coberturas, e exames, e tratamentos que ela edita – e já julgado taxativo pelo STJ18 – a obrigatoriedade do exame para diagnóstico do COVID-19. É o exame indicado pela OMS19, o RT-PCR (Res. da ANS 453/20), além de outros 6 exames (Res. ANS 457/20). Não há que se falar, portanto, em desamparo ou risco aos usuários. Mas a mídia já noticia a existência de engenhosa ação civil pública por meio da qual uma associação postula, sponte sua, o alargamento desse rol; e pede, ali, sem nenhum lastro, o exame sorológico (IgM e IgG), pelo simples fato de possuir registro sanitário perante a ANVISA; deduz, ainda, uma série de medidas a serem tomadas, como se fosse agência reguladora a editar política pública; invoca, para tal, o CDC; diz que o Brasil é um dos países que menos testa20; e brada, com o brado de efeito, que a saúde não pode ser mercantilizada; e a liminar, o que já não causa mais nenhum espanto, foi deferida. Esse exemplo – da ordem do dia – bem ilustra a dobradinha CDC-Poder Público. Este serve-se daquele; aquele foi feito para encobrir a inércia deste.
Um outro exemplo, agora na telefonia. Procons de todo o país, substituindo-se à Anatel – que já dá vazão com muito esmero ao seu furor de multar – deram as mãos em 2009 para propor uma ação coletiva na qual postulam aproximadamente 300 milhões de reais a título de danos morais coletivos de uma operadora de telefonia21. O motivo? Telefones, alegadamente, não funcionaram. Então eles entenderam que uma indenização num montante tão alucinatório seria devida a eles – veja-se bem, não aos consumidores, mas a eles. A demanda, na verdade, é tão surreal, que eles nada postulam a respeito do serviço: nenhuma providência, nenhuma melhoria, nada! A ação coletiva serve, pois, aqui, a seu publicano papel de arrecadar recursos para os cofres públicos. O CDC serve de instrumental acadêmico para o Poder Público, e o consumidor serve de mero pretexto teórico.
Por fim, dois exemplos do Rio-Maravilha-a-vitrine-de-braços-abertos-do-nosso-caos. Por longo período, a Av. Niemeyer ficou fechada; e por mais de mês a população carioca tomou banho, fez comida, e bebeu água basicamente constituída de coliformes – fecais22. Mas não houve nenhum grande alarde – judiciário – aqui (a prestadora do serviço é empresa pública). Tempos depois, soube-se do ajuizamento de uma ação coletiva cuja tutela foi inicialmente indeferida justamente porque o réu é empresa pública (?!?!?). Mas isso não é o mais significativo. O que se extrai de mais relevante desses dois exemplos é que, em ambas as situações, tanto na da Av. Niemeyer quanto na da Estação Guandu, a causa dos desastres foi a mesma: derivou da omissão, e mais do que da omissão, da inércia, e mais do que da inércia, da leniência reiterada por décadas do Poder Público em não conter ou adotar medidas eficazes contra a favelização (e a essa altura, pode-se dizer, incontrolável) ao longo da cidade e dos demais municípios. Não seria politicamente correto – literalmente – adotar medidas a respeito desse problema porque, no fundo, o que está em questão são relevantes colégios eleitorais. O CDC não ajuda aqui; o CDC não tem função aqui; o CDC é para desviar o foco; o CDC é para telefones, televisões e fogões que não funcionam. O CDC é o ópio do publicismo.
República, em Platão, não se traduz por soberania popular, muito menos por democracia do indivíduo. Traduz-se por (aquilo que se entende por) Estado. É a República do Rei-Filósofo: a eterna tara dos reacionários; o sonho secreto dos reformadores do mundo; e o segredo de alcova das doutrinas da salvação. E seus eflúvios, e sortilégios, e reminiscências eletromagnéticas, alcançaram a Constituição Federal de 1988. É claro que não temos nenhum Filósofo-Rei; mas temos:
(i) nossa casta sacerdotal do poder, amparada e guardada por uma elite burocrático-acadêmica; e, na larga base, a sociedade (uns com falsas garantias, outros, com nenhumas) que, como toda boa grei, trabalha para manter esse quadro parado – e nisso consiste a própria síntese da teoria platônica de Justiça: cada um no seu lugar;
(ii) um Estado holístico de fins dirigentes últimos, voltados para a sua preservação, no qual os fins justificam os meios – por isso ficamos sempre a meio caminho de tudo;
(iii) um Estado prussiano de Administração, a síntese intervencionista perfeita, como nem mesmo Hegel, outro herdeiro de Platão, jamais poderia ter concebido;
(iv) um Estado em que a totalidade viva e moral é o Poder Público, que tudo absorve numa dialética em que ele sempre ganha;
(v) um Estado ideal, enfim, de bojuda engenharia utópica – e todos os Estados ideais até hoje, assim mostra a história, excluíram a liberdade individual.
