Migalhas de Peso

Tecnologia a favor da Justiça Multiportas

O ser humano deve estar sempre no centro de qualquer projeto que envolva inovações tecnológicas. Inclusão e conscientização da sociedade são a chave para oferecer um melhor acesso à justiça, nas suas diversas portas, e para que a tecnologia avance sem deixar ninguém para trás.

13/7/2020

Falar sobre o Judiciário brasileiro exige o uso de superlativos. O país possui o maior sistema judiciário do mundo, com 92 tribunais. Temos o maior número de processos em tramitação, cerca de 80 milhões, conforme o último levantamento “Justiça em números”, feito pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Tivemos o maior avanço na digitalização: 108 milhões de causas tiveram início em versão digital de 2008 a 2018. Desde causas simples de violação ao direito do consumidor a complexos crimes contra a Administração Pública, tudo se judicializa no país. Seguindo a linha de recordes, estudos indicam que o Judiciário brasileiro é um dos mais produtivos do mundo.

Durante a pandemia, os números de produtividade são ainda maiores. A rápida adaptação dos Tribunais aos ambientes virtuais e a continuidade da prestação jurisdicional levou a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) a lançar a hashtag #ajustiçanãopára.

Estes dados não deixam dúvidas de que o brasileiro tem, em sua enorme maioria, um amplo acesso à justiça, que ocorre, muitas vezes, a um custo zero ou baixíssimo. Fora os casos legais de gratuidade de justiça para quem tem insuficiência de recursos, o procedimento nos Juizados Especiais é inicialmente gratuito para todos, uma ação cível pode custar cerca de 10 reais e, na mais alta Corte do país, o Supremo Tribunal Federal, ações diretas de inconstitucionalidade são gratuitas, dentre tantos outros exemplos. Somando isso à alta produtividade dos juízes, não é difícil concluir porque há esta explosão de processos: é mais fácil procurar o Judiciário do que resolver os conflitos de forma extrajudicial, ainda quando o autor tem ciência de que não tem razão, gerando as chamadas “demandas aventureiras”. O problema é que a manutenção da estrutura do serviço judiciário para 80 milhões de processos gera expressivos custos para toda a sociedade, inclusive para quem não tem processos na Justiça, já que a sustenta indiretamente por meio de impostos.

Como vem alertando o Ministro Luis Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça, a atual cultura litigante no Brasil pode gerar um colapso do sistema judicial, que já funciona próximo do limite. A situação se agrava se pensarmos no ajuizamento excessivo de demandas que está por vir relacionadas à crise da pandemia. O cenário deixa claro a importância das experiências tecnológicas bem sucedidas que vêm sendo desenvolvidas, dentro e fora dos Tribunais, para oferecer uma melhor resposta aos conflitos e assegurar o uso adequado e responsável dos serviços do Poder Judiciário, sem diminuir o acesso à justiça.

Richard Susskind, professor mais citado no mundo sobre o futuro dos sistemas judiciais e sua transformação pela tecnologia, afirma que a justiça não pode mais ser um lugar, ela é um serviço. As pessoas não desejam estar presentes fisicamente nos Tribunais para resolver um conflito. Elas desejam o resultado que os Tribunais trazem. Por isso, a justiça pode ser prestada dentro e fora das Cortes: é a chamada “Justiça multiportas”. E a inovação tecnológica pode auxiliar a concretizá-la, por meio do uso de ferramentas de automação e de inteligência artificial (IA) na estrutura do Poder Judiciário e em espaços extrajudiciais.

Acompanhando a evolução da tecnologia, as formas alternativas de resolução de conflitos (como a mediação, a conciliação e a arbitragem) passaram a se desenvolver também em ambientes virtuais, originando as chamadas Online Dispute Resolution. A experiência começou na iniciativa privada, para resolver problemas de compras realizadas em sites de gigantes como Ebay e Amazon, por meio de um sistema de inteligência artificial que informa as partes sobre seus direitos e, se não houver acordo, emite uma decisão. O serviço é um sucesso: a plataforma online da Ebay resolve mais de 60 milhões de casos por ano, com taxa de satisfação próxima de 90%. No Brasil, o Secretário Nacional do Consumidor, professor Luciano Timm, vem estimulando o uso do site Consumidor.gov, um serviço público e gratuito que permite a interlocução direta entre consumidores e empresas para buscar um acordo em conflitos de consumo pela internet, embora não haja emissão de decisão. Diversos juízes exigem a tentativa de uso prévio do serviço para comprovar o interesse do consumidor de agir perante o Judiciário.  

