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Seguro de vida e pandemia

Se a pandemia, a despeito de suas devastadoras consequências sanitárias, não acarreta proporção de sinistros que extrapole a margem de segurança atuarial, a seguradora deve dar cobertura.

14/7/2020

1. Validade da excludente de cobertura em razão de pandemia

É comum constar como risco excluído das apólices de seguro de vida “epidemias e pandemias, desde que declaradas pelos órgãos competentes”. Indaga-se se aludida excludente é legítima ou se, ao revés, é abusiva sob a perspectiva do Código de Defesa do Consumidor (CDC). De acordo com o CDC, abusivas são as cláusulas que, de uma maneira geral, colocam o consumidor em desvantagem exagerada ou frustram a finalidade do ajuste.1 Mostra-se ilustrativo o enunciado 302 da súmula da jurisprudência do STJ, segundo o qual “é abusiva a cláusula contratual de plano de saúde que limita no tempo a internação hospitalar do segurado”. O enunciado elucida que as cláusulas limitativas de cobertura não podem chegar ao ponto de esvaziar o objeto da avença, comprometendo a utilidade do ajuste.2 Uma vez coberta a doença, não se admitem limitações no seu tratamento que impliquem, em última análise, não ser a doença o verdadeiro objeto do contrato, mas apenas serviços limitados, tais como alguns dias de internação, algumas sessões de quimioterapia, intervenções cirúrgicas específicas e restritas etc.3

Portanto, abusivas são as cláusulas que, em concreto, embora ajustadas com a anuência do consumidor,4 frustrem o escopo contratual, incapacitando o negócio para cumprir a função para a qual foi firmado, em violação ao art. 51, IV e § 1º, do CDC. Nesse sentido, a exclusão de cobertura de pandemia nos seguros de vida não se mostra abusiva, pois não acarreta frustração do objeto contratual e permite legítima contenção atuarial do valor da apólice.5 A excludente, com efeito, associa-se a risco extraordinário e de proporções desconhecidas, sendo, em princípio, legítimo que a seguradora afaste essa álea.6

2. Interpretação da excludente à luz da boa-fé objetiva

A excludente de cobertura em razão de pandemia deve ser interpretada de acordo com a boa-fé objetiva, que impõe às partes o dever de colaborar mutuamente para a consecução dos fins perseguidos com a celebração do negócio jurídico. Como se sabe, atribui-se à boa-fé objetiva três funções principais: (a) função interpretativa; (b) função restritiva do exercício abusivo de direitos; e (c) função criadora de deveres anexos à prestação principal.7

A boa-fé objetiva, em sua primeira função, exige que as cláusulas contratuais sejam interpretadas conforme o objetivo comum pretendido pelas partes. O sentido da cláusula, dessa forma, deve ser alcançado a partir das finalidades perseguidas com o negócio. Em sua segunda função, a boa-fé objetiva funciona como parâmetro para se aferir a legitimidade do exercício de um direito contratual, o qual deve se dar em respeito aos fins da avença e às legítimas expectativas das partes. Por fim, na terceira função, a boa-fé objetiva cria deveres que se inserem no regulamento contratual, voltados a propiciar o pleno alcance do escopo negocial.

A exclusão de cobertura para pandemia, como ressaltado, afigura-se, em abstrato, legítima. Sua função precípua é proteger a seguradora contra riscos que podem tomar proporção devastadora e que não foram considerados por ocasião da fixação do prêmio. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), “pandemia é a disseminação mundial de uma nova doença e o termo passa a ser usado quando uma epidemia, surto que afeta uma região, se espalha por diferentes continentes com transmissão sustentada de pessoa para pessoa”.8

Antes da covid-19, a pandemia mais recente havia sido em 2009, com a chamada gripe suína, causada pelo vírus H1N1.9 Note-se que o grau de letalidade e de contaminação variam, não apresentando todas as pandemias as mesmas proporções. A excludente de cobertura, diante disso, por força da boa-fé objetiva, deve ser interpretada com base nos concretos efeitos da pandemia: afinal, se a morte por doença é coberta, a condição de pandemia só deve afetar a cobertura se, efetivamente, adquirir proporção que rompa o equilíbrio contratual.10 Permitir que as seguradoras invoquem a pandemia como causa exonerativa independentemente de seus concretos efeitos seria desvirtuar a função da excludente em contrariedade ao escopo contratual.