Aqui reside nosso devastador saldo devedor. Como ressai da trilogia “República”, “Político” e “Leis”, o objetivo da paideia é a moldagem das mentes e das almas, que devem “tornar-se, por um longo hábito, totalmente incapazes de fazer o que for independentemente” (Leis). E o coletivismo jurídico tem contribuído fortemente para isso: para embotar e infantilizar o indivíduo; um coletivismo, portanto, reacionário – reativo a este, a tolher a ampliação da sua consciência e dever de emancipação, mantendo-o bestialmente preso e dependente ao Poder Público; um coletivismo que nos remete ao desejo nostálgico (tribalista) de sermos aliviados da nossa responsabilidade pessoal; um coletivismo, enfim, que tem servido de afiado instrumento de intervenção direta e discricionária na economia, a configurar, como diria Bastiat (A Lei), um sistema de espoliação legalizada.
Contratos, afinal, são firmados para acertar relações. Mas, entre nós, não se tem absolutamente certeza de nada quando se celebra um. Nunca se sabe, afinal, o que o autor coletivo dirá de cima para baixo a respeito logo depois, ou anos depois; nem o Poder Judiciário. Os negócios ficam, portanto, sob condição suspensiva. E princípios, como se sabe, podem levar o rumo da prosa para qualquer lugar... Então o ambiente é feito para não ser seguro; então quem tem capital para investir, podendo fazê-lo noutras praças, não o fará aqui, é evidente; então a produção diminui; então a circulação de riquezas míngua; então a economia se retrai; então a concorrência fica reduzida; então os agentes econômicos remanescentes ficam mais expostos às injunções diretas do Poder Público; então o consumidor, na prática, tem menos opções e menos capacidade de escolha; então a sociedade fica estagnada; então o desemprego aumenta (num saldo de 14 milhões); então giramos sem cessar no looping desse circuito vicioso. Nesse quadro, só o publicismo medra, cresce e se incrementa.
Não obstante, temos o CDC. Assim a sociedade fica anestesiada, e o Poder Público, a salvo (da mira da opinião pública). Assim ele lava as suas faltas e se redime. Em meio a isso, o discurso oficial reproduz a filosofia muito útil do sábio Pangloss: “tudo vai bem, da melhor maneira possível, no melhor dos mundos”. As instituições (públicas), dizem, funcionam – embora tudo ao redor esteja estacionado. Afinal, o grande teatrólogo e sedutor, Platão, também ensinou que é dever dos governantes ministrar mentiras e enganos – “para a manada atingir a mais alta perfeição” (República, 459b e ss). Aliás, o Estado sempre foi o detentor do monopólio da mentira – não deixa, portanto, de ser uma outra grande fake news todo esse discurso acadêmico sobre fake news. É claro que não se deve mentir. Porque a mentira mina a confiança. E sem confiança não há segurança para se dar um passo adiante. E sem segurança para se dar um passo, não é possível projetar a vida. É falsa a doutrina macunaímica do improviso. Improvisar não é bom; não se vive na precariedade. Mas confiança, justamente, nunca foi algo sério entre nós. As instituições não são confiáveis, a literatura louva gambiarras, a academia concebe diariamente engenhosas vias de escape e instabilidade; e a sociedade, sem referência, reproduz os mesmos passos. No entanto, se o fogão não funcionar, ou o telefone, é só comunicar o fato ao autor coletivo – basta uma única reclamação, nem precisa se identificar – e ele ingressará imediatamente com uma ultra hiper mega blaster power ação coletiva, na qual, numa tacada só (comoditatis causa) postulará tudo (para ele): danos morais coletivos, multa processual com fluência diária em valor acachapante e, de quebra, eficácia nacional, em prol de todos os consumidores do Brasil – que talvez nunca venham a saber da existência da ação. Não é bom, portanto, que esse estado de coisas acabe. É pelo bem coletivo e pela supremacia do interesse público. Até porque, lembrava Karl Popper, seja qual for a autoridade que aceitemos, somos nós quem a aceitamos (A Sociedade Aberta e Seus Inimigos).
A ladainha acerca da supremacia
Do lauto interesse público
É a mentira, senhor, a mais vazia
Que o Poder vende caro ao súdito!
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1 “There have been some significant shifts in mechanisms. First, the EU rejected the US model of maximizing private enforcement in favour of a more balanced (public-private) approach involving safeguards. (...) Second, collective redress has arisen as an issue in certain particular sectors – consumer protection, competition enforcement, and recently others including data protection – but no generic legislation has been passed.” (HODGES, Christopher; VOET, Stefaan. Delivering Collective Redress: New Technologies. London: Hart, 2019, p. 24/35; 1 e 2/120).
2 “Ao contrário, a Corte Europeia tem, sistematicamente, recusado a condenação ao pagamento desse tipo de sanção. Assim, por exemplo, ocorreu nos casos AKDICAR v. TURQUIA, de 1º de abril de 1998; SELÇUK e ASKER v. TURQUIA, de 24 de abril de 1998; e CABLE e outros v. REINO UNIDO, de 18 de fevereiro de 1999” (MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 257).