O uso da mediação e da conciliação como forma extrajudicial de solução de conflitos vem sendo defendido pelo Conselho Nacional de Justiça, sob a Presidência do Ministro Dias Toffoli. O Conselheiro Henrique Ávila está à frente do projeto que lançará, em breve, uma plataforma online, desenvolvida em parceria com a FGV, que pretende contar com a participação de todos os principais atores da justiça, dentre os quais se inclui a Administração Pública – o INSS, por exemplo, é o maior litigante brasileiro. A Justiça Federal registrou aumento de 52% no número de novas ações que envolvem direito previdenciário nos últimos 3 anos e a tendência é aumentar em decorrência das causas relacionadas à reforma da Previdência.

É essencial, para isso, o engajamento dos atuais 1 milhão e 200 mil advogados brasileiros, do Ministério Público, Defensorias e Procuradorias e, também, a conscientização da população para a busca de soluções extrajudiciais que tendem a garantir mais efetividade. O maior desafio é mudar a ideia de que o Judiciário é a única porta de acesso à justiça.

Dentro da estrutura dos tribunais, a elevada quantidade de processos digitalizados no Brasil cria um ambiente favorável ao uso de tecnologias, particularmente a inteligência artificial, como forma de auxiliar os juízes a decidirem. Estas máquinas inteligentes, que vem sendo desenvolvidas pelos próprios Tribunais, funcionam a partir de algoritmos, que são um comando para a máquina realizar uma tarefa, como classificar ações judiciais, selecionar jurisprudência para o caso, facilitar a uniformidade e coerência em casos de demandas de massa.

O Supremo Tribunal Federal (STF) vem desenvolvendo, em parceria com a Universidade de Brasília, o sistema “Victor”, ainda em testes, que terá a tarefa de ler os Recursos Extraordinários que chegam à Corte e identificar quais estão vinculados a temas de Repercussão Geral, um requisito de admissibilidade dos recursos. Victor aprende a partir de milhares de decisões já proferidas no STF e aplica o conhecimento obtido em novos processos. Tarefas que os servidores do Tribunal levam, em média, 44 minutos, levarão menos de 5 segundos pelo sistema, que emite apenas uma sugestão. A palavra final é sempre do Ministro. Essa supervisão humana auxilia na implementação da IA com ética e segurança.

Questionamentos de natureza ética são levantados, em geral, em relação aos “vieses algorítmicos”, que ocorrem quando as máquinas se comportam de modos que refletem os valores humanos implícitos na programação, afetando os resultados obtidos. É emblemático o exemplo do sistema de IA “The Compas”, utilizado pelo Poder Judiciário do Estado de Winsconsin, nos EUA, para auxiliar juízes a fazer uma avaliação de risco de réus criminais. O sistema foi utilizado no caso de Eric Loomis, um cidadão negro condenado a 6 anos de prisão. Verificou-se que a máquina considerava negros e latinos duas vezes mais perigosos, pois era alimentada com dados de sentenças anteriores em que havia maior condenação destas pessoas, sem se imaginar que o algoritmo extrairia este viés.

Por isso, é importante que o entusiasmo em relação ao uso de IA no Judiciário seja acompanhado da abertura para debates com os principais atores da justiça e suas respectivas associações sobre a transparência quanto ao uso dos sistemas pelas Cortes, bem como sobre a qualidade, o controle e a segurança dos dados utilizados. Os Laboratórios de Inovação, espaços de experimentação de tecnologias no Judiciário, a exemplo do “AMB Lab”, da Associação dos Magistrados Brasileiros, e do pioneiro “iJuspLab”, da Justiça Federal de São Paulo, exercem um papel relevante para tratar das preocupações relacionadas aos riscos do uso da IA e replicar experiências bem sucedidas. Ainda, no âmbito legislativo, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 21/20, sobre o marco legal do desenvolvimento de IA, que traz princípios para sua adoção de forma ética e segura.

O ser humano deve estar sempre no centro de qualquer projeto que envolva inovações tecnológicas. Inclusão e conscientização da sociedade são a chave para oferecer um melhor acesso à justiça, nas suas diversas portas, e para que a tecnologia avance sem deixar ninguém para trás.

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*Renata Gil é juíza de Direito do TJ/RJ e Presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB).

*Caroline Somesom Tauk é juíza Federal no Rio de Janeiro (RJ).

*Clarissa Somesom Tauk é juíza Auxiliar da 3ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais em São Paulo (SP).

 

               

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