Por outras palavras, se a pandemia, a despeito de suas devastadoras consequências sanitárias, não acarreta proporção de sinistros que extrapole a margem de segurança atuarial, a seguradora deve dar cobertura. Por tal razão, a decisão de muitas seguradoras, já publicamente anunciada, de efetuar o pagamento da soma segurada a despeito da excludente, não deve ser considerada, tecnicamente, gesto de liberalidade. Cuida-se, em verdade, de decisão que preserva o sentido da excludente: proteger a seguradora de risco extraordinário que efetivamente aumente, de forma desproporcional, a ocorrência de sinistros.

Em definitivo, invocar a excludente de cobertura apenas porque a literalidade da cláusula assim o permitiria, sem se avaliarem os concretos efeitos da pandemia, seria conferir à cláusula interpretação contrária à boa-fé objetiva não apenas em sua função interpretativa, mas também em sua função limitadora do exercício abusivo do direito. Desse modo, a cláusula que exclui a cobertura, embora legítima, deve ser interpretada de acordo com a boa-fé objetiva, sob pena de se frustrar a finalidade do ajuste. Afinal, se a morte por doença é coberta, a alteração de seu status para pandemia só pode acarretar a exclusão de cobertura se tal condição verdadeiramente impactar o equilíbrio atuarial, extrapolando, no caso concreto, a margem de sinistralidade contida na precificação contratual.

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1 V. art. 51 do CDC.

2 Sobre o tema, v. Milena Donato Oliva e Pablo Renteria, Tutela do consumidor na perspectiva civil-constitucional: a cláusula geral de boa-fé objetiva nas situações jurídicas obrigacionais e reais e os Enunciados 302 e 308 da Súmula da Jurisprudência Predominante do Superior Tribunal de Justiça. In: Revista de Direito do Consumidor, v. 101, 2015, p. 103-135.

3 “Se a doença tem cobertura contratual, outra cláusula não pode limitar os dias de internação; isto não importa mera limitação do risco, vale dizer, limitação da obrigação, mas limitação da própria responsabilidade do segurador, e, por via de consequência, restrição de obrigação fundamental inerente ao contrato. Uma coisa é a doença não ter cobertura, caso em que o segurador não assumiu nenhuma obrigação a seu respeito (não assumiu o seu risco), e outra coisa, bem diferente, é a doença ter cobertura e, a partir de um determinado momento, deixar de tê-la” (Sergio Cavalieri Filho, Programa de responsabilidade civil, São Paulo: Atlas, 2012, p. 482).

4 A anuência do consumidor não retira a abusividade da cláusula. As cláusulas abusivas são rechaçadas objetivamente, independentemente de terem sido informadas ostensivamente aos consumidores e independentemente da anuência destes. As normas protetivas do consumidor são insuscetíveis de disposição e, portanto, o consumidor não pode validamente optar por contratar uma cláusula abusiva.

5 “Embora o contrato de seguro seja aleatório, o mesmo assenta no equilíbrio entre o risco incorrido pelo segurador (enquanto probabilidade e potencial intensidade do sinistro) e o prémio” (Luís Poças, O surto de COVID-19 e a diminuição do risco seguro, in Revista de Direito Comercial, Liber Amicorum, p. 891. Disponível clicando aqui. Acesso em 10.7.2020). A denotar a necessidade de equilíbrio no contrato de seguro, cf. disciplina contida nos artigos 768, 769 e 770 do Código Civil. Cf., ainda, com ampla análise sobre a disciplina do contrato de seguro, a excepcional obra de Ilan Goldberg, O contrato de seguro D&O, São Paulo: Thompson Reuters, 2019, p. 59-154.

6 V., sobre a noção de riscos extraordinários, Pedro Alvim, O contrato de seguro, Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 253-254.

7 Gustavo Tepedino, Soluções práticas de Direito: pareceres, vol. I, p. 326-327.

8 Clique aqui. Acesso em 10.07.20.

9 Clique aqui. Acesso em 10.07.20.

10 Cf., a propósito, Bruno Miragem, Cláusulas de exclusão de risco de pandemias e epidemias: aspectos conceituais. In: Revista Jurídica de Seguros, 12, maio/20, p. 115; Thiago Junqueira, Dilemas contemporâneos: os seguros privados e a cobertura das pandemias. In: Revista Jurídica de Seguros, 12, maio/20, p. 95.

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A temática deste artigo foi abordada no Webinar promovido pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro – EMERJ, disponível clicando aqui.

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*Milena Donato Oliva é professora da Faculdade de Direito da UERJ. Sócia do escritório Gustavo Tepedino Advogados.

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