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4 Alguns julgados do STJ, desde o ano de 2009: RESP 1.790.814/PA, j. 19.6.2019; AgInt no ARESP 1.151.766/MS, j. 21.6.2018; AgInt no RESP 1.322.449/RJ, j. 22.8.2017; AgInt no ARESP 691.589/GO, j. 13.9.2016; AgInt no RESP 183.202/SP, j. 10.11.2015; AgRg no Ag 1.406.633/RS, j. 11.2.2014; RESP 1.235.467/RS, j. 20.8.2013; AgRg no AREsp 216.315/RS, j. 6.11.2012; Informativo STJ 463 – RESP 951.785/RS, j. 15.2.2011; RESP 1.189.679/RS, j. 17.12.2010; Informativo STJ 404 – RESP 972.902/RS, j. 25.8.2009.
5 Alguns julgados do STJ: RESP 883.656/RS, j. 9.3.2010; RESP 972.902/RS, j. 14.9.2009.
6 V.g., ações coletivas com pretensão para suspender fornecimento de serviço essencial - TRF5, AC 0010154-60.2014.4.05.8100; TJ/MT, AI 85368/2015; Justiça Federal de Roraima, ACP 0005124-81.2015.4.01.4200; 4ª Vara Cível de Juiz de Fora/MG, ACP 0678874-75.2014.8.13.0145; TJ/RS, ACP 0128748-66.2015.8.21.0001; Justiça Federal do Mato Grosso do Sul, ACP 0013259-94.2014.4.03.6000; Justiça Federal do Ceará, ACP 0010154-60.2014.4.05.8100.
7 5ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro/RJ, ACP 0021721-30.2005.8.19.0001.
8 Nos casos já citados, setor de telefonia.
9 Exemplos: todas as ACPs citadas no rodapé 4.
10 6ª Vara Cível de Manaus/AM, ACP 0613299-19.2014.8.04.0001; 2ª Vara Federal de Fortaleza/CE, ACP 0010154-60.2014.4.05.8100; 3ª Vara Cível de Vitória/ES, ACP nº 0048479-02.2013.8.08.0024; 1ª Vara Cível de Chapadão do Sul/MS, ACP nº 0900023-11.2016.8.12.0046; 2ª Vara de Direitos Difusos, Coletivos e Individuais Homogêneos de Campo Grande/MT, ACP 0019167-10.2011.8.12.0001; 2ª Vara Cível de Porto Velho/RO, ACP 0008799-89.2013.8.22.0001; 2ª Vara Cível de Boa Vista/RR, ACP 0837143-56.2014.8.23.0010; 2ª Vara Cível de Cotia/SP, ACP 1001950-37.2015.8.26.0152; 1ª Vara da Fazenda Pública de Campinas/SP, ACP 1001051-56.2015.8.26.0114.
11 6ª Vara Cível de São Paulo/SP, ACP 0070828-95.2012.8.26.0100.
12 32ª Vara Federal do Rio de Janeiro/RJ, ACP 0048478-50.2012.4.02.5101.
13 1ª Vara Cível Da Comarca de Aurora/TO, ACP 5000565-13.2013.8.27.2711.
14 TJ/DF, Apelação ACP 20130810074124.
15 TRF5, Ação Rescisória 0800349-66.2015.4.05.0000/SE; TRF2, AC 201350011064446/RJ.
16 8ª Vara Federal de Sergipe, ACP 948-11.2013.4.05.8503; Vara Federal de Bento Gonçalves/RS, ACP 001216-11.2010.404.7113; 1ª Vara da Fazenda Pública de Campinas/SP, ACP 1001051-56.2015.8.26.0114; 2ª Vara dos Feitos de Relação de Consumo Cíveis e Comerciais de Vitória da Conquista/BA, ACP 0009542-35.2010.805.0274; 3ª Vara Cível de Vitória/ES, ACP 0048479-02.2013.8.08.0024; 1ª Vara Cível de Chapadão do Sul/MS, ACP 0900023-11.2016.8.12.0046; 1ª Vara Cível de Rolim de Moura/RO ACP 0005986-96.2012.822.0010.
20 ACP 0810140-15.2020.4.05.8300, 6ª Vara Federal da Seção Judiciária de Pernambuco.
21 ACP 2009.34.00.024717-3, 1ª Vara Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal.
22 Ao que consta, só tempos depois uma ação coletiva foi ajuizada pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro em conjunto com o MP, na qual postularam em face da CEDAE danos (morais e materiais) individuais e coletivos (ACP 0040259-34.2020.8.19.0001, TJ/RJ); inicialmente, o Juízo indeferiu os pedidos de urgência. Somente depois de bastante insistência é que se deferiu, ainda assim parcialmente.
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*Bruno Di Marino é advogado.
*Álvaro Ferraz é advogado.